Um belo texto sentido, de expressão de
um amor e admiração únicos – suponho mesmo que generalizado a toda a gente capaz
de amar e de admirar e de sentir com a mesma gratidão e intuição analítica que
a expressa por Maria João Avillez. Impossível
não concordar. Sentimos igual gratidão por todos aqueles que ajudaram à
dignificação da língua e da alma portuguesas, é certo. Mas Amália soube aliar
uma intuição interpretativa de estados de alma – de dor, paixão, alegria e até
garotice – a uma voz sem paralelo que lhe mereceu o estatuto de “A VOZ”. Daí o
estar de acordo com o título da crónica de MJA: Milagre
foi isto: ter-nos acontecido a voz dela.
Milagre foi isto: ter-nos acontecido a voz dela /premium
Nasceu com as cerejas, ninguém sabe
bem quando, mas alguém a fez nascer oficialmente a 23 Julho. Amanhã mesmo,
faria cem anos.
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 22 jul
2020
1Era
um dia de Primavera. Fui encontrá-la vestida de vermelho na sua casa da Rua de
São Bento, numa sala quadrada cheia de flores (“tenho esta loucura, mesmo que
tenha a casa até ao tecto com flores, eu trago sempre mais…”) e as paredes revestidas
de azulejos azuis e brancos. Mas porventura só aquelas paredes, se falassem,
seriam capazes de contar a história desta mulher e explicar-nos o seu destino. Ela
não era. Trazia a vida na pele e o fado no
peito e isso chegava-lhe, as palavras eram só para cantar. Talvez por isso, os
encontros que tive com Amália eram, antes do mais, uma atmosfera. E o sussurro
de um estado de alma que escorria magoado e fatalista, por entre o que ia
dizendo.
O coração batia-lhe desordenado, ela nem podia bem explicar, “sou
toda assim”.
Nasceu com as cerejas, ninguém sabe
bem quando, mas alguém a fez nascer oficialmente a 23 Julho. Amanhã mesmo,
faria cem anos. E por isso
deixei a memória escorrer para dentro desses momentos, ou profissionais –
entrevistas, reportagens – ou pessoais: uma ou outra ida à Rua de S. Bento onde
numa delas me assinou antigos “LP” seus, que amorosamente eu guardava; espectáculos,
homenagens, uma festa em sua casa para Amália nos mostrar a tela que o pintor
Luís Pinto Coelho dela acabara de pintar, visitas aos camarins. Num dos
quais, no Olympia de Paris, aterrei uma noite, de nó na garganta, com aquilo a
que assistira: a rendição de um público estrangeiro que, com um pasmo
deslumbrado explodira em aplausos, enchendo o ar da sala de adjectivos polifónicos.
Era a voz que
Deus lhe dera. Cantada uma vez mais com o medo que sempre sentia e o fulgor do
seu génio.
E começou a
ser assim em cima de todos os palcos do mundo, esgotando as plateias das mais
díspares geografias. “Ouvia tantos elogios e coisas bonitas quando cantava
lá fora. Começaram a dizer coisas extraordinárias, que eu era um fenómeno como
o Nijinski… Aqui é que nunca diziam nada.”
2Uma
noite de Julho de 1983, Amália foi cantar à Aula Magna. Chegara pelo fim da
tarde, discreta, óculos escuros. Pudemos alinhavar duas ou três coisas sobre a
entrevista que no dia seguinte lhe iria fazer para o Expresso. Mas o tempo já
estava em contagem decrescente, a aflição quase por completo a tolhia. No
camarim, dois vestidos pendurados, longos, lindíssimos, negros: “Ainda não sei
qual vou pôr, é conforme os nervos. Se estiver muito mal, escolho o que me
defende mais, se não, levo o outro.”
Uma
hora depois, subia ao palco como se fosse para o calvário. O milagre
reeditava-se, Amália esquecia-se de si mesma. Ela era a sua voz e o resto não
tinha importância (e ninguém mais do que ela própria o percebera desde sempre.)
Das
vezes que a via, o que retinha mais que tudo, porventura mais do que o
simplesmente poder estar com ela, dando fermento e alimento à admiração que lhe
tinha, era a sua raríssima qualidade humana. Foi sempre assim, Amália
surgia-me igual, inteira e intacta na sua integridade. Uma forma de ser também
feita de inocência e de uma credulidade que quase se confundia com candura (com
muito sofrimento lá dentro).
Durante longas décadas teve o mundo aos pés, foi abençoada pelos
deuses da fortuna e da glória, provocou a paixão, semeou o desassossego. Nunca
nada a maculou, ninguém a corrompeu. A amplitude quase demencial do seu sucesso
jamais lhe perturbou o instinto (“eu não
sou culta, tenho de dar a volta às coisas”), ou impediu que seguisse o veio
da sua prodigiosa intuição.
Foi
tudo isso que lhe foi ditando escolhas e gestos: “Os meus amigos dizem que eu peço desculpa
de ter sucesso, tenho um pavor, é verdade…”
Fazia pausas, punha-se subitamente séria. “Não sei dizer o que é o
fado, está tão preso a mim… é uma música que dá para o meu feitio cantar. É o
destino, é a minha vida é, são as coisas que trago comigo.” Silêncio.
“O fado é mistério, ninguém
pode explicar o que ele é. Eu cantarolava em casa, nunca pensei cantar como
Amália Rodrigues.”
