Ou natural comédia, que gostamos de
propor para analisar, o que faz Paulo
Rangel, a respeito dos comportamentos de quem tem em mãos os destinozinhos
deste nosso mundo irrequieto. E inquieto, está visto. Mas … tout va bien qui finit bien. Entre nós é
que a coisa fia mais fino, ou seja, fia mais do mesmo, com a finura habitual,
dos fiandeiros dos nossos destinos. E dos deles, é claro, acima de tudo. Já
Perrault contava a história da Belle
au bois dormant, que a fada má fadou para que se picasse num fuso e
adormecesse durante cem anos até vir o príncipe despertá-la com o beijo próprio
do despertar. Mas devíamos ter cuidado com as picadelas do adormecimento, que
agora já não há príncipes como dantes para nos tirar do sono.
OPINIÃO
Merkel: um
anjo chamado Angela?
Merkel é uma estadista singular e de
excepção, a quem todos deveremos muito, mas não é santa, nem anjo, nem sequer
uma amiga especial ou oculta.
PAULO RANGEL
PÚBLICO; 28 de Julho de 2020
1.A
propósito das negociações do Fundo de Recuperação, foram muitas as análises
sobre a visão e o papel da chanceler Angela Merkel. Muitas delas, fortemente influenciadas pela máquina
de comunicação que gira em torno de António Costa. Assim como no passado (designadamente durante a
crise das dívidas soberanas) se exagerou na crítica ao seu posicionamento
alegadamente ortodoxo, também agora se carregou nas doses de angelismo da
chanceler. Com a finalidade ínvia de fazer de Merkel um anjo da guarda e, em
especial, um anjo da guarda de Costa. Mas Merkel — para o bem da Europa, da
Alemanha e até nosso — não é nada disso. É uma estadista singular e de
excepção, a quem todos deveremos muito, mas não é santa, nem anjo, nem sequer
uma amiga especial ou oculta.
2. Quem
passear pelos media portugueses fica com a sensação de que Angela Merkel
quereria tudo o que António Costa quer, mas há uns malvados “frugais” que
lhe estragam as contas e limitam as boas intenções. Teria sido assim com o Fundo de
Recuperação e já fora
assim com a recente eleição do presidente do Eurogrupo. E acrescente-se, já sem os frugais, mas com o não
menos “diabólico” PPE, havia sido assim com a escolha do presidente da
Comissão, em que foi preterido o socialista Timmermans. São narrativas pueris, que entre nós fazem caminho.
Vejamos uma coisa de cada vez, de modo a poder, ao menos, sugerir uma visão
diferente do papel de Merkel enquanto estadista.
3. Merkel e Macron apresentaram
a proposta de um fundo
de relançamento económico e social de 750 mil milhões euros, dos quais 500 mil
milhões corresponderiam a subsídios. Esta proposta foi seguida pela
Comissão. Aqui chegados, começámos a ver a contestação dos frugais,
liderados incontestavelmente pelo primeiro-ministro holandês, Rutte. E também
do grupo de Visegrado, seja pela questão do Estado de direito, seja pelos
chamados “rebates”.
Entre
os frugais, de resto e para que conste, contavam-se três primeiros-ministros
socialistas, da família de António Costa. A sua influência junto dos
socialistas europeus parece parca… Sabemos como tudo terminou, com uma redução
dos subsídios, um aumento dos “rebates” (com excepção do alemão) e uma
neutralização da cláusula do Estado de direito. Em Portugal, foram muitos
os que viram estas regressões como uma derrota parcial de Merkel.
Ora,
tal crença não resiste à pergunta: quando Merkel avança com 500 mil milhões, alguém
acha que ela pensava que esse número não desceria? Alguém acredita que ela
não contava com uma subida dos “rebates”? Não é preciso adivinhar, basta ouvir
as suas repetidas declarações sobre a dificuldade em obter um acordo e sobre a
complexidade e morosidade das negociações.
Haverá realmente quem pense que não
havia vontade “alemã” de ir ao encontro dos frugais, quando boa parte da sua
opinião pública é frugal? Merkel foi ousada e compreendeu a gravidade do
momento, mas também conhece bem a diversidade dos seus pares. Não é, pois, de
todo crível que, ao fazer as suas propostas, ela as faça sem considerar os
ajustes e acertos da negociação.
