O certo é que parecia estar tudo a
correr bem, apesar dos ameaços. Lá no Norte começou por haver mais casos, e
pensei que a zona de Lisboa estava a safar-se melhor, e até o sul. Mas de
repente tudo se transformou, e surgem agora as acusações. Ao que parece, não
utilizámos a eudaymonia, palavrão que
José Fernandes e Fernandes vai buscar
a Aristóteles, para nossa
ilustração. Fiquemos, ao menos, com o palavrão, eudaimonia, tal como a eugenia, ou a eucaristia… mas só Deus,
diz-se, criou a perfeição. E afinal a corona vírus é ou não é coisa de
desconfiar? Anda ou não pelos ares? Estamos assim condenados? Que será de todos
aqueles que perderam empregos ou salários? Onde encaixa a eudaymonia nessa
ruína?
OPINIÃO CORONAVÍRUS
Eudaymonia…
Portugal, caro leitor, perdeu uma grande oportunidade de marcar uma
posição no contexto da reabertura na Europa, construída na decisão corajosa
do estado de emergência, e que a ausência de rumo, de coerência na estratégia,
de coragem nas decisões e falta de cadeia de comando estruturada e
hierarquizada deitaram a perder.
JOSÉ FERNANDES E
FERNANDES
PÚBLICO, 7 de Julho de 2020
To have shown what ought to be done is
not enough; the main problem is to show how it can be done Espinosa
(1632-1677)
O
título, adaptado do grego clássico, traduz um conceito complexo que, segundo Aristóteles, se podia resumir em procura do
bem-estar pela actividade virtuosa de acordo com a razão.
Pareceu-me
poder complementar-se pela citação de Espinosa, filósofo holandês – nascido
Benedito de Espinosa, já em Amesterdão, cidade que acolhera uma parte da
diáspora hebraica e com ela conhecimento, influência, poder intelectual e
financeiro. A expulsão dos Judeus da Península Ibérica foi um
retrocesso e, porventura, marcou o começo do que Antero de Quental designou por
“Decadência dos Povos Peninsulares.
Aplicam-se
ao Tempo português actual. Primeiro, de ressaca da ilusão – o ignorante
chama de milagre os eventos extraordinários da natureza, é outra
citação de Espinosa – e, em segundo
lugar, grande preocupação pelo
descalabro na área de Lisboa (LVT) que atirou o País para uma
situação grave. E depois, porque o rumo para o bem-estar individual
e colectivo – essência de Eudaymonia – pressupõe um caminho de virtude (verdade)
e razão, como assim a interpretava Aristóteles.
A
gravidade da nossa situação, caro leitor, percebe-se mais facilmente neste
gráfico [1- não colocado no blog] que na enumeração enfadonha das famosas conferências de imprensa
dos responsáveis, que bem podiam apresentar uns gráficos que facilitassem a
compreensão dos cidadãos.
Isto é, maior prevalência da infecção diagnosticada em Portugal. Estamos bastante pior que países da nossa dimensão – Áustria, Bélgica e Suíça – e do que
a Espanha, Itália e Reino Unido. Aceitar
que estes dados são a consequência de fazermos mais testes não é
correcto, parece um argumento decalcado das proclamações do
Presidente Trump. Não é assim; se os identificamos é porque os contaminados
existem, estão na comunidade e constituem risco de disseminação. E há dados
oficiais interessantes: comparativamente ao Reino Unido (152.315
testes/106hab.) e à Rússia (140.138/106hab), os dois países europeus que fazem
mais testes que Portugal (com 118.238/106hab) [2], o seu rendimento efectivo
poderá ser maior em Portugal: 28 testes para identificar um positivo, versus 30
para a Rússia e 36 para o Reino Unido.
No
contexto europeu, a Suécia, com a sua
política de imunidade de grupo e,
eventualmente, o Luxemburgo, estarão
piores que nós em número de doentes infectados por 100.000 habitantes. Não é
propriamente consolador.
Esta
é a situação, e não servirá nenhum propósito digno tentar escamoteá-la,
enganando-nos e impedindo a concretização das medidas que se impõem.
Em artigo
anterior usei a expressão “to run the race until the very end”; isto
é, ter um rumo, aproveitar vento favorável, mudar o leme para navegar à
bolina consoante o vento, contingências pensadas e preparadas para o que desse
e viesse, foco no objectivo, e confiança e segurança que vêm do cumprimento das
regras. Não foi assim, infelizmente. O que se passou nestas duas semanas confirmou
as piores suposições dum tempo que, tendo sido de melancolia, é agora de
tristeza e preocupação, como os sentimentos que perpassam na Sinfonia
n.º 5 de Sibelius, um
clamor na imensidade da angústia, quase desespero.
