sexta-feira, 31 de julho de 2020

Hélas!

Realmente, só depois do 25 de Abril – aliás do 27 de Julho de 74, data da determinação sobre as descolonizações africanas feita pelo ilustre patriota general Spínola - é que dei por mim a fazer genuflexões no altar da minha crença, para me lavar do pecado que desconhecia de ser fascista, por denúncia, já aqui o disse, do meu velho carro de volante à direita, que o meu marido mandou de África, juntamente com os demais pertences, pois que a família – mãe e cinco filhos menores – veio de escantilhão, assim que aquilo lá deixou de fazer parte de cá. Senti a palavra como um escarro e foi então que me interessei mais pelo assunto, embora o ligasse sobretudo, por dever de ofício, à sua etimologia latina significativa de feixe coeso em torno de um machado forte, pura imagem que muitos governantes apreciaram e apreciarão ainda, dantes em proveito pátrio, agora mais em proveito próprio. Concordo com o Dr. Salles de que Salazar, não sendo bonacheirão, também não tinha voz nem carisma tão ditatorial assim. Nós, pelo menos em África, sentíamo-nos livres, sobretudo os que não tínhamos a formação cultural dos dissidentes políticos, desprezadores, nos velhos conflitos geracionais, da burguesia trabalhadora donde provinham, mas sem pejo de nela explorarem as vantagens, em seu favor, do capitalismo por ela obtido mais pelo trabalho - por vezes, é certo, de exploração pouco decente, mas esse defeito da mesquinhez é irremediavelmente nossa pertença, preferimos dar a esmola, numa caridadezinha apaixonada que nos superioriza, a atribuir um justo valor ao trabalho de cada um. Nós, pois, ingénuos - politicamente falando – mais ou menos cumpridores dos deveres cívicos ou outros que nos estavam destinados, sabíamos vagamente dessas doutrinas não aceites no país, nostra culpa. E estimávamos os chefes distantes, cuja voz nos chegava pelas ondas radiofónicas, no respeito – por vezes irónico, é certo - ou mesmo desinteresse de quem tinha outros trabalhos e estudos a fazer, e aceitava a função dos governantes, a quem cabia governar, naturalmente. E honestamente, sem os esbanjamentos da moda democrática.

FASCISMO

HENRIQUE SALLES DA FONSECA            A BEM DA NAÇÃO, 30.07.20

Nota préviaEste é um texto polémico que por certo gerará comentários discordantes não só da minha tese como também entre os próprios comentadores. Como é minha norma, eu lanço o tema para reflexão e debate e, o que hoje em dia já não conta   havendo-o, é aos meus leitores que cabe a última palavra. * * *

Dino Grandi (1895-1988) [i] foi Presidente do Grande Conselho Fascista e Ministro dos Negócios Estrangeiros do populista Mussolini e terá definido[ii] que «Fascismo é a prática do improviso resultante da prodigiosa imaginação do Duce». Por outras palavras, fascismo é o capricho do ditador. Daqui se conclui que um Estado governado ao sabor do capricho de alguém, não é um Estado de Direito. O primado do improviso é incompatível com a norma perene, a Lei.

Infelizmente, tanto ao longo da História como mesmo nos tempos modernos, são muitos os exemplos de Estados governados ao sabor do capricho dos respectivos ditadores, ou seja, por regimes fascistas. Limito-me a referir os menos antigos: Mussolini (por definição própria), Hitler, Estaline, Mao Tsé Tung, Franco (nos primeiros tempos do seu regime), Juan Péron, Fidel Castro, Sadam Hussein, Strössner do Paraguai e tantos outros seus contemporâneos na América Latina, todos os Chefes de Estado mais perenes nos Países árabes, Nicolás Maduro, José Eduardo dos Santos, Robert Mugabe e outros que em boa hora esqueço por essa África além...

Não são, pois, arengas de direita ou de esquerda que definem fascismo. Fascismo é a ausência de um quadro jurídico perene que seja universalmente conhecido e aplicado sem procedimentos extravagantes que se lhe sobreponham. O oposto de regime fascista é o Estado de Direito.

