quinta-feira, 16 de julho de 2020

Poderá Putin parar a provocação?



Em apoio da emoção de José Pacheco Pereira, em magnífico texto descritivo, na referência à reconversão da Basílica de Santa Sofia em mesquita, por ordem de Erdogan, transcrevo, da Internet, a Notícia de última hora:
«O Presidente russo, Vladimir Putin, transmitiu hoje ao homólogo turco, Recep Tayyip Erdogan, o desagrado que gerou na Rússia a decisão de reconverter a antiga basílica de Hagia Sophia (Santa Sofia) em mesquita.»
Ficamos, pois, esperançados de que a magnífica Basílica, hoje Museu, não perderá a sua identidade que certamente ofende o bom gosto de quem, como Pacheco Pereira, lhe reconhece a História e a arte arquitectónica. Releiamos o texto de Pacheco Pereira para, ao menos, colhermos um pouco dessa presença física de grandiosidade etérea.
OPINIÃO: A divina sabedoria
Na Aya Sophia não se sai como se entra, não se chamasse à coisa “divina sabedoria”, mas entrar como mesquita não é a mesma coisa que entrar num museu.
JOSÉ PACHECO PEREIRA  PÚBLICO, 11 de Julho de 2020
Duvido que alguém preste muita atenção ao facto que motiva este artigo: a ameaça do retorno da Aya Sophia da sua actual função de museu para ser mesquita de novo. (Uso o nome turco, em vez do grego Hagia Sophia, mas como todas as coisas que têm muita história, tem muitos nomes.) É um ataque desnecessário e puramente político a um local dos mais importantes da nossa história comum do Ocidente, incluindo a própria Turquia, e que nada tem de religioso. Na própria história dos locais sagrados do Islão este nunca foi muito relevante. O significado mais forte desta opção é o abandono de uma das decisões fundamentais de Atatürk na sua tentativa verdadeiramente revolucionária de laicizar a Turquia. É contra isso que vai Erdogan.
Aya Sophia foi uma igreja cristã ortodoxa, uma igreja cristã latina, depois uma mesquita (estão lá os minaretes que foram acrescentados) e, por fim, um museu, no milénio e meio da sua história. As datas cruciais são 1453, 1931-5, mas estamos em 2020 e o significado deste processo, na Turquia de Erdogan, é um ainda maior afastamento do resto da Europa. Neste processo, a União Europeia tem muitas culpas: prometeu à Turquia o ingresso na União, se cumprisse determinadas condições, a Turquia cumpriu-as, e depois tiraram-lhe o tapete. Erdogan está lá também por causa disso, agora sob a asa sinistra de Trump, cujo secretário de Estado Pompeo, todos muito religiosos, já lavou as mãos do futuro da Aya Sophia.
A transformação de museu em mesquita não é inócua do ponto de vista político e geopolítico e implica riscos para o património cultural preservado até hoje. O grande mosaico do Cristo Pantocrator e outros mosaicos bizantinos terão de ser de novo emparedados, como estiveram muitos séculos, e muitos detalhes da história cristã, por todo o edifício, terão de ser retirados ou escondidos.
A Aya Sophia é um daqueles locais difíceis da história pelo excesso de sagrado e pela densidade da sua própria história, tal como Jerusalém. Como todos os turistas acidentais visitei várias vezes a Aya Sophia. Como todos os turistas acidentais intelectuais, há sempre a presunção de que o olhar é diferente, ou de que, iludindo os outros visitantes comuns, se está lá como um viajante do século XVIII que foi visitar a Porta partindo de Marselha à procura do exótico. Tretas. Mas o que se vê é o que se vê. Quando entrei pela primeira vez, repeti a sensação atribuída ao seu construtor, o imperador Justiniano, sobre a dimensão da cúpula, um feito arquitectónico e de engenharia que permitiu resistir a terramotos, vandalismo, destruições. A gigantesca cúpula, aliás, foi o modelo para as mesquitas, porque não havia precedente arquitectónico no Islão e Aya Sophia sempre foi durante séculos o maior prédio do mundo. Mas eu sou homem de detalhes e perdi-me pelos detalhes e ainda hoje, se lá voltar outra vez, vou de novo aos detalhes. Os detalhes e as histórias à volta deles, meias lendas, meias verdades.