É
que Portugal, caro leitor, perdeu uma grande oportunidade de marcar uma posição
no contexto da reabertura na Europa, construída na decisão corajosa do estado
de emergência, no que parecia ser o civismo colectivo, misto de medo e
esperança (Espinosa
associa estes dois sentimentos) e que a ausência de rumo, de coerência
na estratégia, de coragem nas decisões e falta de cadeia de comando estruturada
e hierarquizada deitaram a perder.
E este é o drama dos países
periféricos e menos desenvolvidos como Portugal. Precisamos de fazer mais e melhor, para nos
afirmarmos, conquistarmos espaço, influência e poder nas instituições onde
agora se joga o nosso futuro. Já vivemos o suficiente para não ter ilusões.
E foi, neste momento crucial, que o sistema falhou. Vivemos um agravamento significativo da disseminação
da doença, em LVT e também no Alentejo e Algarve, onde o que aconteceu – festa em Lagos – foi produto de falta
de civismo, incúria, desleixo e incapacidade de fazer cumprir regras.
Sobranceria? Irresponsabilidade? Incapacidade de actuação punitiva
exemplar e rápida? Mensagens
contraditórias dos responsáveis? Teria
sido legítimo exigir outra actuação das entidades públicas e os sinais de fumo
eram claros, era só ver e não ignorar. A dedicação e sacrifício de todos os
Profissionais de Saúde e outros, das equipas de emergência e transporte, aos
assistentes operacionais e forças de segurança, e a competência das equipas
clínicas, médicas, de enfermagem e outros técnicos, que ajudaram a evitar o
colapso dos serviços de saúde, que mantiveram invejavelmente baixa a taxa de
letalidade e permitiram a recuperação de tantos doentes graves, teria merecido
outra actuação dos responsáveis sanitários e políticos.
Este é também o
tempo da Responsabilidade, de reconhecer o que correu mal e corrigir.
O que não
correu bem?
1. A
mensagem sobre o comportamento pessoal e social.
Não passou. Hoje, 4 de julho, saí com a minha mulher para um curto passeio à
beira-rio, pelo fim da manhã. É doloroso ver os magníficos restaurantes com as
suas esplanadas preparadas, mas vazias, o belo edifício do MAAT recuperado, mas
sem visitantes esperando para entrar, ginastas exercitando-se nos equipamentos
disponíveis e ciclistas serpenteando por entre nós, simples passeantes, todos
sem máscara! Só nós e um casal brasileiro usávamos máscara. Isto é, em
plena recrudescência da Pandemia, a qual não é só à periferia, nos bairros
pobres e desafortunados, mas chegará ao coração da cidade se não actuarmos
correctamente! E não vi as imagens
das praias.
A mensagem não passou e porquê? Incapacidade
dos lisboetas ou incompetência dos mensageiros? Leio que se prepara hoje um
piquenique político-laboral na Ribeira das Naus, certamente na obediência
completa das normas da DGS enquanto as televisões filmam, e depois? E ninguém
se interroga que os outros, cansados também de isolamento, das escolas
fechadas, dos empregos suspensos, com problemas igualmente prementes, como irão
eles reagir? Como irão interpretar estes sinais dúbios e, por que não, retomar
convívio, grupos, parties, raves? Levarão a sério a mensagem? Obviamente que
não! E não haverá nunca polícia suficiente. Mas que esperavam os
responsáveis políticos e sanitários que deram luz verde e autorizaram essa
quebra na disciplina que se impunha e que era fundamental cumprir?
2. Ausência
de coordenação centralizada da acção,
desde i) organização da Saúde, das equipas locais aos Centros de Saúde e
hospitais maximizando a integração da informação (leio hoje que há dados
incompletos que prejudicaram e limitaram a actuação necessária); ii)
transportes inadequadamente organizados: parece que não se mobilizaram empresas
privadas porque estavam em lay-off e era preciso qualquer iniciativa
legislativa específica para desbloquear a situação e ninguém se lembrou do
crónico problema dos comboios da linha de Sintra onde nada foi feito nos últimos
anos; iii) desagrado expresso por responsáveis médicos e da Ordem sobre a
coordenação hospitalar na região: em entrevista
do recém-nomeado coordenador de Saúde Pública para a área de LVT publicada
em 1/7 neste jornal, soube-se de reunião da ARS-LVT com os responsáveis
hospitalares realizada no dia anterior – a primeira?
