sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Agora é que eu percebi


O porquê de Mariza se ter descontrolado ao cantar o Fado da Amália “Ó Gente da minha terra”, num dos seus espectáculos ao vivo, em Lisboa:

Ó gente da minha terra
Agora é que eu percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que a recebi.

Não temos emenda. Uns chorões, é o que somos. Por isso dificilmente nos poderemos safar, como dá a entender Paulo Tunhas, que nos fala de ópera com temas portugueses, por compositores estrangeiros, Donizetti e Meyerbeer, tudo temas de tragédia. Quanto a mim, nesta questão de tristezas nacionais traduzidas em arte, no estrangeiro, só me lembro da peça de Henry de Montherlant, “La Reine Morte” sobre a tragédia de Inês de Castro, afinal, também transformada em ópera, segundo leio na Internet - além das referências do comentador Jorge Marques a várias outras -  «La Reine morte, opéra de Daniel-Lesur est créé à Radio France le 19 mars 2005 avec Anne-Marguerite Werster, Ines de Castro - Laurent Naouri, le roi Ferrante - Béatrice Uria-Monzon, l'infante de Navarre - Fabrice Mantegna, Don Pedro, chœur et orchestre philharmonique de Radio-France sous la direction de Lawrence Foster.» - e ainda referida em cinema: «Cette pièce est mentionnée au début du film de François Truffaut, Le Dernier métro.» Na questão de Inês de Castro, todavia, talvez por ter estudado em confronto, o “episódio de Inês de Castro” d’ “Os Lusíadas”, as “Trovas à Morte de Inês de Castro” de Garcia de Resende e a Tragédia “A Castro” de António Ferreira, gostei mais desta peça do que da de Montherlant, aquela de uma sobriedade sobretudo na figura do Rei, dividido entre os sentimentos e as razões de Estado, que bem merecia ser mais estudada, como tragédia portuguesa de topo.

Mas trata-se apenas de um aparte, para confirmar o comentário artístico de Paulo Tunhas lembrando que não nos faltam motivos – mas também encantos – no por-aí-fora justificativo da nossa presença neste mundo de valentias, onde parecemos tristes e timoratos e encolhidos perante o poder, mas com levantamentos, aqui e além, de vozes excelentes que afinal se traduziram já em reacção eleitoral – embora parca no seu alcance. Afinal fomos um povo que navegou para bem longe outrora.

 

Portugal faz mal /premium

Se me apanharem a elogiar António Costa, apelidando-o de “preclaro espírito que alumia o nosso destino e nos incute a força que nos conduzirá ao topo do saber europeu”, já sabem de quem é a culpa.

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 30 set 2021, 00:1215

Como toda a gente, fiquei surpreendidíssimo com a vitória de Carlos Moedas e da coligação PSD/CDS em Lisboa e com a derrota de Medina e da coligação PS/PRR. E, como muita boa gente, fiquei contentíssimo. E contentíssimo também fiquei, quando soube quais as boas cabeças que aconselharam Moedas, que também tem uma boa cabeça, na sua campanha. A coisa torna-se assim um bocadinho mais explicável.

Infelizmente, esta óptima surpresa não chega para convencer uma pessoa das maravilhas fatais do Portugal da nossa idade. Da nossa idade e de várias outras idades passadas. Pelo contrário. Mais se olha para as coisas de trás com olhos de ver e mais assustado e deprimido se fica. Algumas vezes por razões óbvias, outras por obscuros sinais nos quais um espírito dedicado à interpretação não pode senão detectar o anúncio de uma verdade simples e ameaçadora: Portugal faz mal.

Tomemos o exemplo, razoavelmente excêntrico, da ópera. Que eu saiba – mas pode ser ignorância minha -, há apenas duas óperas de compositores célebres que tomam Portugal por objecto: o Dom Sébastien, Roi de Portugal de Donizetti (estreada em 1843) e a L’Africaine de Meyerbeer (estreada em 1865), que tem como personagem principal Vasco da Gama. Nunca ouvi, confesso, a primeira (a bíblia destas coisas, o New Grove, refere a opinião corrente à época segundo a qual se trataria de “um funeral em cinco actos”, e li noutro lugar que Camões ali morre tentando salvar D. Sebastião e a sua amada, a princesa africana Zaida, perseguidos pela Inquisição). Mas ouvi a segunda, da qual tenho, de resto, um DVD, no qual Plácido Domingo (a quem na altura ainda deixavam cantar) interpreta o nosso grande Vasco.