Começo pelo Umbigo do Mundo, o Omphalos, o círculo de mármore onde eram coroados os imperadores bizantinos. Não é todos os dias que se está no Umbigo do Mundo. À minha volta, no piso térreo, se houver fantasmas, passarão os cruzados latinos da Quarta Cruzada que profanaram a catedral, entrando com um carro de bois com prostitutas, quando da conquista de Bizâncio no século XIII, no meio do saque generalizado da cidade. Muito do saque foi para Veneza, cujo doge Dandolo, que participou no assalto, teve os ossos atirados aos cães e depois colocados num túmulo térreo, que só foi marcado no século XIX numa galeria da catedral. Este foi um dos incidentes que mais marcaram o cisma entre os católicos e os ortodoxos, pelo qual o Papa pediu desculpa.
Outro grupo de fantasmas é o dos que estiveram na última missa realizada na catedral imediatamente antes da invasão otomana, com a presença de Constantino XI Paleólogo, o último imperador bizantino. Saiu dali para combater e desapareceu, nunca tendo sido encontrado o seu corpo. Numa versão sebastianista, corrente entre os gregos da diáspora, não teria morrido e estaria no interior das muralhas à espera de sair e libertar a cidade dos turcos. Até hoje.
Subindo às galerias, é a explosão da grande arte bizantina dos mosaicos, em honra de vários imperadores e imperatrizes e sob a égide de Cristo Pantocrator, omnipotente, todo-poderoso. Olha-se para estas figuras, que sobreviveram aos iconoclastas, ao emparedamento, e nunca há cansaço, há sempre novos detalhes numa figuração densa de símbolos religiosos. Verdade seja dita, também as devemos ao sultão Abdul Medid, que as protegeu e restaurou.
Na Aya Sophia não se sai como se entra, não se chamasse à coisa “divina sabedoria”, mas entrar como mesquita não é a mesma coisa  que entrar num museu. Não porque haja algum mal nas mesquitas – Istambul tem algumas das mais belas mesquitas do mundo –, mas o olhar muda, os gestos mudam, e muito do que hoje vemos não pode ser exposto numa mesquita sem violar preceitos do Islão. Lá fora há muitas distracções, desinteresse e geopolítica e cá dentro é um assunto tão remoto como a estrela Sirius, mas temos gente que sabe história e é sensível à cultura que podia pressionar a embaixada e a nossa diplomacia. Em nome inclusive da herança de Mustafa Kemal Atatürk, o pai dos turcos, coisa que não é certamente Erdogan.
Historiador
COMENTÁRIOS
nelsonfari EXPERIENTE: JPP preferiu não evidenciar os propósitos conjunturais de Erdogan para a tomada desta decisão. Mas a mera sobrevivência política justifica tudo, o que historicamente é sintomático que se trata de um gesto caprichoso dum líder ocasional, um jogador de xadrez entre a questão da Líbia e os interesses particulares e próprios da Turquia e da Grécia na exploração do petróleo no Mediterrâneo. É isto a captação do eleitorado religioso extremista para a contenda eleitoral em que Erdogan joga o futuro. Obrigado a JPP pelo texto cristalino e puro, expurgado das preocupações materiais do presidente Erdogan. Virgens ofendidas as do costume: França, EUA, e ONU deploram o comportamento de Istambul. Como se pudessem dar lições de autenticidade a alguém. Pompeo, na passada quarta-feira passada, fez declarações de circunstância, sem chama:"...exortamos a Turquia a continuar a conservar Santa Sofia como museu, como ilustração do empenhamento em respeitar as tradições culturais e a História da Turquia, assegurando que continua aberto a todos.".
