quarta-feira, 8 de julho de 2020

Mais uma pedrada no charco



O certo é que parecia estar tudo a correr bem, apesar dos ameaços. Lá no Norte começou por haver mais casos, e pensei que a zona de Lisboa estava a safar-se melhor, e até o sul. Mas de repente tudo se transformou, e surgem agora as acusações. Ao que parece, não utilizámos a eudaymonia, palavrão que José Fernandes e Fernandes vai buscar a Aristóteles, para nossa ilustração. Fiquemos, ao menos, com o palavrão, eudaimonia, tal como a eugenia, ou a eucaristia… mas só Deus, diz-se, criou a perfeição. E afinal a corona vírus é ou não é coisa de desconfiar? Anda ou não pelos ares? Estamos assim condenados? Que será de todos aqueles que perderam empregos ou salários? Onde encaixa a eudaymonia nessa ruína?

OPINIÃO CORONAVÍRUS
Eudaymonia…
Portugal, caro leitor, perdeu uma grande oportunidade de marcar uma posição no contexto da reabertura na Europa, construída na decisão corajosa do estado de emergência, e que a ausência de rumo, de coerência na estratégia, de coragem nas decisões e falta de cadeia de comando estruturada e hierarquizada deitaram a perder.
JOSÉ FERNANDES E FERNANDES
PÚBLICO, 7 de Julho de 2020
To have shown what ought to be done is not enough; the main problem is to show how it can be done Espinosa (1632-1677)
O título, adaptado do grego clássico, traduz um conceito complexo que, segundo Aristóteles, se podia resumir em procura do bem-estar pela actividade virtuosa de acordo com a razão.
Pareceu-me poder complementar-se pela citação de Espinosa, filósofo holandês – nascido Benedito de Espinosa, já em Amesterdão, cidade que acolhera uma parte da diáspora hebraica e com ela conhecimento, influência, poder intelectual e financeiro. A expulsão dos Judeus da Península Ibérica foi um retrocesso e, porventura, marcou o começo do que Antero de Quental designou por “Decadência dos Povos Peninsulares.
Aplicam-se ao Tempo português actual. Primeiro, de ressaca da ilusão –​ o ignorante chama de milagre os eventos extraordinários da natureza, é outra citação de Espinosa – e, em segundo lugar, grande preocupação pelo descalabro na área de Lisboa (LVT) que atirou o País para uma situação grave. E depois, porque o rumo para o bem-estar individual e colectivo – essência de Eudaymonia – pressupõe um caminho de virtude (verdade) e razão, como assim a interpretava Aristóteles.
A gravidade da nossa situação, caro leitor, percebe-se mais facilmente neste gráfico [1- não colocado no blog] que na enumeração enfadonha das famosas conferências de imprensa dos responsáveis, que bem podiam apresentar uns gráficos que facilitassem a compreensão dos cidadãos.
Isto é, maior prevalência da infecção diagnosticada em Portugal. Estamos bastante pior que países da nossa dimensão – Áustria, Bélgica e Suíça – e do que a Espanha, Itália e Reino Unido. Aceitar que estes dados são a consequência de fazermos mais testes não é correcto, parece um argumento decalcado das proclamações do Presidente Trump. Não é assim; se os identificamos é porque os contaminados existem, estão na comunidade e constituem risco de disseminação. E há dados oficiais interessantes: comparativamente ao Reino Unido (152.315 testes/106hab.) e à Rússia (140.138/106hab), os dois países europeus que fazem mais testes que Portugal (com 118.238/106hab) [2], o seu rendimento efectivo poderá ser maior em Portugal: 28 testes para identificar um positivo, versus 30 para a Rússia e 36 para o Reino Unido.
No contexto europeu, a Suécia, com a sua política de imunidade de grupo e, eventualmente, o Luxemburgo, estarão piores que nós em número de doentes infectados por 100.000 habitantes. Não é propriamente consolador.
Esta é a situação, e não servirá nenhum propósito digno tentar escamoteá-la, enganando-nos e impedindo a concretização das medidas que se impõem.
Em artigo anterior usei a expressão “to run the race until the very end”; isto é, ter um rumo, aproveitar vento favorável, mudar o leme para navegar à bolina consoante o vento, contingências pensadas e preparadas para o que desse e viesse, foco no objectivo, e confiança e segurança que vêm do cumprimento das regras. Não foi assim, infelizmente. O que se passou nestas duas semanas confirmou as piores suposições dum tempo que, tendo sido de melancolia, é agora de tristeza e preocupação, como os sentimentos que perpassam na Sinfonia n.º 5 de Sibelius, um clamor na imensidade da angústia, quase desespero.
É que Portugal, caro leitor, perdeu uma grande oportunidade de marcar uma posição no contexto da reabertura na Europa, construída na decisão corajosa do estado de emergência, no que parecia ser o civismo colectivo, misto de medo e esperança (Espinosa associa estes dois sentimentos) e que a ausência de rumo, de coerência na estratégia, de coragem nas decisões e falta de cadeia de comando estruturada e hierarquizada deitaram a perder.
E este é o drama dos países periféricos e menos desenvolvidos como Portugal. Precisamos de fazer mais e melhor, para nos afirmarmos, conquistarmos espaço, influência e poder nas instituições onde agora se joga o nosso futuro. Já vivemos o suficiente para não ter ilusões.
E foi, neste momento crucial, que o sistema falhou. Vivemos um agravamento significativo da disseminação da doença, em LVT e também no Alentejo e Algarve, onde o que aconteceu – festa em Lagos – foi produto de falta de civismo, incúria, desleixo e incapacidade de fazer cumprir regras.
Sobranceria? Irresponsabilidade? Incapacidade de actuação punitiva exemplar e rápida? Mensagens contraditórias dos responsáveis? Teria sido legítimo exigir outra actuação das entidades públicas e os sinais de fumo eram claros, era só ver e não ignorar. A dedicação e sacrifício de todos os Profissionais de Saúde e outros, das equipas de emergência e transporte, aos assistentes operacionais e forças de segurança, e a competência das equipas clínicas, médicas, de enfermagem e outros técnicos, que ajudaram a evitar o colapso dos serviços de saúde, que mantiveram invejavelmente baixa a taxa de letalidade e permitiram a recuperação de tantos doentes graves, teria merecido outra actuação dos responsáveis sanitários e políticos.
Este é também o tempo da Responsabilidade, de reconhecer o que correu mal e corrigir.
O que não correu bem?
1. A mensagem sobre o comportamento pessoal e social. Não passou. Hoje, 4 de julho, saí com a minha mulher para um curto passeio à beira-rio, pelo fim da manhã. É doloroso ver os magníficos restaurantes com as suas esplanadas preparadas, mas vazias, o belo edifício do MAAT recuperado, mas sem visitantes esperando para entrar, ginastas exercitando-se nos equipamentos disponíveis e ciclistas serpenteando por entre nós, simples passeantes, todos sem máscara! Só nós e um casal brasileiro usávamos máscara. Isto é, em plena recrudescência da Pandemia, a qual não é só à periferia, nos bairros pobres e desafortunados, mas chegará ao coração da cidade se não actuarmos correctamente! E não vi as imagens das praias.
A mensagem não passou e porquê? Incapacidade dos lisboetas ou incompetência dos mensageiros? Leio que se prepara hoje um piquenique político-laboral na Ribeira das Naus, certamente na obediência completa das normas da DGS enquanto as televisões filmam, e depois? E ninguém se interroga que os outros, cansados também de isolamento, das escolas fechadas, dos empregos suspensos, com problemas igualmente prementes, como irão eles reagir? Como irão interpretar estes sinais dúbios e, por que não, retomar convívio, grupos, parties, raves? Levarão a sério a mensagem? Obviamente que não! E não haverá nunca polícia suficiente. Mas que esperavam os responsáveis políticos e sanitários que deram luz verde e autorizaram essa quebra na disciplina que se impunha e que era fundamental cumprir?
2. Ausência de coordenação centralizada da acção, desde i) organização da Saúde, das equipas locais aos Centros de Saúde e hospitais maximizando a integração da informação (leio hoje que há dados incompletos que prejudicaram e limitaram a actuação necessária); ii) transportes inadequadamente organizados: parece que não se mobilizaram empresas privadas porque estavam em lay-off e era preciso qualquer iniciativa legislativa específica para desbloquear a situação e ninguém se lembrou do crónico problema dos comboios da linha de Sintra onde nada foi feito nos últimos anos; iii) desagrado expresso por responsáveis médicos e da Ordem sobre a coordenação hospitalar na regiãoem entrevista do recém-nomeado coordenador de Saúde Pública para a área de LVT publicada em 1/7 neste jornal, soube-se de reunião da ARS-LVT com os responsáveis hospitalares realizada no dia anterior – a primeira?
Foram definidos planos de contingência durante o mês de maio, em que tudo isto podia ser previsível? Estavam prontos para os momentos de necessidade? Houve vozes que alertaram e a experiência dos outros países era sinal de preocupação. Insuspeito de simpatia política pelo partido do presidente da Câmara de Loures, reconheço que alertou bem cedo para a problemática dos transportes, da sua cidade para o centro de Lisboa. Não é a primeira vez que concordo com esse partido, mas discordo completamente que insistam na Festa do Avante e outras iniciativas a que deram cobertura. Um péssimo sinal em tempo de Pandemia! Percebi ontem pela resposta do secretário de Estado responsável pela covid-19 para a área LVT que nada tinha a ver com a organização dos transportes nessa área, a qual era dependente da AML!
Como é possível? Como se quer vencer uma situação destas? Com o poder da burocracia? Com o jogo táctico de influências?
3. Síndroma Astérix? Indignação contra o mundo e em especial contra a pérfida Albion – só faltam os crepes negros na estátua de Camões –, um traço comum na história contemporânea portuguesa.
Recordo este conceito, Foreign policy is an art where dissimulation prevails and it is a value, isto é, adequar o discurso à defesa dos interesses nacionais. Porque é que o senhor primeiro-ministro, no seu tweet, não contrapôs aos dados do Reino Unido, além do Algarve, a Madeira e os Açores, onde a situação está ainda bem melhor controlada? Espero que a nossa diplomacia consiga, pelo menos, negociar corredores de passagem para esses destinos turísticos via Lisboa e assim dinamizar SATA, TAP e indústria turística insular. Do mal, o menos... pode ser que algo de bom ocorra entretanto!
Esta foi a semana de um despertar para uma realidade dolorosa que é preciso não escamotear e é preciso saber ultrapassar. Verificou-se que planeamento não foi prioridade na governação dos últimos seis anos, e daí talvez o apelo à contribuição de um salvador providencial. A TAP é um exemplo da situação, o palito no bolo, como dizia o meu Mestre.
À data que escrevo, já sabemos que todas as principais companhias de aviação europeias que receberam apoio estatal têm os seus planos de contingência prontos, dolorosos para muitos, necessários porventura e que vêm anunciados na imprensa! Nós, que já sabíamos das dificuldades da TAP, que vinham de trás, perdemos tanto tempo em jogos palacianos, verificamos que o Estado, que vinha reclamando o controle da empresa, não tem um plano e precisamos agora de seis meses para preparar um e apresenta-lo à Comissão Europeia! Foram declarações públicas de responsáveis. E ficámos a saber pelo ministro da tutela que o Governo irá desencadear a procura de uma equipa internacional para a gestão da TAP. Concordo, acho excelente ideia, mas faço duas perguntas: primeiro, porque não se utilizaram os meses de disputa para, em paralelo, contemplando a desejada tomada de poder pelo Estado, para fazer essa procura? E segunda, haverá apoio político para isso entre as forças que apoiam este Governo? Ontem, o chefe do Governo garantiu-nos que não haverá nenhum acordo à direita. Há muitos anos, uma das primeiras medidas de Mrs. Thatcher foi escolher e nomear uma liderança externa para uma agonizante British Airways. Recordo a controvérsia, os altos honorários pagos, etc., e como a primeiro-ministra soube impor a decisão do seu governo. O resultado foi conhecido...
Este vai ser o nosso grande desafio, todos estes sectores que são essenciais para o futuro do País e para o qual se impõe uma visão global, panorâmica, informada e isenta. Por isso, caro leitor, esta foi uma semana triste e muito preocupante
Mais uma vez, os Portugueses precisam de uma linguagem de Verdade e de Responsabilidade.
É Tempo para sacudir de vez os tacticismos e conluios partidários, a estratégia de ocupação do Poder pelos fiéis apaniguados, e substituir esse modo de ser e de agir por uma Cultura de Meritocracia e Independência, na Administração, na Saúde, na Educação, na Justiça (o que se passou esta semana é incompreensível: tantos anos depois, múltiplos processos, milhares de páginas, investigações, detenções, etc...não se conseguiu chegar à decisão de realização de julgamento). Que mensagem passa para os cidadãos e para o exterior?
Este vai ser o nosso grande desafio, todos estes sectores que são essenciais para o futuro do País e para o qual se impõe uma visão global, panorâmica, informada e isenta. Por isso, caro leitor, esta foi uma semana triste e muito preocupante.
 [1] Sousa, JA: Relatório COVID19 – nº 76
[2] www.worldometers.info/Dados diários de casos e mortos fornecidos pela OMS
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