Além de Portugal, estas duas óperas têm algo em comum: foram as últimas óperas dos dois ilustres compositores. E aí é que os tais sinais ameaçadores se manifestam. Durante os ensaios de Dom Sébastien, Donizetti começou a agir estranhamente, dizendo coisas incompreensíveis e comportando-se de modo errático, a tal ponto que, pouco depois, tendo caído numa loucura que nunca o viria mais a abandonar, um sobrinho teve de o ir buscar e internar num sanatório. Meyerbeer não teve melhor sorte: no dia seguinte a acabar a composição de L’Africaine, morreu subitamente. Uma mente detectivesca poria a culpa destas duas desventuras no mordomo, isto é, no libretista de ambas as óperas, Eugène Scribe (na segunda, inspirando-se muito vagamente nos Lusíadas). Mas Scribe é, com Metastasio, um dos mais prolíficos libretistas de todos os tempos, e vários compositores resistiram saudavelmente à sua colaboração. Verdi, por exemplo, sobreviveu-lhe por fartos anos. Descontando a sífilis de que sofria Donizetti, resta apenas uma hipótese verosímil para explicar esta comum desgraça: Portugal. Portugal, como disse, faz mal.

Pessoalmente, é com alguma apreensão que penso nisto. Não que esteja a compor alguma ópera sobre a pátria, é claro. Mas, por razões académicas, estou obrigado, durante este semestre lectivo, a estudar o movimento de ideias da chamada “geração de 70”, sobretudo as ideias de Eça, Oliveira Martins e Antero de Quental, coisa que tenho feito disciplinadamente e com interesse, ordenando o que já antes tinha pensado e tentando pensar, com a ajuda de pilhas de livros, algumas coisas novas. Em consequência, a prudente distância que até agora tinha mantido face às coisas portuguesas, com infidelidades pelo meio, transformou-se numa proximidade comprometedora e quase íntima. Olhar de perto é diferente de olhar de longe e é declaradamente mais perigoso.

Particularmente, ando às voltas com a admiração daquela geração pela Comuna de Paris (1871) e com a sua patriótica revolta contra o ultimatum inglês (1890), quer dizer, sensivelmente com o período que vai das Conferências do Casino às reuniões do grupo dos Vencidos da Vida. Não vou aqui falar das posições (às vezes complexas e contraditórias) dos vários autores sobre os dois acontecimentos. Em contrapartida, quero notar uma coisa óbvia. No espaço da minha vida, testemunhei inúmeras vezes atitudes colectivas muito semelhantes às daquela geração. Quer se trate da admiração entusiástica por revoluções sortidas por esse mundo fora; quer se trate de manifestações destemperadas e recorrentes de anglofobia, a propósito dos mais variados acontecimentos, que nada ficam a dever à imagem dos lordes cortados às postas a boiarem no Tamisa de Guerra Junqueiro.

Isto só pode querer dizer algo de significativo sobre nós. E, tristemente, nada de bom. Sem entrar em explicações muito sofisticadas, diz algo sobre a nossa condição imitativa e sobre o nosso complexo de inferioridade (é, creio, a expressão justa). A nossa condição imitativa é a dos espectadores que ambicionam macaquear nos mínimos detalhes o que vêem no palco, confundindo sistematicamente a tragédia com a comédia e a comédia com a tragédia. O resultado é, como não podia deixar de ser, grotesco. E o nosso complexo de inferioridade manifesta-se usualmente através do uso e abuso da bravata indignada. Não há fanfarronice que falhe quando exprimimos a nossa superioridade moral sobre a pérfida Albion. Só gente que se acha, no íntimo inconfessável, inferior, pode agir desta maneira, imaginando castigos justiceiros e vinganças exemplares.

Se uma pessoa começar a pensar a sério nisto, é difícil evitar cair numa espécie de abismo de melancolia. Porque estas duas atitudes – que, volto a dizer, se repetem com uma regularidade impressionante, seja quais forem os objectos e casos particulares – contaminam o todo da sociedade, mergulhando-a numa atmosfera de irrealidade militante. Como é fácil de observar, essa irrealidade impede, à partida, que se pense politicamente de modo eficaz e que se tomem as decisões necessárias para melhorar a nossa situação. E mais do que isso. A criação da atmosfera de irrealidade – que o Governo de António Costa, de resto, à sua maneira elevou à condição de suprema arte política – só pode contribuir para que a nossa situação piore e continue a piorar, sem termo à vista. Viver isto de perto – viver no meio disto – não afaga propriamente a alma com doces carícias. Em pessoas sensíveis, fere-a.

Pelo que acabei de dizer, se me virem, à semelhança dos dois homens ilustres acima referidos, desaparecer de um dia para o outro, sem aviso, desta coluna do Observador e do universo em geral, ou se me apanharem a elogiar encomiasticamente António Costa, apelidando-o de “o nosso maior estadista desde D. Afonso Henriques” e de “preclaro espírito que alumia o nosso destino e nos incute a força que nos conduzirá ao topo do saber europeu”, já sabem de quem é a culpa. E não, não é de Scribe nem da sífilis. Sim, é do que estão muito bem a pensar: desta ditosa pátria muito nossa amada.

