Realmente, só depois do 25 de Abril – aliás do 27 de Julho de 74, data da determinação sobre as descolonizações africanas feita pelo ilustre patriota general Spínola - é que dei por mim a fazer genuflexões no altar da minha crença, para me lavar do pecado que desconhecia de ser fascista, por denúncia, já aqui o disse, do meu velho carro de volante à direita, que o meu marido mandou de África, juntamente com os demais pertences, pois que a família – mãe e cinco filhos menores – veio de escantilhão, assim que aquilo lá deixou de fazer parte de cá. Senti a palavra como um escarro e foi então que me interessei mais pelo assunto, embora o ligasse sobretudo, por dever de ofício, à sua etimologia latina significativa de feixe coeso em torno de um machado forte, pura imagem que muitos governantes apreciaram e apreciarão ainda, dantes em proveito pátrio, agora mais em proveito próprio. Concordo com o Dr. Salles de que Salazar, não sendo bonacheirão, também não tinha voz nem carisma tão ditatorial assim. Nós, pelo menos em África, sentíamo-nos livres, sobretudo os que não tínhamos a formação cultural dos dissidentes políticos, desprezadores, nos velhos conflitos geracionais, da burguesia trabalhadora donde provinham, mas sem pejo de nela explorarem as vantagens, em seu favor, do capitalismo por ela obtido mais pelo trabalho - por vezes, é certo, de exploração pouco decente, mas esse defeito da mesquinhez é irremediavelmente nossa pertença, preferimos dar a esmola, numa caridadezinha apaixonada que nos superioriza, a atribuir um justo valor ao trabalho de cada um. Nós, pois, ingénuos - politicamente falando – mais ou menos cumpridores dos deveres cívicos ou outros que nos estavam destinados, sabíamos vagamente dessas doutrinas não aceites no país, nostra culpa. E estimávamos os chefes distantes, cuja voz nos chegava pelas ondas radiofónicas, no respeito – por vezes irónico, é certo - ou mesmo desinteresse de quem tinha outros trabalhos e estudos a fazer, e aceitava a função dos governantes, a quem cabia governar, naturalmente. E honestamente, sem os esbanjamentos da moda democrática.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 30.07.20
Nota prévia – Este é um texto polémico que por certo gerará
comentários discordantes não só da minha tese como também entre os próprios
comentadores. Como é minha norma, eu lanço o tema para reflexão e debate e, o
que hoje em dia já não conta havendo-o,
é aos meus leitores que cabe a última palavra. * * *
Dino Grandi (1895-1988) [i] foi Presidente do Grande Conselho Fascista e
Ministro dos Negócios Estrangeiros do populista Mussolini e terá
definido[ii] que «Fascismo é a prática do improviso
resultante da prodigiosa imaginação do Duce». Por outras palavras, fascismo
é o capricho do ditador. Daqui se
conclui que um Estado governado ao sabor do capricho de alguém, não é um Estado
de Direito. O primado do improviso é incompatível com a norma perene, a Lei.
Infelizmente,
tanto ao longo da História como mesmo nos tempos modernos, são muitos os
exemplos de Estados governados ao sabor do capricho dos respectivos ditadores,
ou seja, por regimes fascistas. Limito-me a referir os menos antigos: Mussolini
(por definição própria), Hitler, Estaline,
Mao Tsé Tung, Franco (nos
primeiros tempos do seu regime), Juan Péron, Fidel Castro, Sadam
Hussein, Strössner do Paraguai e tantos
outros seus contemporâneos na América Latina, todos os Chefes de Estado mais
perenes nos Países árabes, Nicolás Maduro, José Eduardo dos Santos,
Robert Mugabe e outros que em boa hora esqueço por
essa África além...
Não
são, pois, arengas de direita ou de esquerda que definem fascismo. Fascismo
é a ausência de um quadro jurídico perene que seja universalmente conhecido e
aplicado sem procedimentos extravagantes que se lhe sobreponham. O oposto de
regime fascista é o Estado de Direito.
Notará
o leitor mais atento que na enumeração acima, não refiro o Doutor Salazar.