Foram
definidos planos de contingência durante o mês de maio, em que tudo isto podia
ser previsível? Estavam prontos para os momentos de necessidade? Houve
vozes que alertaram e a experiência dos outros países era sinal de preocupação. Insuspeito de simpatia política pelo partido do
presidente da Câmara de Loures, reconheço que alertou bem cedo para a
problemática dos transportes, da sua cidade para o centro de Lisboa. Não é a
primeira vez que concordo com esse partido, mas discordo completamente que insistam na Festa do Avante e outras
iniciativas a que deram cobertura. Um péssimo sinal em tempo de Pandemia!
Percebi ontem pela resposta do secretário de Estado responsável pela covid-19
para a área LVT que nada
tinha a ver com a organização dos transportes nessa área, a qual era
dependente da AML!
Como
é possível? Como se quer vencer uma situação destas? Com o poder da burocracia?
Com o jogo táctico de influências?
3. Síndroma
Astérix? Indignação contra o mundo e em especial contra a pérfida Albion – só
faltam os crepes negros na estátua de Camões –, um traço comum na história
contemporânea portuguesa.
Recordo
este conceito, Foreign policy is an art where dissimulation prevails and it
is a value, isto é, adequar o discurso à defesa dos interesses nacionais.
Porque é que o senhor primeiro-ministro, no seu tweet, não contrapôs aos dados do Reino Unido, além do
Algarve, a Madeira e os Açores, onde a situação está ainda bem melhor
controlada? Espero que a nossa diplomacia consiga, pelo menos, negociar
corredores de passagem para esses destinos turísticos via Lisboa e assim
dinamizar SATA, TAP e indústria turística insular. Do mal, o menos... pode ser
que algo de bom ocorra entretanto!
Esta
foi a semana de um despertar para uma realidade dolorosa que é preciso não
escamotear e é preciso saber ultrapassar. Verificou-se que planeamento não
foi prioridade na governação dos últimos seis anos, e daí talvez o apelo à
contribuição de um salvador providencial. A TAP é um
exemplo da situação, o palito no bolo, como dizia o meu Mestre.
À data que escrevo, já sabemos que
todas as principais companhias de aviação europeias que receberam apoio estatal
têm os seus planos de contingência prontos, dolorosos para muitos, necessários
porventura e que vêm anunciados na imprensa! Nós, que já sabíamos das
dificuldades da TAP, que vinham de trás, perdemos tanto tempo em jogos
palacianos, verificamos que o Estado, que vinha reclamando o controle da
empresa, não tem um plano e precisamos agora de seis meses para preparar um e
apresenta-lo à Comissão Europeia! Foram declarações públicas de responsáveis. E
ficámos a saber pelo ministro da tutela que o Governo irá desencadear a procura
de uma equipa internacional para a gestão da TAP. Concordo, acho excelente ideia, mas faço duas perguntas: primeiro,
porque não se utilizaram os meses de disputa para, em paralelo, contemplando a
desejada tomada de poder pelo Estado, para fazer essa procura? E segunda,
haverá apoio político para isso entre as forças que apoiam este Governo? Ontem, o chefe do Governo garantiu-nos que não
haverá nenhum acordo à direita. Há muitos anos, uma das primeiras medidas de
Mrs. Thatcher foi escolher e nomear uma liderança externa para uma agonizante
British Airways. Recordo a controvérsia, os altos honorários pagos, etc., e
como a primeiro-ministra soube impor a decisão do seu governo. O resultado foi
conhecido...
Este
vai ser o nosso grande desafio, todos estes sectores que são essenciais para o
futuro do País e para o qual se impõe uma visão global, panorâmica, informada e
isenta. Por isso, caro leitor, esta foi uma semana triste e muito preocupante
Mais
uma vez, os Portugueses precisam de uma linguagem de Verdade e de
Responsabilidade.
É Tempo para sacudir de vez os
tacticismos e conluios partidários, a estratégia de ocupação do Poder pelos
fiéis apaniguados, e substituir esse modo de ser e de agir por uma Cultura de
Meritocracia e Independência, na Administração, na Saúde, na Educação, na
Justiça (o que se passou esta semana é incompreensível: tantos anos depois,
múltiplos processos, milhares de páginas, investigações, detenções, etc...não se conseguiu chegar à decisão de realização de
julgamento). Que mensagem passa para os cidadãos e para o exterior?
Este
vai ser o nosso grande desafio, todos estes sectores que são essenciais para o
futuro do País e para o qual se impõe uma visão global, panorâmica, informada e
isenta. Por isso, caro leitor, esta foi uma semana triste e muito preocupante.
[1] Sousa, JA: Relatório COVID19 – nº 76
[2] www.worldometers.info/Dados
diários de casos e mortos fornecidos pela OMS
TÓPICOS
Nenhum comentário:
Postar um comentário