Notará o leitor mais atento que na enumeração acima, não refiro o Doutor Salazar.

Seria mentir descaradamente associar o salazarismo à democracia mas é igualmente um absurdo ligá-lo ao fascismo. O chamado Estado Novo (que caiu de velho), praticamente sinónimo de salazarismo, era um Estado de Direito de cariz corporativo e génese autocrática (sem sufrágio universal e transparente) mas publicamente conhecido e universalmente aplicado.

Esta característica da publicidade e da universalidade da aplicação da «sua» Lei exclui o Doutor Salazar das hordas fascistas. Mas recuso-lhe simultaneamente o ingresso no rol dos democratas (por que o próprio nunca se fez passar). A parangona comunista de «a longa noite fascista» é, pois, uma grosseira mentira. Foi uma «longa noite da democracia», claro, mas sem o tal adjectivo.

Julho de 2020     Henrique Salles da Fonseca

(i] - https://pt.wikipedia.org/wiki/Dino_Grandi [ii] - Utilizo a expressão «terá definido que… porque perdi a referência à fonte da afirmação e agora a ambliopia impede-me de a procurar. Peço aos meus leitores que me façam a justiça de acreditarem que não inventei a expressão e que a fui buscar a uma fonte segura.

COMENTÁRIOS:

Anónimo 30.07.2020: Caro Dr. Salles da Fonseca, a História tem sempre como nos ajudar em momentos de aflição. É o caso. No regime senhorial europeu (do séc. IX ao séc. XIV aprox.) o senhor era, simultaneamente, a fonte do Direito (do dever ser consuetudinário que só a ele, senhor, cumpria interpretar), quem aplicava o Direito (isto é, fazia justiça) e quem detinha o poder de extorquir (ou tributar). Foi o culminar de um longo processo histórico desencadeado pela queda do Império Romano do Ocidente e, na sua origem, estava a figura do "commendatio". Era, como se pode imaginar e como se sabe por inúmeros episódios, um regime violento que convidava à arbitrariedade. O fascismo e o comunismo, enquanto modelos políticos, são versões do regime senhorial agora servido por instrumentos mais letais e abrangendo muitíssima mais gente sob o mesmo senhor. O que o Estado Novo tinha de senhorial era fazer da vontade de uma só pessoa (Salazar) a fonte do Direito. A razão invocada até era simples: Salazar era quem sabia o que melhor convinha a cada um de nós, era ele que definia o interesse comum, eram dele as "luzes" (já não a unção divina ainda que houvesse quem queria dar esse passo). Com uma ligeira diferença: sendo Salazar jurista por formação, tinha o cuidado de traduzir em regras gerais e abstractas, quase sempre excelentemente redigidas, a sua vontade - o que dava uma imagem de Estado de Direito. Daí a perplexidade com que se depara quem pretenda, de boa fé, classificar o Estado Novo. Aliás, o regime de Vichy (já sei que se vai argumentar que não é grande exemplo) estudou atentamente o Estado Novo com o propósito de o imitar, sem nunca o confundir com os fascismos e comunismos da época - nem com o regime democrático que existia em França quando a guerra estalou. É interessante notar que alguns dos que mais acerrimamente se opunham ao Estado Novo (o PCP) faziam-no, não porque pusessem em causa a natureza senhorial do regime político, mas por não serem eles o senhor. Esta questão senhorial tem-nos acompanhado ao longo da nossa História. Por exemplo: é comum dizer-se que Afonso Henriques fez-se aclamar Rex para se libertar da vassalagem a seu primo Afonso VII de Leão. Só em parte é verdade. Ao fazer-se aclamar Rex ele libertava-se também dos Grandes Senhores de Entre-Douro-e-Minho que sempre o consideraram, apenas, um "primus inter pares". Os períodos conturbados que o reino viveu durante a 1ª dinastia, a partir de Afonso II, eram a face visível do conflito entre a nobreza terra-tenente que queria impor em seu proveito o regime senhorial (vendo no Rei, apenas, o primeiro dos senhores) e o Rei que queria ser ele a única fonte do Direito enquanto ungido por Deus.

Adriano Lima, 30.07.2020: Creio que o Dr. Salles da Fonseca procede neste texto a um exercício intelectual honesto e com um mínimo de fundamentação científica para nos explicar que "não podem ser as arengas de esquerda e direita a definir o que é o fascismo". E tem razão quanto a esta última observação. Todavia, a questão é passível de polemização quando afirma que "um estado governado ao capricho de alguém não é um estado de direito", e que o "Estado Novo era um estado de direito de cariz corporativo e génese autocrática (sem sufrágio universal e transparente) mas publicamente conhecido e universalmente aplicado." Considero algo confusa e contraditória a definição que sugere. Porquê? Porque se torna difícil perceber "que o estado corporativo e de génese autocrático" não tenha sido concebido segundo as ideias e o "capricho do Dr. Salazar", ou seja, do que ele entendia devia ser o estado português. Daí nunca ter permitido o sufrágio universal, talvez porque convencido de que o escrutínio democrático poderia tolher a sua ideia sobre o país. Sim, o Dr. Salazar não ignorava que a sociedade portuguesa possuía homens de inteligência tão luminosa quanto a dele e que muito provavelmente não comungavam do seu pensamento. Por alguma razão, nunca permitiu eleições livres e democráticas, o que envolveria a expressão plural de ideias através da criação de partidos políticos. Para diferenciar o Estado Novo do Fascismo, afirma que "o Fascismo é a ausência de um quadro jurídico perene que seja universalmente conhecido e aplicado". Contudo, penso que se o quadro jurídico em que assentava o Estado Novo era "universalmente conhecido", a verdade é que não era "universalmente reconhecido". E se era "universalmente aplicado", certamente o seria por um sistema inteiramente fidelizado a Salazar, e vigiado por uma polícia política, única garantia da sua sobrevivência. No entanto, apesar do que pode depreender-se da minha argumentação, não considero que Salazar fosse "fascista" ou que o Fascismo tenha sido instituído em Portugal. Homem inteligente, não obstante a estreiteza do horizonte ideológico que se permitiu, Salazar percebeu bem que não podia ultrapassar os limites de um autoritarismo comedido e morigerado pela brandura dos nossos costumes.
O que é sumamente fundamental é não confundir o regime autocrático de Salazar com o de homens como José Eduardo dos Santos e outros de semelhante calibre moral. Salazar visava, na sua óptica, o bem público e na dianteira da sua defesa era primorosamente exemplar. Eduardo dos Santos e outros do mesmo calibre desgraçaram os seus povos. Obrigado, Dr. Salles, por toda esta troca de ideias e opiniões. Tenho a certeza de que no essencial não estou em divergência consigo.  

 Francisco G. de Amorim. 30.07.2020: Perfeito.

Anónimo, 30.07.2020: Perante o teu desafio, Henrique, vamos lá aprofundar um pouco mais o tema do fascismo (já aflorado em post e comentários imediatamente anteriores). Importa saber, em cada momento, e atenta a respectiva definição, se um determinado regime é ou não fascista. E se o conceito comporta vários itens, um regime que satisfaça apenas alguns deles não tem que ser classificado como tal. Como referi no meu comentário de 28/7, relativamente ao teu post sobre Salazar, os autores, que consultei e de que dei nota, inclinam-se maioritariamente para que o regime salazarista não era fascista, e isto pelas seguintes razões: mesmo que ele o tenha sido na década de 30, o certo é que durou 4 décadas e evoluiu, então não seria correcto classificá-lo nesses termos durante todo o período de vigência. Acresce que não houve uma mobilização de massas, o nacionalismo português foi moderado, houve uma selecção cuidadosa e apolítica da elite restrita que liderava o país, não havia um movimento forte da classe trabalhadora e existia rejeição da violência, como meio de transformação da Sociedade, para além de Salazar não ter um culto de personalidade (ver Filipe Ribeiro de Menezes, in "Salazar"). Mas este autor não deixa de mencionar o historiador Enzo Colotti que conclui em sentido contrário, isto é, que se está perante um regime fascista, pela natureza totalitária, pelo corporativismo que destruiu a independência do movimento sindical e pela existência do estatismo económico de Salazar. Sobre este último aspecto, ele não era específico nem do regime de Salazar nem dos fascistas, digo eu. Martin Clark, na sua biografia sobre Mussolini, recorda que o seu slogan favorito era “Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado”. Os comunistas diriam outra coisa? Salazar teve um olhar superior e propagandeou “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”. Madeleine Albright, no seu recente livro, Fascismos – Um alerta”, reconhece que não há um consenso sobre o conceito de fascismo. E dá exemplos incompletos de fascismo: Uma mentalidade de “nós contra eles” (Em Portugal, ainda ouvi “quem não é por nós, é contra nós”); regime nacionalista, autoritário, antidemocrático; violento. Como seria expectável, Jaime Nogueira Pinto também perfilha a tese de que o regime português não era fascista (ver, por exemplo, “Salazar – o outro retrato”), apontando várias divergências, designadamente da apologia da violência, que contrasta com a posição salazarista de que o Estado deve ser forte para não ter de ser violento. Para Salazar, o Estado serve a Nação, não é um fim em si mesmo, enquanto para os fascistas o objectivo é a construção de um Estado ideal. O insuspeito professor de Direito Jacques Georgel, no seu livro, prefaciado por Mário Soares, “O Salazarismo”, igualmente defende a posição que o regime de Salazar não foi fascista, embora autoritário e ditatorial (Duverger, que estava na moda quando estudámos, Henrique, chamou-lhe de ditadura paternalista e Demichel de ditadura de notáveis). Georgel põe em evidência a ausência de ideologia elaborada, aprofundada e original, bem como a não conquista do poder pela força através de um partido poderoso, e ainda a existência de um líder que tinha horror à multidão, que não aparecia em público, que não conseguia improvisar um discurso, para além da ausência do desejo de expansão. Mas isto não o isenta de ter sido um regime totalitário, policial, corporativo, antiliberal, antidemocrático e antiparlamentar. Fernando Rosas, no 7º volume da História de Portugal, sob a Direcção de José Mattoso, reconhece que faltam alguns “ingredientes” no catálogo de regime fascista (por exemplo, não houve um partido que assaltasse o poder, a UN não foi um partido revolucionário, vanguardista, de massas, recorrendo ao terror massivo, não havia poder irrestrito nem paganizado). Mas aponta outros aspectos que o levam a inclinar-se para que o regime era fascista, tal como a imposição autoritária de um projecto doutrinário totalizante. Rosas acaba por se referir a uma espécie particular de “fascismo genérico” e de “fascismo togado”, na linha, parece, da ditadura de notáveis, a que Demichel se refere. Abraço amigo. Carlos Traguelho

Ganganeli Pereira 01.08.2020: É a primeira vez que leio uma interpretação, ao fim dos 45 anos da nossa democracia, do Estado Novo como não sendo uma longa noite fascista e que durou apenas uns 42 anos e foi muito aplaudido numa primeira fase e se não fosse a defesa do Ultramar e desgaste da nossa juventude nessa guerra de guerrilha que durou uns 13 anos,talvez haveria lugar a uma passagem pacifica para uma verdadeira democracia mas, apesar disso o ultramar foi-se desenvolvendo como nunca dantes e foi deixada uma boa obra feita. Com a derrocada que se seguiu após o 25.4.74 o vento tudo levou e surgiu o caos até hoje, muita corrupção, pobreza, fome, emigração, desemprego e endividamento, em todas as 7 Repúblicas socialistas criadas com a revolução de Lisboa em 1974. Com este resultado tão desastroso concluo que o seu artigo tem carradas de razões para afirmar, que não sendo uma democracia, nem fascismo, era no fundo um Estado de Direito. E estou de acordo completamente.

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