4.O mesmo vale para o episódio da
eleição do presidente do Eurogrupo, em que Merkel apoiaria a candidata
socialista espanhola, que terá sido derrotada pelos “frugais” e pelo PPE. Se Merkel estivesse mesmo empenhada nessa
escolha, e dado que a diferença foi de um voto, não teria feito o “trabalho de
casa” e convencido um dos Estados a mudar o voto? Seria assim tão difícil e
custoso? Será que ninguém equacionou que a Espanha já tinha o
alto-representante para a Política Externa? Poderia o mesmo país ficar
com dois altos cargos, provindos do mesmo partido? Não digo que Merkel tenha
sido cínica. Foi, como sempre, realista. Não estava em causa um interesse vital
da Alemanha e, porventura, uma boa parte da zona euro dar-se-ia melhor com um
irlandês. E, por isso, o Eurogrupo não valia o esforço. Com qualquer dos
candidatos, ela estava bem e deixou-se estar. Um aparente revés pode até ser um
trunfo futuro.
5. O mesmo se diga sobre a não eleição do socialista
holandês Timmermans para
presidente da Comissão, que, em artigos recentes, António Costa e Teresa de
Sousa lembraram nestas páginas. Antes de prosseguir, um aparte: será
que hoje, com tudo o que se passou, Costa ainda apoiaria Timmermans? Um
holandês, socialista como tantos frugais, colega de governo de Dijsselbloem? Ou
estaremos melhor com uma antiga ministra de Merkel? Será que Merkel queria
mesmo Timmermans como presidente da Comissão? Será que ela fez tudo o que
estava ao alcance para o impor nesse cargo? Ou será que afinal preferia outra
solução, ou, no mínimo, considerava que ganhava com qualquer uma delas? Escreve
quem foi testemunha ocular de boa parte desses arranjos e só direi que, em
nenhum momento Merkel fez ou sequer quis fazer de Timmermans uma questão de vida ou de morte. Será que alguém se
atreve a dizer que a substituição de Timmermans por Ursula von der Leyen, seu eterno delfim, foi um revés para a chanceler
alemã?
6. Será o angelismo um atributo de Merkel?
Será que uma estadista deste calibre pode ser naïf ou ingénua? Se pode
esquematizar-se a personalidade de uma figura política com a densidade de
Angela Merkel, eu poria em destaque dois traços fortes, ambos muito raros.
O primeiro, a honestidade, a franqueza e o realismo com que se dirige aos seus pares e interlocutores e,
não menos importante, aos seus eleitores.
Com Merkel, ninguém cria falsas expectativas nem engendra ilusões. O
segundo, uma nítida consciência da complexidade e da dificuldade das decisões,
em especial nas sociedades hodiernas. A ciência
da complexidade está obviamente nos antípodas do populismo, de todos os
populismos. Estes dois traços estão evidentemente ligados, porque só pode falar
verdade quem tenha uma aguda consciência da complexidade. Não é por acaso que
os populismos são sempre simplistas e redutores. Merkel é Angela, mas não é um
anjo. Ainda bem. Para a Europa e para todos nós.
SIM
Margarida Balseiro Lopes. Deixou ontem a presidência da JSD. A
circunstância de, nestes anos, ter sido a única líder política juvenil com
visibilidade, influência e reconhecimento diz tudo.
NÃO
Ministra da Justiça. É escandaloso que a Procuradora Ana Carla
Almeida, escolhida por um júri europeu, tenha sido preterida pelo Governo. É
triste o nosso conformismo. Se não é favoritismo, parece.
TÓPICOS
COMENTÁRIO
Zanzimbar
EXPERIENTE: Na verdade os frugais são apenas cães de fila da Alemanha, fazem
o trabalho sujo aliás é essa a função de certos países pequenos da UE, uma situação
que agora é mais evidente pela saída do RU, não há contrapeso aos interesses
alemães na Europa, países como Portugal devem saber fazer políticas circulares,
reforçar o atlantismo e colocar sempre a espada chamada EUA sempre em cima da
mesa, dado que o pilar atlântico europeu ficou mais fraco sem o RU.
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