Seria
mentir descaradamente associar o salazarismo à democracia mas é igualmente um
absurdo ligá-lo ao fascismo. O chamado Estado Novo (que caiu de velho),
praticamente sinónimo de salazarismo, era um Estado de Direito de cariz
corporativo e génese autocrática (sem sufrágio universal e transparente) mas
publicamente conhecido e universalmente aplicado.
Esta
característica da publicidade e da universalidade da aplicação da «sua» Lei
exclui o Doutor Salazar das hordas fascistas. Mas recuso-lhe simultaneamente
o ingresso no rol dos democratas (por que o próprio nunca se fez passar). A
parangona comunista de «a longa noite fascista» é, pois, uma grosseira mentira.
Foi uma «longa noite da democracia», claro, mas sem o tal adjectivo.
Julho de 2020 Henrique Salles da Fonseca
(i] - https://pt.wikipedia.org/wiki/Dino_Grandi [ii] - Utilizo a expressão «terá definido que… porque perdi a
referência à fonte da afirmação e agora a ambliopia impede-me de a procurar.
Peço aos meus leitores que me façam a justiça de acreditarem que não inventei a
expressão e que a fui buscar a uma fonte segura.
COMENTÁRIOS:
Anónimo 30.07.2020: Caro Dr.
Salles da Fonseca, a História tem sempre como nos ajudar em momentos de
aflição. É o caso. No regime senhorial europeu (do séc. IX ao séc.
XIV aprox.) o senhor era, simultaneamente, a fonte do Direito (do
dever ser consuetudinário que só a ele, senhor, cumpria interpretar), quem
aplicava o Direito (isto é, fazia justiça) e quem detinha o poder de extorquir
(ou tributar). Foi o culminar
de um longo processo histórico desencadeado pela queda do Império Romano do
Ocidente e, na sua origem, estava a figura do "commendatio". Era,
como se pode imaginar e como se sabe por inúmeros episódios, um regime
violento que convidava à arbitrariedade. O fascismo e o
comunismo, enquanto
modelos políticos, são versões do regime senhorial agora servido por
instrumentos mais letais e abrangendo muitíssima mais gente sob o mesmo senhor. O que o Estado Novo tinha de senhorial era fazer
da vontade de uma só pessoa (Salazar) a fonte do Direito. A razão invocada
até era simples: Salazar era quem sabia o que melhor convinha a cada um de
nós, era ele que definia o interesse comum, eram dele as "luzes" (já
não a unção divina ainda que houvesse quem queria dar esse passo). Com uma
ligeira diferença: sendo Salazar jurista por formação, tinha o cuidado de
traduzir em regras gerais e abstractas, quase sempre excelentemente redigidas,
a sua vontade - o que dava uma imagem de Estado de Direito. Daí a perplexidade com que se depara quem pretenda, de
boa fé, classificar o Estado Novo.
Aliás, o regime de Vichy (já sei que se vai argumentar que não é grande
exemplo) estudou atentamente o Estado Novo com o propósito de o imitar, sem
nunca o confundir com os fascismos e comunismos da época - nem com o regime
democrático que existia em França quando a guerra estalou. É interessante
notar que alguns dos que mais acerrimamente se opunham ao Estado Novo (o
PCP) faziam-no, não porque pusessem em causa a natureza senhorial do regime político,
mas por não serem eles o senhor. Esta questão senhorial tem-nos acompanhado
ao longo da nossa História. Por exemplo: é comum dizer-se que Afonso Henriques
fez-se aclamar Rex para se libertar da vassalagem a seu primo Afonso VII de
Leão. Só em parte é verdade. Ao fazer-se aclamar Rex ele libertava-se também
dos Grandes Senhores de Entre-Douro-e-Minho que sempre o consideraram, apenas,
um "primus inter pares". Os períodos conturbados que o reino
viveu durante a 1ª dinastia, a partir de Afonso II, eram a face visível do
conflito entre a nobreza terra-tenente que queria impor em seu proveito o
regime senhorial (vendo no Rei, apenas, o primeiro dos senhores) e o Rei que
queria ser ele a única fonte do Direito enquanto ungido por Deus.