Entretanto, Vasco da Gama, que passa (também ele!) pelos calabouços da Inquisição, é amado por duas mulheres: Inês, a sua noiva, e Selika, uma rainha indiana (os portugueses, para Scribe, são felizmente dados ao multiculturalismo amoroso; em L’Africaine, é verdade, só no Acto IV e com a ajuda do velho truque do “filtro de amor”) que havia trazido a Lisboa como escrava na sua última viagem. Selika, por sua vez, é amada por Nelusko, outro escravo que Vasco da Gama trouxera consigo. No final, e já na Índia, Selika sacrifica-se pela felicidade de Vasco e Inês, suicidando-se. Nelusko, de coração partido, ao vê-la morta, suicida-se também, enquanto um navio, já só um pequeno ponto no horizonte (imagina-se), transporta Plácido Domingo e Ruth Ann Swenson de volta a Lisboa, para longe dos cadáveres de Shirley Verrett e de Justino Díaz. Isto sim, isto eleva a alma – e torna, pelo menos por momentos, inverosímeis as duas hipóteses avançadas no parágrafo anterior.

P.S.: Alexandre Franco de Sá acaba de publicar um importante livro sobre o populismo, cuja leitura evitaria a muita gente dizer os costumeiros disparates sobre o assunto: Ideias sem centro. Esquerda e direita no populismo contemporâneo (D. Quixote). Tenciono escrever sobre ele nas próximas semanas.

POLÍTICA  SOCIEDADE  CARLOS MOEDAS  PAÍS  ANTÓNIO COSTA

COMENTÁRIOS:

José Miranda: Análise excelente da mentalidade da maioria dos portugueses. Infelizmente é a realidade. Cisca Impllit: Como sempre, boa e elevada crónica! Agradeço a indicação do livro de Alexandre Franco de Sá Manuel Maria Pacheco Figueiredo: Mais uma excelente crónica.          josé maria: É difícil aos direitistas portugueses reconhecerem que António Costa é um dos dois melhores pm da democracia portuguesa, juntamente com António Guterres .A verdade, para os tunhistas, às vezes, é muito dura de se aceitar: Guterres à frente de Cavaco e Costa à frente de Passos.        antonyo antonyo > josé maria: Enganou-se no artigo . Este era um óptimo artigo que se distingue das vulgatas que aprecia. Tente ler este artigo.       mamadorchulo dostugas > josé maria: Sempre com piadas.          advoga diabo: Salvo raras e honrosas excepções os portugueses só se empenham a sério em duas circunstâncias, se não têm outro remédio, ou não são liderados por compatriotas e/ou havendo poucos ou nenhuns por perto. Porquê? Por um fatal complexo de inferioridade que radica de intrínseco sentimento de inveja que os faz sempre agir segundo um princípio, não passar uma imagem de fraqueza! Mais que aquilo que realmente são, move-os o que acham os outros deles pensarem!      Hitlerilas Ventura: Meus amigos, isto são tudo faits divers que não interessam para nada. O importante é o nosso partido recuperar os 300 mil votos que perdeu domingo. Éramos 500 mil em Janeiro nas presidenciais e agora fomos apenas 208 mil nas autárquicas.            Jorge Marques: Se "Portugal" pode significar temas portugueses, então tem, como seria de esperar, o tema super-operático da Inês de Castro que serviu para mais de uma dezena de óperas, a começar talvez pela de Paisiello em 1799 a prosseguir com a de Persiani, estrada em 1835 no San Carlo de Nápoles com enorme sucesso (16 anos sucessivos,60 produções) referindo naturalmente o nosso Rui Coelho em 1953 e concluindo (por enquanto) com o James Mc. Millan em 1996. Como tema português operático, afinal não estamos tão mal servidos, e não consta que estes compositores e intérpretes tenham soçobrado na doença ou na loucura após as suas "Ineses"... sem falar do Rui Coelho por cá, mas destacando a do James Mc Millan em 1996. Pelo menos um tema português com abundante sucesso e não constando horríveis desgraças para compositores e intérpretes...          Maria Teresa Dias: Excelente crónica .          Américo Silva: A crónica é interessante e muito agradável de ler. A geração de 70 foi barulhenta, ineficaz, e a decadência em pessoa, apesar do valor individual de Eça e outros. Portugal tem existido séculos atrás de séculos, e os portugueses prosperam por todo o mundo. Expliquem-nos as qualidades que tal permitem, embora possam não ser motivo de grande orgulho.            mamadorchulo dostugas: É difícil avaliar qual o melhor estadista desde Dom Afonso, se o 44 ou o bazuco.          António Maria de Carvalho > mamadorchulo dostugas: Nem parece sua, esta indecisão. Então não se vê logo que o segundo é simples discípulo do primeiro?

 

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