AndradeQB INFLUENTE: De Erdogan fica a ideia de que tem tantas motivações religiosas como qualquer rematado ateu. Anda a apoiar a onda religiosa que lhe convém para correr com a tralha ocidental o que, a atender, ao unanimismo que no ocidente existe par acabar com tudo que faça recordar que tal ocidente existe, deveria ser agradecido. Escusava, por exemplo, o mayor de Londres de andar a gastar dinheiro a encaixotar estátuas, chegava pedir esse serviço a Erdogan que ele teria em Londres certamente muita gente para as retirarem gratuitamente. 12.07.2020
A INICIANTE: Obrigada por este artigo tão interessante!   Ferrel EXPERIENTE Muito obrigado pelo seu texto. Lutar pela cultura é lutar pelo respeito humanista. Parabéns ao Público pela coluna.
Jose EXPERIENTE: Texto fantástico de José Pacheco Pereira a quem desejo a completa recuperação da saúde. Há vários locais no mundo tão carregados de significado que suscitam essa explosão de sentimentos vibrações e inquietações que aqui nos descreveu a propósito daquele local de cá e de lá do mundo, do céu e da terra, dos homens, dos seus fantasmas, do espírito, do sonho, da esperança, do encontro e desencontro de nós com os outros e connosco mesmo. Mexer nesses locais é mexer em todos nós. Há sempre quem ouse mexer nesses pontos vitais uma vez mais. O que isso significa é que nos movemos como Galilei disse da Terra. Ali há um retrocesso, uma reconquista islâmica face à expansão cristã. Deuses e demónios mexem com os homens apesar de ateus ou agnósticos.
José Cruz Magalhaes MODERADOR: O que move Erdogan é a tentação de consolidar a potência regional, que é a única coisa que resta à Turquia, na impossibilidade de reconstruir um império. A religião e a apropriação dos seus ícones e monumentos é sempre um símbolo do poder, tanto maior quanto maior for a grandeza, a vetusta imanência, ou o simbolismo que detenham. A tomada de Constantinopla e o fim do Império romano-cristão do Oriente é uma jornada de consagração do poder islâmico e a apropriação e transformação da sua Hagia Sophia em Mesquita, tem o poder de consolidar o poder de Estado de qualquer sultamato,ou emirato que, salvo as devidas distâncias, é a tradução fiel do que almeja o regime de Ancara. 11.07.2020
José Cruz Magalhaes MODERADOR: Aproveito a oportunidade para salientar a excelência do texto de JPP, embora sem ilusões em qualquer iniciativa diplomática, muito menos cívíca, como propõe, quanto mais não fora, pela ausência de qualquer política própria que exceda as aparências ou as conveniências.  Espectro EXPERIENTE: Eu sou um pouco como aquelas plantas adventícias - aproveito os escritos dos outros para defender as minhas ideias (claro que as plantas adventícias não devem ter ideias, portanto aproveitam-se da seiva). E a botânica aqui serve para desafiar o PP a defender o ateísmo, que ele diz professar, se é que de um ateu se pode dizer tal coisa (um ateu não professa nada de irracional e ilógico, como o são todas as religiões). Vemos por aqui crónicas diárias e semanais a defender várias religiões e não vejo um único ateu com coragem para defender o ateísmo (serão ainda resquícios já genéticos da SI papal?!). Há quem defenda o papel histórico das religiões (a já enfadonha cultura "judaico-cristã"), mas façam as contas por alto e verão que os prejuízos para a humanidade são bem maiores que os lucros.
fernando ferreira franco INICIANTE: Talvez as contas não se façam dessa forma e ignoremos até que a situação actual de pandemia tem muito a ver com o que, sub-repticiamente, PP defende aqui. A cultura judaico-cristã continua a ser o melhor suporte e catalisador do turismo de massas, sendo os valores patrimoniais ao mesmo tempo um acervo de cultura e de subserviência à grandiosidade dos feitos históricos. E como, por ora, continua a facturar, vamos continuar a assobiar para o lado e a fingir que a história não nos esconde o essencial.  A. Martins INICIANTE. Defender o ateísmo ? No século XX, os líderes ateus mataram massivamente e sem paralelo com qualquer outra época passada. O ateu Hitler nos campos nazis refinou o assassinato de milhões nas câmaras de gás; O líder comunista ateu Estaline matou milhões (segundo historiadores o triplo de Hitler) seja de camponeses à fome (só na Ucrânia foram 6 a 9 milhões), com o roubo dos alimentos do Halodomor, na própria Rússia, outros tantos milhões de camponeses pobres e outros tantos milhões de opositores nos campos de concentração (Gulag) da Sibéria; Mao Tsé Tung, outro líder comunista ateu, e os seus seguidores (Gang dos 4) na China, mataram milhões de pessoas (alguns historiadores dizem que mataram mais que Estaline). Então, podemos entender que ser ateu, não é garantia de superioridade moral. Ferrel contestou o meu comentário de resposta a Espectro, dizendo, noutro post mais acima: ... que Hitler não era ateu. Ferrel está enganado, porque muito antes de tomar o poder já Hitler tinha abandonado as suas crenças religiosas. Inicialmente, os nazis não atacaram católicos e cristãos, mas depois de algum tempo começaram a fazê-lo, destruindo até mosteiros. Na Polónia, por exemplo, enviaram milhares de padres para campos de concentração. Só no campo de Dachau, perderam a vida 2000 clérigos católicos. Muitos cristãos lutaram contra o nazismo e até o papa Pio XI fez uma encíclica condenando o nazismo, o anti-semitismo e o racismo. Hitler não era religioso, perseguiu algumas religiões e até roubou seus símbolos (por exemplo, a suástica, um antigo símbolo budista). 11.07.2020
Mario Coimbra EXPERIENTE: Esqueceu-se que a Basílica de.S.Pedro fica ao lado do Museu do Vaticano. Não é um museu. O Vaticano é muito pequeno mas mesmo assim tem espaços próprios. Além de que Hagia Sophia é um símbolo de União de todas as religiões. Este acto de Ergodan é ofensivo, beligerante e para pessoas como eu que me considero super moderado, uma afronta e mais passo para nos passar a todos do centro para um dos lados. fernando ferreira franco INICIANTE: No mundo intelectual, as superstições não são diferentes das que se ostentam no círculo mundano, apreciam-se os detalhes por mera formalidade de adesão às premissas do conteúdo. O problema é que quando penetramos nos detalhes perdemos a noção do volume e aqui, uma história de lugares que se erigiram em favor de tiranias e concomitantes vassalos, só pode tornar-nos incoerentes diante dos princípios que defendemos, sejam existenciais, sejam ideológicos. De que nos serve ir aos detalhes se, para serem verdadeiros, nos impedem de ser justos em relação ao seu significado. Não precisamos de ir aos detalhes do mercado de escravos para tirarmos ilações do seu fundamento. Quanto às mais valias arquitectónicas, é conhecida a relação entre as tiranias e a ostentação... só o dinheiro compra tudo. 11.07.2020
Mario Coimbra EXPERIENTE: Caro JPP, quando li a notícia ontem arrepiei-me. Este local é tão central e unificador que esta alteração só pode ser vista como uma provocação de Erdogan. Mais uma. E mais uma vez vamos caminhando para um futuro mais negro, binário e onde a história se vai cobrindo. Ainda hoje me lembro quando entrei na Hagia Sophia, foi deslumbrante, foi esmagador. É um dos locais que nos reduzem ao que somos. Passageiros. Infelizmente temos alguns condutores que só pensam em si e na sua glória. Erdogan não só é perigoso como foi deixado à solta por Obama e Trump nem se fala. Foi um erro deles e nosso, Europa. Só mais um pequeno ponto. Ao lado da Hagia Sophia está uma das mais belas mesquitas. A Mesquita Azul. E quem visitou as duas percebe bem o que significa fazer regressar HS a mesquita. 11.07.2020


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