Adriano Lima, 30.07.2020: Creio que o
Dr. Salles da Fonseca procede neste texto a um exercício intelectual honesto e
com um mínimo de fundamentação científica para nos explicar que "não podem
ser as arengas de esquerda e direita a definir o que é o fascismo". E tem
razão quanto a esta última observação. Todavia, a questão é passível de
polemização quando afirma que "um estado governado ao capricho de
alguém não é um estado de direito", e que o "Estado Novo era um
estado de direito de cariz corporativo e génese autocrática (sem sufrágio
universal e transparente) mas publicamente conhecido e universalmente
aplicado." Considero algo confusa e contraditória a definição que
sugere. Porquê? Porque se torna difícil perceber "que o estado corporativo
e de génese autocrático" não tenha sido concebido segundo as ideias e o
"capricho do Dr. Salazar", ou seja, do que ele entendia devia ser o
estado português. Daí nunca ter permitido o sufrágio universal, talvez
porque convencido de que o escrutínio democrático poderia tolher a sua ideia sobre
o país. Sim, o Dr. Salazar não ignorava que a sociedade portuguesa
possuía homens de inteligência tão luminosa quanto a dele e que muito
provavelmente não comungavam do seu pensamento. Por alguma razão, nunca
permitiu eleições livres e democráticas, o que envolveria a expressão plural de
ideias através da criação de partidos políticos. Para diferenciar o Estado
Novo do Fascismo, afirma que "o Fascismo é a ausência de um quadro
jurídico perene que seja universalmente conhecido e aplicado".
Contudo, penso que se o quadro jurídico em que assentava o Estado Novo era
"universalmente conhecido", a verdade é que não era
"universalmente reconhecido". E se era "universalmente
aplicado", certamente o seria por um sistema inteiramente fidelizado a
Salazar, e vigiado por uma polícia política, única garantia da sua
sobrevivência. No entanto, apesar do que pode depreender-se da minha
argumentação, não considero que Salazar fosse "fascista" ou que o
Fascismo tenha sido instituído em Portugal. Homem inteligente, não obstante a
estreiteza do horizonte ideológico que se permitiu, Salazar percebeu bem que
não podia ultrapassar os limites de um autoritarismo comedido e morigerado pela
brandura dos nossos costumes.
O que é sumamente fundamental é não confundir o regime autocrático de Salazar
com o de homens como José Eduardo dos Santos e outros de semelhante calibre
moral. Salazar visava, na sua óptica, o bem público e na dianteira da sua
defesa era primorosamente exemplar. Eduardo dos Santos e outros do mesmo
calibre desgraçaram os seus povos. Obrigado, Dr. Salles, por toda esta troca de
ideias e opiniões. Tenho a certeza de que no essencial não estou em divergência
consigo.
Francisco G. de Amorim.
30.07.2020: Perfeito.
Anónimo, 30.07.2020: Perante o teu
desafio, Henrique, vamos lá aprofundar um pouco mais o tema do fascismo (já
aflorado em post e comentários imediatamente anteriores). Importa saber, em
cada momento, e atenta a respectiva definição, se um determinado regime é ou
não fascista. E se o conceito comporta vários itens, um regime que satisfaça
apenas alguns deles não tem que ser classificado como tal. Como referi no
meu comentário de 28/7, relativamente ao teu post sobre Salazar, os autores,
que consultei e de que dei nota, inclinam-se maioritariamente para que o regime
salazarista não era fascista, e isto pelas seguintes razões: mesmo que
ele o tenha sido na década de 30, o certo é que durou 4 décadas e evoluiu,
então não seria correcto classificá-lo nesses termos durante todo o período de
vigência. Acresce que não houve uma mobilização de massas, o nacionalismo
português foi moderado, houve uma selecção cuidadosa e apolítica da elite
restrita que liderava o país, não havia um movimento forte da classe
trabalhadora e existia rejeição da violência, como meio de transformação da
Sociedade, para além de Salazar não ter um culto de personalidade (ver Filipe Ribeiro de Menezes, in
"Salazar"). Mas este
autor não deixa de mencionar o historiador Enzo Colotti que conclui em sentido contrário, isto é, que se está
perante um regime fascista, pela natureza totalitária, pelo corporativismo que
destruiu a independência do movimento sindical e pela existência do estatismo
económico de Salazar. Sobre este
último aspecto, ele não era específico nem do regime de Salazar nem dos fascistas,
digo eu. Martin Clark, na
sua biografia sobre Mussolini, recorda que
o seu slogan favorito era “Tudo no Estado, nada fora do Estado,
nada contra o Estado”. Os
comunistas diriam outra coisa?