3Mas
cantou, e fê-lo “no mundo todo”: América, Japão, Europa toda – incluindo a
ex-URSS e alguns países do então Leste europeu –, América Latina, África. “A cantar eu passava das 48 pulsações
para as 190…”
E um dia, de súbito, sem pré-aviso,
estava-se na década de sessenta, ocorre um encontro tão forte, fértil,
fulgurante, que Amália logo intui que estava perante uma descoberta que seria
absolutamente decisiva, de tão “nova” ela se lhe impunha. Era Alain Oulman. Inspiradíssimo músico
e compositor, cidadão interessante e cosmopolita, homem afável, revolucionará –
não há outra palavra – o reportório, a carreira, quem sabe, a própria vida de
Amália Rodrigues. Sentado ao piano com ela debruçada sobre o teclado, Oulman abre-lhe
um novo mundo onde Amália entra como numa revelação: Camões, David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neill, Pedro Homem de Mello.
“Ah, o Alain foi o milagre. Eu
andava à espera que me aparecesse uma pessoa assim. Queria expandir-me, ele foi
o único que me fez esse tipo de música. Há nela uma tristeza e uma profundidade
que me tocam tanto… e fez-me cantar outros poetas.” Revelação,
sim.
“Um dia o O’Neill
escreveu-me um grande fado, A Gaivota. E a música do Alain dá-me para
voar como as gaivotas, umas vezes alto, outras vezes baixo…”
Tinha uma imensa inteligência, apenas
moldada pelo instinto, e usava-a com argúcia e finura. A mesma com que logo
percebeu que Alain era “o
milagre”, oferecendo-lhe as palavras dos poetas e o também
génio das suas composições; a mesma
que a fazia cantar em diversos idiomas sem ter nunca aprendido nenhum, a mesma
que a fazia estar com os grandes deste mundo como se estivesse em casa; a mesma
que, como me disse um dia: “Não
sei porque é que tenho esta intuição, mas tenho. Eu, de repente, olho para a
cara das pessoas e digo para mim, aquele apetece-me olhar para ele, aquele não
me apetece. Ou então, apetece-me muito…”
E
tudo isto ocorria, vale a pena repeti-lo, uma e outra vez, sem que Amália se
tivesse em grande conta. “Ia cantado como sentia em cada momento”.
Muita
gente frequentava a sua sala de azulejos azuis na Rua de S. Bento, onde por
vezes ela quase podia parecer alegre. Ria alto, rodeada de amigos do peito,
brilhava, cantava, conversava com devotos e fiéis (alguns, após Abril de 74,
viraram a fidelidade do avesso, virando-lhe também as costas). Quem lá esteve,
sabe bem como o génio e a boémia enfeitiçavam aquelas tertúlias.
Quando
adoeceu, na década de noventa do século passado, novamente conversámos, desta
vez para o jornal Público.
Foi logo no início do ano de 1997 e – lembro-me como se fosse hoje — encontrar
naquele dia alguém mais triste do que ela ter-me-ia sido impossível. Desta vez,
o que escorria já não era nem o fado, nem o mel dos mais demorados aplausos,
mas só mágoa, só incerteza.
Estava
doente. Um abandono de presságios, “por causa das contas que a vida
fazia com ela”.
Era: “É que, para mim, não cantar é como não estar viva.” Foi: “A minha vida é mesmo uma estranha forma de vida.
Aconteceu-me o destino fazer de mim o que sou.”
4É desta Amália que me lembro, foi
assim que a vi, é ela que quero guardar.
Ainda hoje, não sabendo se era a mulher que se achava a si mesmo de trazer por
casa o que mais me comovia; se era a sua voz que se confundia com o que nos
prometem ser o céu, que mais me interpelava os sentidos. Não importa. Mas de
quantos dedos de quantas mãos precisaria eu para eleger muitos outros “alguéns”
assim? De quase nenhuns dedos, estou hoje certa (sempre o tendo estado).
Há dias Pedro Castro,
dotadíssimo artista da guitarra portuguesa, idealizou e encenou um espectáculo
de homenagem a Amália Rodrigues. Ouviu-se a guitarra portuguesa tocada por cem
guitarristas na escadaria e outros espaços da Câmara Municipal de Lisboa. A
evocação de Amália mereceu o eco e a dignidade inspiradores dessa moldura. Ela deve ter gostado muito de os ouvir. E, ou muito
me engano, ou terá deixado rolar uma lágrima comovida ao ouvir o tão viçoso Joel
Pina, que sempre a acompanhou, a recordá-la
na abertura da sessão. Este maldito vírus que nos consome impediu a festa
que Lisboa e o Museu do Fado haviam preparado para a homenagem festiva dos
gloriosos cem anos de vida do músico, cumpridos esta última Primavera.
Não houve festa, mas houve —
há — Joel Pina a lembrar-nos Amália.
P.S. : A estalajadeira foi chamada às fileiras e, de novo,
convocada a alistar-se no serviço doméstico. Quando for desmobilizada, voltarei.
Até lá, e apesar de tudo – e tudo é hoje tanto! – vivam o Verão como “a única
estação”. Como nos lembrou o poeta Ruy Belo,
que também escolhia as neblinas deste Oeste e as ondas deste Atlântico para
celebrar o Verão.
COMENTÁRIOS:
Maria Nunes: Bonita homenagem a Amália. Obrigada.
Maria Cordes: Que bonito, que
tocante, especialmente a última metade, que prazer que é a sua leitura. Amália,
merece um texto assim.
Próxima Bancarrota: Muito
bem
Manuel Magalhães: Muito bonito
Maria João, dá vontade de pingar uma lagrimita... muitas saudades da Amália e
daquela VOZ que era a nossa alma...
Carlos Chaves: Obrigado
Maria João, por nos tocar o coração com a maneira como escreve.
bento guerra: Inteligente, esperta
e voz única
Cisca Impllit: Um bom texto
sobre uma GRANDE PESSOA! Almas sensíveis.
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