terça-feira, 28 de julho de 2020

Evocações



Em apoio ao magnífico texto de Salles da Fonseca sobre Salazar – magnífico de saber esclarecido e de ousadia altiva de homem de pundonor – resolvi acrescentar um texto enviado pelo meu filho Luís, que possui a capacidade analítica suficiente para se aperceber dos desaires em que há muito tombámos e que nos não dão perspectivas de um futuro menos soturno do que aquele que dolorosamente auguramos para os nossos vindouros. Um dos comentadores desse texto sobre um artigo de M.Soares sobre Salazar, informou que Mário Soares foi o maior coveiro da pátria - mas o certo é que teve acompanhantes grados e ainda hoje continuamos a cavar com afinco, pobres que somos. Mas achei formidável que esse texto merecesse comentários tão críticos sobre M. Soares, que nos seus tempos de conquistador emplumado envergonhava qualquer um, quer nos seus passeios mundanos, de irrequietudes bacocas, quer até em entrevistas, como uma de que me lembro, um confronto entre Felipe Gonzalez e ele, em que aquele se mostrou intelectualmente muito mais bem apetrechado do que Soares, que mais não fez do que debitar as balelas costumeiras sobre socialismo e quejandos.
O texto do Dr. Salles da Fonseca, admirável de verticalidade corajosa, serviu de pretexto para o tal, enviado pelo Luís, retirado de https://consciencianacional.blogspot.com/2020/04/um-breve-perfil-psicanalitico-do-dr.html?spref=fb&fbclid=IwAR24YCd35t7oEK4DWOzvBVvhH2AK_PLEgqblXUT2hT7H211DW-Ctb8mGnsA  - e seus comentadores. Agradeço também por esse motivo.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA     A BEM DA NAÇÃO28.07.20
Estava eu há 50 anos a estagiar na EPAM - Escola Prática de Administração Militar, na Alameda das Linhas de Torres, em Lisboa, quando foi anunciada a morte do Doutor Salazar. Ocorrência esperada a qualquer momento face à situação clínica do enfermo, nada aconteceu. Ao contrário do que os seus adeptos ferrenhos queriam, o povo não se manifestou em rios de lágrimas nem se ouviram coros de prantos; ao contrário do que os comunistas queriam, não houve manifestações de júbilo nem as valetas das ruas se encheram de sangue. Nada, absolutamente nada. E nós, os crentes na Primavera Marcelista, imaginámos que o Professor Marcelo Caetano se sentiria então mais à vontade para conduzir Portugal no caminho suave para a democracia e com as colónias a caminho da autonomia integrada num processo pacífico.
Por todas estas razões, posso hoje afirmar que há 50 anos nada aconteceu: nem para salazaristas, nem para comunistas, nem para marcelistas.
Mas se a ocorrência não foi charneira histórica, ela pode hoje servir para lembrar algumas realidades sobre o Doutor Salazar:
Ao contrário da propaganda comunista, o Doutor Salazar não era fascista. Pelo contrário, instituiu um Estado de Direito – um Direito autocrático, sem dúvida, mas Direito publicamente conhecido de todos os cidadãos, aplicável a todos, sem excepção;
Herdeiro de um Estado falido, manteve sempre a política do equilíbrio das Finanças Públicas e condicionou todo o desenvolvimento – económico e social – a esse equilíbrio;
Autocrata, nunca fingiu ser democrata, muniu-se dos instrumentos de segurança nacional (não propriamente de segurança pessoal) que lhe pareceram convenientes. Refiro-me à PIDE já que tanto a Legião Portuguesa como a Brigada Naval não passavam de puros bluffs a que ele próprio, depois da guerra civil espanhola, deixou de dar qualquer importância – serviam para que uns quantos «maduros» se fardassem a fingir que eram uns durões. A Mocidade Portuguesa era uma brincadeira de crianças;
Em política externa, o Doutor Salazar foi exímio e nas épocas mais conturbadas assumiu a pasta dos Negócios Estrangeiros para gerir o processo sem intermediários. E a URSS não tomou a Península Ibérica como Stalin tinha imaginado.
E assim foi o que há 50 anos quase passou despercebido. Mas que hoje refiro como um estadista que nos salvou do nazismo, do fascismo e do comunismo.
E mais não digo porque acho que basta e porque não sei muito mais que dizer.
Julho de 2020  Henrique Salles da Fonseca
II - Quarta-feira, 22 de abril de 2020
Um breve perfil psicanalítico do dr. Mário Soares
"Os vinte anos passados sobre a morte do Dr. Salazar comemoram-se aqui da maneira tradicional: os amigos rezam-lhe por alma e peregrinam até Sta. Comba para cobrir de flores a humilde campa do velho senhor; os inimigos: a estupidentzia indígena, aproveitando a venalidade senil dum contínuo reformado, divertiu-se caluniosamente a mixurucar na vida íntima do falecido. Como corolário das festas, perseguido por remotas, recônditas e recalcadas memórias de si, o sr. Mário Soares desceu do seu alto pedestal, e fez imprimir no Público uma extensa, descompassada e sobranceira crónica, onde, com inútil jactância, se assume como um anti-Salazar, um Salazar às avessas, axiologicamente invertido: todos os defeitos do antigo chefe do governo são considerados como qualidades do fundador do actual regime; todas as qualidades do fundador do antigo regime são consideradas como defeitos do cronicador. Vale a pena - já agora - vasculhar psicanaliticamente as profundezas da personalidade do célebre croniqueiro algarvio. Este seu texto tão estranho - e por vezes tão amargurado chega a parecer um caso de psicastenia insublimada.
Analisemos em pormenor o "breve perfil" de António de Oliveira Salazar pelo sr. Mário Soares:
António de Oliveira Salazar usava os apelidos em ordem inversa à que é corrente em Portugal e como é hábito em Espanha: o pai era o sr. Oliveira, feitor e pequeno proprietário rural; a mãe, Maria do Resgate, é que era Salazar, personalidade dominante da família a quem o filho sempre se sentiu, afectivamente, muito ligado. Deveria chamar-se, portanto,
António Salazar de Oliveira
. Mas curiosamente foi o nome da mãe, Salazar, que sempre usou em último lugar. O sr. Soares (ignora mesmo, não finge ignorar...) que só depois de 1911, da lei do Registo Civil se normalizou oficialmente em Portugal a ordem dos matronímicos, embora sem rigidez coerciva. Na Beira, no final do séc. XIX e princípio do séc. XX, ainda era muito costume antepor o apelido da mãe ao do pai nos registos paroquiais. Salazar, todavia, toda a vida assinou Oliveira Salazar - e não apenas Salazar - como parece querer insinuar o sr. Mário Soares. Os seus livros estão assinados Oliveira Salazar; toda a correspondência ou foi rubricada com as iniciais O.S., ou foi subscrita Oliveira Salazar. Salazar de Oliveira é um delito que deve ser imputado ao próprio baptizado - que sempre usou o matronímico no fim. Como se chamava Oliveira Salazar é natural, no entanto, que usasse apelidos pela ordem registada na igreja, apesar de ser costume no nosso tempo as pessoas usarem apenas o último apelido: o Soares, o Múrias, o Cadilhe... Assinar Salazar de Oliveira seria tão parvo como se, agora, o sr. Mário Soares resolvesse subscrever-se Mário Alberto Soares Nobre.
Todavia, o facto do eminente articulista dar tanto relevo a este mínimo particular da biografia de Salazar tem a sua significância psicanalítica. Começa a revelar-se (a impor-se) o complexo de Édipo que, porventura, perturba o inconsciente do famoso combatente anti-fascista, e justifica algumas pequenas inverdades deste seu texto - e muitas das suas acções políticas.
O complexo de Édipo é, como se sabe, uma locução técnica de psicanálise utilizada pela primeira vez por Freud parece que devido à influência de Jung. A personagem trágica de Édipo arrastado pela fatalidade ao assassínio do pai e ao incesto com a mãe, é utilizada por Freud para caracterizar o ódio contra o pai e o amor pela mãe. O célebre neurologista austríaco considerava esta aberração psíquica como inata, universal e perene. Dois outros tão famosos psicanalistas, Adler e Jung, seus discípulos, consideravam-na, porém, como adquirida nos primeiros anos de infância quase até à puberdade; e patológica caso se prolongasse pelos tempos fora sem motivações fundamentadas na realidade histórica do complexado.
Salazar, parece, na verdade, ter estado sempre efectivamente muito mais ligado à mãe do que ao pai. Ao dr. Soares talvez não tenha podido acontecer o mesmo - tanto que, em casa dele, a senhora sua mãe, antes de se casar com o senhor seu pai, era a empregada doméstica - que o dr. João Lopes Soares fora padre. Dos arcanos mais escondidos da alma, o sr. Soares parece não perdoar isso ao pai. É natural, mas não é razão para censurar o Salazar por gostar da mãe...
Assim, governado na infância e na adolescência por um pai severo, austero e disciplinador que não o deixava pôr o pé em ramo verde, o sr. Soares transfere psicologicamente para a personalidade de Salazar a recordação esquecida e frustrada do dr. João Lopes Soares. Também Salazar durante a maior parte da infância, da adolescência e da maturidade do sr. Soares, o não deixou pôr o pé em ramo verde, severo, austero, disciplinador e económico, como fora o paizinho do articulista. Salazar, contudo, não chegou a ser padre, foi apenas seminarista. Para o sr. Soares agora também isso é imperdoável.
Seguindo a debruçar-se sobre a personalidade de Salazar o sr. Soares escreve:
Filho de gente pobre (o sr. Soares gaba-se de ser filho de gente rica), educado num meio muito católico (o pai do sr. Mário Soares foi educado para padre) (...) Salazar cursou o seminário (como o dr. João Soares) chegando a tomar ordens menores (dr. João Soares tomou ordens maiores). (...) Os seus alunos (dele Salazar, evidentemente...) nunca lhe negaram competência... (o dr. João Soares foi considerado no seu tempo excelente pedagogo...) mas diziam dele que era um professor distante, exigente, ensimesmado, sem calor humano - exactamente o que dizem do pai do sr. Soares os antigos alunos do Colégio Moderno - sem porem em dúvida as qualidades pedagógicas do antigo sacerdote; e o contrário do que recordam os discípulos do Prof. Salazar ainda vivos, aquela juventude dos anos vinte, saída da Lusa Atenas, que espalhou a fama do técnico de finanças e, no fundo, foi responsável pela sua entrada para o governo de Vicente de Freitas, em 1928.
A sua formação cultural e política (continua o sr. Soares) foi feita nos meios católicos e ultra-conservadores... A do dr João Soares também - só que este, quando chegou à idade da razão por ser a das maiores loucuras, atirou com a sotaina às malvas, aliou-se à esquerda republicana e anti-clerical dos últimos anos da Monarquia e, em 1911, iniciou-se na Maçonaria com o nome simbólico de Rousseau (...) atingindo o grau 32 do Rito Escocês Antigo e Assente do Grande Oriente Lusitano Unido (*).
O contrastante paralelismo entre as duas personalidades é, também aqui, evidentíssimo: o Dr. Oliveira Salazar foi um ultra-conservador, filiado no CADC [Centro Académico de Democracia Cristã] que usou o pseudónimo de Alves da Silva nos artigos para o "Imparcial", o dr. Lopes Soares, filiado na Loja Paz do Gr.Ori.Lus.Un., foi ultra progressista e anti-clerical com a alcunha esotérica de Rousseau. Será que o dr. Soares não perdoa ao pai autêntico o ter-se filiado na Maçonaria e ter sido apaniaguado de Afonso Costa? E que, representando inconscientemente o dr. João Soares na figura de Oliveira Salazar, se vinga neste das pseudo afrontas que recebeu do outro?
Membro do Centro Católico - escreve ainda Soares - Salazar chegou a ser deputado em 1921. Tentou uma vez usar da palavra no Parlamento - foi um fracasso.
Se a historieta fosse verdadeira, quer dizer, se Salazar tivesse tentado usar da palavra na Câmara dos Deputados, com certeza que teria fracassado, tanto que ele era o contrário de um parlamentar. Infelizmente a anedota é falsa.
Salazar assistiu a uma única reunião do Parlamento: a da inauguração da sessão legislativa, no dia 25 de Junho de 1921. Não interveio - porque ninguém interveio, ocupados os pais da Pátria em elegerem a mesa e em organizarem as comissões. Nunca mais regressou ao palratório de S. Bento, antes do advento do Estado Novo. Mesmo assim, graças certamente ao seu prestígio científico, elegeram-no membro da comissão do orçamento, e da comissão de estatística, e da comissão da instrução superior - e para presidir a comissão de inquérito aos serviços do ministério das Colónias - apesar de ausente.
Aquele Parlamento foi dissolvido depois da revolução do 19 de Outubro. Salazar não teve ocasião de fazer ouvir a voz de falsete nos espectáculos de S. Bento senão depois do 28 de Maio. O mesmo aconteceu ao dr. Lopes Soares que, eleito deputado para a sessão legislativa de 1915-1916, posto que tenha comparecido a várias reuniões parlamentares, nunca fez ouvir a maviosa voz.
Toda a crónica do "Público" é conduzida neste tom de revoltada filiação. Até na crítica que não chega a haver à obra do Dr. Salazar se pressentem os recalcamentos do sr. Soares. O pai é o personagem constantemente descrito pelo sr. Soares. Salazar surge apenas como um pretexto para o articulista cevar os seus rancores de menino, as amarguras da infância sem amor e da adolescência mesquinha: o pai tirano com a vida irremediavelmente estragada pelos erros da juventude; o político falhado e vencido por outro político (antigo seminarista também) mais feliz e persistente; o homem honrado que toda a vida foi pobre mas que, enriquecido graças à tranquilidade que o Estado Novo lhe dava para trabalhar, não via com bons olhos nem a liberdade do filho mais novo, nem as suas aventuras políticas que poderiam pôr em perigo o funcionamento do Colégio Moderno, fonte da sua recente abastança.
Salazar - prossegue Soares - não foi um "duce", nem um "führer" nem sequer um caudilho; nunca se fardou (...) Ficou sempre como um civil muito lente de Coimbra, distante, secreto, composto! Nunca gostou de manifestações, nem se sentia bem entre as massas populares ou ao calor das intimidades, dos correligionários mais entusiastas (...) Um ar tímido de eterno "défroqué" não se sentia manifestamente à vontade nas vestes do "condottieri".
Consagrado ao trabalho "casou-se com a Pátria" (...) Por isso não tivera tempo de constituir família. Tanto bastou para que a Oposição, o chamado reviralho malevolamente o proclamasse misógino, se não coisa pior aos olhos do marialvismo lusitano. Mas não. Sempre apreciou o convívio feminino e não só, ao que parece, nas suas formas platónicas (...) E desde logo (fulana) a sua delicada companheira (...) que incontestavelemtne foi a "sua mulher" até ao fim da vida, à semelhança das amas dos padres, descritas por Camilo muito ao estilo do séc. XIX.
Não fora o caso do artigo ter um carácter evidentemente psicasténico - o menos que se poderia dizer deste naco de prosa é de que é deselegante. Principalmente para o dr. João Lopes Soares. Escrito pelo filho dum despadrado chega a ser patético. São as frustrações familiares reprimidas do ilustre estadista que de novo vêm à superfície do seu espírito. O sr. Soares na ânsia inconsciente de apagar uma recordação frustrante, esquece-a - e deixa-se ir, continua a deixar-se ir - na corrente dos boatos que, durante quarenta anos, salpicaram a honorabilidade da sra. Maria. Sem querer, contudo acaba por fazer recordar publicamente a sua mais amargurante recordação esquecida: que o pai era padre e vivera com a mãe maritalmente à semelhança dos padres descritos por Camilo muito ao estilo do séc. XIX.
Isto se verifica, verificando a profunda injustiça que o sr. Soares faz a seu pai. O dr. João Soares foi uma personalidade superior. Para além da actividade pedagógica. Mesmo politicamente. Envolvido na intentona de 26 de Agosto de 1931, ao lado do pai da sra. D. Maria de Jesus Barroso Soares, foi preso, deportado para os Açores e exilado em Espanha. Depois nunca mais se meteu em política. Nem nas campanhas eleitorais de Norton de Matos em 1949, nem na de Humberto Delgado em 1958. O ensino, a partir de 1935, foi toda a sua vida - o ensino e as preocupações que o filho mais novo lhe dava e que ele supunha sempre metido pelas caixas dos teatros ou em modestas pândegas pelas "boîtes" lisboetas como qualquer outro filho família da pequena burguesia dos anos cinquenta.
Nem essa vida política e docente irrepreensível do pai o sr. Soares lhe perdoa, ao que parece. Ministro das Colónias num Ministério do Dr. Domingos Ferreira (antigo sacerdote como ele) o dr. João Soares foi dos melhores ministros das colónias da I República. Os seus três meses de governo, em 1919, ficaram marcados por medidas que perduraram e resolveram vários problemas pendentes. João Soares considerava as colónias parte integrante do território nacional. Como republicano histórico, defendeu-as com a alma e o coração. Foi por elas que Portugal se envolveu na I Grande Guerra. Por elas morreram muitos milhares de soldados portugueses nos Campos da Flandres e nas savanas africanas. Por elas se passou fome em Portugal, os portos e a pobre marinha mercante de então bloqueados pelos submarinos e corsários alemães. Ao chegar ao governo, o dr. João Soares só se preocupou em justificar tamanhos sacrifícios. Um autor insuspeito - o dr. Joaquim Veríssimo Serrão, na sua monumental "História de Portugal" - descreve assim a obra do dr. João Lopes Soares como Ministro das Colónias:
O novo grande impulso para a valorização das possessões em África e do Oriente ficou a dever-se à passagem do João Lopes Soares pelo Ministério das Colónias. Embora reduzida no tempo, de 30 de Março a 30 de Junho de 1919, a sua política, assente numa boa formação pedagógica, fez dele um dos mais fecundos estadistas no campo da administração ultramarina. Restabeleceu as cartas orgânicas (...) e deu novo estatuto às missões religiosas (...) foi ainda o ministro João Soares quem retirou do ponto morto a resolução do problema bancário das colónias portuguesas. O dr. joão Soares portou-se sempre como um verdadeiro patriota. O filho acabou por destruir a obra do pai.
Não vale a pena ir mais longe. Se se quisesse responder cabalmente à prosa do sr. Mário Soares, seria necessário transcrever o artigo todo (linha por linha). A descolonização exemplar é, talvez, o último gesto de vingança que Soares comete contra o pai dominado pelo seu complexo de Édipo.
Desbaratando o Ultramar Soares julga apagar, para sempre, das páginas da História de Portugal, o nome do pai. Simbolicamente, em termos de psicanálise, comete um parricídio.
Mas há mais: ao referir-se à tacanha relação que - diz ele - Salazar - homem pobre - tinha com o dinheiro - o sr. Soares volta aos seus velhos recalcamentos. Era pública e notória a economia do dr. João Soares. Nos meios da pequena pândega lisboeta dos anos cinquenta e sessenta, o sr. Soares era conhecido como um pelintra: o paizinho não lhe abonava mais que o indispensável. Para viver na deportação de S. Tomé em 1972 teve o sr. Soares que aceitar o generoso auxílio do seu amigo Jorge de Melo, dono da CUF, que lhe arranjou um chorudo e mírifico emprego naquela província ultramarina, mais bem pago do que o próprio governador. Em Paris também foi o capitalista Manuel Bullosa, quem o sustentou - que o dr. João Soares não abria os cordões à bolsa. O sr. Soares dá a entender agora que o pai lhe deixou uma grande fortuna - e é bem de crer que sim, pois os terrenos da estrada de Malpique, a quintarola em Nafarros, a casa do Vau no Algarve debruçada sobre o mar, e segundo se diz - a próxima compra duma quinta em Monchique - tudo adquirido depois do 25 de Abril - não poderiam ser possuídos em tão pouco tempo, se o sr. João Soares não tivesse deixado aos filhos uma grandíssima fortuna. Tudo junto pode ser que valha um milhão de contos. Não é em quinze anos que se ganham esses contos tais, se os não tivesse recebido em herança.
A aparência de mediania que o sr. Soares exteriorizava antes da gloriosa revolução dos cravos - era causada pela relação tacanha que o senhor seu pai tinha com o dinheiro, incapaz de gastar um tostão mal gasto, sujeito probo e poupado que, com desgosto, observava a prodigalidade do filho mais novo.
Não há que ver: o breve perfil de Salazar que o sr. Mário Soares escreveu, parece muito mais o breve perfil de sr. João Lopes Soares, do que um estudo biográfico sobre o fundador do Estado Novo. Onde está Salazar podem os leitores pôr João Lopes Soares e retirarem da prosa as divagações irónicas e sobranceiras que o sr. Soares faz, procurando simbolicamente atingir o homem que até 1968 governou Portugal durante quarenta anos.
Soares não discute a política financeira de Salazar porque não está academicamente habilitado para isso. É uma prova de honestidade e humildade intelectuais. A política externa, todavia, resume-a a um fortuito encadeamento de propícios azares que, se o Hitler tivesse ganho a II Guerra Mundial, teriam sido fatais para o país. O facto histórico e incontroverso de Salazar nunca ter viajado é prova provada de que o génio diplomático Salazariano é um mito inventado pelos seus correligionários. Para ele que é o Pepe Rápido da Diplomacia, o Speedy Gonzalez da política externa (destruiu em poucas semanas um Império que levara cinco séculos a construir) isso deve ser um pecado capital... Para quem tem como único compêndio diplomático "A Volta ao Mundo em Oitenta Dias" é, com certeza, uma imperfeição fatal. Os êxitos, portanto, foram mero produto da sorte...
Sistema político cujo único valor absoluto é a quantidade (tudo o mais é relativo) esta democracia tem de ser, por força, mediocracia: os homens superiores quadram-se mal com o seu igualitarismo tendencial. Verdadeiramente só lhe interessam os medíocres, é por isso que o alevantar da cabeça de um, obriga a baixar a cabeça dos outros. O dr. João Soares foi um homem superior, Salazar também. Carregados de defeitos ambos; cheios de qualidades os dois. O sr. Mário Soares não lhes perdoa. É "democrata".
Medíocre, mediocridade e mediocracia usam-se aqui com a sinonímia que lhes dá o Grande Buarque: medíocre como sinónimo de pessoa sem relevo, vulgar, ordinária ou mediana; mediocridade como a qualidade intrínseca do medíocre; mediocracia, significando o predomínio social e político das classes médias, da burguesia, dos medíocres. O sr. Soares não é muito estúpido, nem muito inteligente - antes pelo contrário. honesto q.b. detesta cordialmente o Catão. Eu também. Sem ser analfabeto tornou-se conhecido pelo vasto leque das suas ignorâncias. Não sendo o cúmulo da má educação, já não escandaliza quando se porta mal à mesa: toda a a gente o desculpa, conhecendo-lhe os antecedentes. É o expoente máximo da mediocridade nacional. Por isso devemos respeitá-lo como símbolo vivo do regime que gloriosamente nos governa."
É o que sofremos. Nem o dr. João Soares, nem o Dr. Oliveria Salazar cabem inteiros neste quadro mediocrático (in Salazar sem Máscaras, Nova Arrancada, pp. 137-143).
* Dicionário da Maçonaria Portuguesa - A. H. Oliveira Martins, 1.º Vol. L357/58 - Ed. Delta Lx. 1986.
5 comentários:
J Pulido23 de abril de 2020 : Um facínora que na sua ignomínia ultrapassou o M de Vasconcelos
João Albuquerque23 de abril de 2020: Um retrato bem tirado ao Mário Soares. Costuma referir-se que, em França, vivia bem. Um dos "heróis" que eu conhecia, daqueles que, para fugirem à guerra das colónias, fugiam para França, disse-me que o Mário Soares não se ensaiava muito para cravar este e aquele. Foi ainda antes do 25 de Abril que, em tempo de campanha para eleições, ouvi a primeira intervenção política de Mário Soares. Uma desilusão. Disse ele que o país estava a fazer uma despesa enorme com a guerra das colónias e que bastava acabar com a guerra para todos os portugueses ficarem ricos. Um apelo à ganância dos portugueses que os presentes aplaudiram entusiasticamente. Apelo a contar que a ganância o ajudasse a ele a vender as colónias aos interesses internacionais. Eram estes os nossos "democratas".
Victorino da Costa, 15 de maio de 2020: : Com a idade alguns dos meus órgãos internos enfraqueceram entre eles o estômago. Falar sobre esse complexado de Édipo "vendedor" de propriedade alheia malcriado e fanfarrão iria fazer-me vomitar... Que a terra lhe seja leve... como o chumbo !!!
cantabro29 de maio de 2020: Nihil novi sub sole...
Silva Silva 27 de julho de 2020: Uma análise muito bem conseguida sobre a personalidade de quem mais danos causou ao país desde a sua fundação. Esperemos que após os seus serviçais estarem bem enterrados a história lhe faça justiça. A maior Vergonha e incompetência que alguma vez dirigiu esta nação. Um abraço para os que ainda continuam lúcidos.

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