Salazar teve um olhar superior e propagandeou “Tudo pela
Nação, nada contra a Nação”. Madeleine Albright, no seu recente livro, “Fascismos – Um alerta”, reconhece que não há um consenso sobre o conceito
de fascismo. E dá exemplos incompletos de fascismo: Uma mentalidade de “nós
contra eles” (Em Portugal, ainda ouvi “quem não é por nós, é contra nós”);
regime nacionalista, autoritário, antidemocrático; violento. Como seria
expectável, Jaime Nogueira Pinto também
perfilha a tese de que o regime português não era fascista (ver, por
exemplo, “Salazar – o outro retrato”), apontando várias divergências, designadamente da apologia
da violência, que contrasta com a posição salazarista de que o Estado deve ser
forte para não ter de ser violento. Para
Salazar, o Estado serve a Nação, não é um fim em si mesmo, enquanto para os
fascistas o objectivo é a construção de um Estado ideal. O insuspeito
professor de Direito Jacques Georgel,
no seu livro, prefaciado por Mário Soares, “O Salazarismo”, igualmente defende a posição que o regime de Salazar
não foi fascista, embora autoritário e ditatorial (Duverger, que estava na moda quando estudámos, Henrique,
chamou-lhe de ditadura paternalista e Demichel de ditadura de notáveis).
Georgel põe em
evidência a ausência de ideologia elaborada, aprofundada e original, bem como a
não conquista do poder pela força através de um partido poderoso, e ainda a
existência de um líder que tinha horror à multidão, que não aparecia em
público, que não conseguia improvisar um discurso, para além da ausência do
desejo de expansão. Mas isto
não o isenta de ter sido um regime totalitário, policial, corporativo,
antiliberal, antidemocrático e antiparlamentar. Fernando Rosas,
no 7º volume da História de Portugal, sob a Direcção de José Mattoso, reconhece
que faltam alguns “ingredientes” no catálogo de regime fascista (por exemplo,
não houve um partido que assaltasse o poder, a UN não foi um partido
revolucionário, vanguardista, de massas, recorrendo ao terror massivo, não
havia poder irrestrito nem paganizado). Mas aponta outros aspectos que o
levam a inclinar-se para que o regime era fascista, tal como a imposição
autoritária de um projecto doutrinário totalizante. Rosas acaba por se
referir a uma espécie particular de “fascismo genérico” e de “fascismo
togado”, na linha, parece, da ditadura de notáveis, a que Demichel se refere.
Abraço amigo. Carlos Traguelho
Ganganeli Pereira 01.08.2020: É a primeira vez que leio uma interpretação, ao fim dos 45 anos da nossa democracia, do Estado Novo como não sendo uma longa noite fascista e que durou apenas uns 42 anos e foi muito aplaudido numa primeira fase e se não fosse a defesa do Ultramar e desgaste da nossa juventude nessa guerra de guerrilha que durou uns 13 anos,talvez haveria lugar a uma passagem pacifica para uma verdadeira democracia mas, apesar disso o ultramar foi-se desenvolvendo como nunca dantes e foi deixada uma boa obra feita. Com a derrocada que se seguiu após o 25.4.74 o vento tudo levou e surgiu o caos até hoje, muita corrupção, pobreza, fome, emigração, desemprego e endividamento, em todas as 7 Repúblicas socialistas criadas com a revolução de Lisboa em 1974. Com este resultado tão desastroso concluo que o seu artigo tem carradas de razões para afirmar, que não sendo uma democracia, nem fascismo, era no fundo um Estado de Direito. E estou de acordo completamente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário