domingo, 17 de outubro de 2021

Oh! A Simone


O texto do Dr Salles da Fonseca trouxe-me à lembrança páginas da Simone de Beauvoir, que tanto admirei – e admiro, de resto, sobretudo pelo que representou para mim de uma época feliz, na leitura das suas “Mémoires d’une jeune-fille rangée” e “L’Invitée”, no rigor claro e lúcido de uma narrativa aberta e na sinceridade das suas confissões de ânsia libertária contrariando os ideais burgueses da sua época, que transpôs para a sua família, e me trouxeram à memória rebeldias pessoais da minha própria mocidade, sem a espécie de desamor familiar que nela sempre notei, contudo. Simone de Beauvoir foi meu ídolo, pela sua independência crítica, num estilo confessional sincero e rico e, sobretudo, de extrema lucidez de análise, embora geralmente tendenciosa. Mas o seu livro “La force des Choses”, já lido cá, juntamente com outros da sua maturidade, seguindo igual percurso de agudeza crítica, fez-me sentir zanga, por ter melhor entendido a sua mensagem de defensora de ideais políticos que eu nunca aceitei, amante que fui –sou - da minha pátria e da sua história de heroísmos e dos seus escritores que amei – amo. Um relato rico de aventura e saber, acabada a guerra, onde os franceses sofreram bem – uma Simone viageira e conferencista, num lato mundo que a reconhecia e galardoava, que também passou por este país, o qual descreve nos seus faustos - por não ter sofrido a guerra - e nas suas misérias de povo descalço e inculto, que os seus amigos portugueses, comunistas como ela, atribuíam com feroz radicalismo, à ditadura de um Salazar por eles odiado. São muitas essas páginas referentes à sua passagem por Portugal, páginas que me feriram talvez por ser um estrangeiro a tecer considerações bem negativas sobre ele, embora certeiras, hélas! Mas o que definitivamente me arrumou em zanga, foi a denúncia de uma proposta de um seu amigo “ancien ministre”, de “ceder Angola à França”, caso o então Primeiro-Ministro Georges Bidault o ajudasse a estabelecer um novo governo em Portugal. Uma tal enormidade, condenável no português – pese embora a ligeireza do desfazer posterior de todas as “Angolas” e Cia do nosso cardápio nacional, revelando tão vasta multiplicidade traiçoeira bem nacional - achei-a repugnante na referência, indigna da “Simone” que tanto admirava. Transcrevo o texto, da página 47 da minha edição “Folio”, de 1962 (“Éditions Gallimard”):

«Le peuple était délibérément maintenu dans la crasse et l’ignorance: on était en train de lancer Fátima. …“Le malheur, c’est que Salazar ne tombera que si Franco tombe”, me disaient mes interlocuteurs. Et ils ajoutaient que les deux dictateurs ne se trouvaient, hélas! Que fort peu menacés par la défaite de l’Axe. Les capitalistes anglais avaient de gros intérêts au Portugal, l’Amérique était en train de négocier l’achat de bases aériennes aux Açores: Salazar pouvait compter sur l’appui des Ango-Saxons; c’est pourquoi il était nécessaire de remuer l’opinion française. Un ancien ministre me demanda de remettre une lettre à Bidault: s’il l’aidait à établir un nouveau gouvernement, celui-ci céderait l’Angola à la France. Cette combine colonialiste m’aurait fort déplu si je l’avais prise au sérieux; mais je savais que la lettre serait jettée au panier. Je la portai au Quai d’Orsay.»…

Mas a carta não chegou a ir para o lixo, guardada que ficou para posterior “remuement” de pré-aviso, que não beneficiaria, naturalmente, o governo francês, o destino encarregando-se de outras finalidades separatistas.

O Dr. Salles encarrega-se, de vez em quando de nos alertar para o significado das ideologias de diferente linhagem, como este seu ”DOUTRINAS E ESTRATÉGIAS” que me lembrou uma S.B., num exemplo que vai ao encontro desse seu texto, julgo. Com tristeza.

 

DOUTRINAS E ESTRATÉGIAS

HENRIQUE SALLES DA FONSECAde heróis

A BEM DA NAÇÃO, 16.10.21

AS PESSOAS: Kropotkin (1842 – 1921), «pai» do anarquismo;

Lenin (1870 - 1924), «pai» do sovietismo

AS DOUTRINAS:

Sovietismo Estado omnipresente e omnipotente;

Anarquismo – nihilismo do Estado  * * *

No que se refere ao conceito de Estado, não pode haver duas doutrinas mais antagónicas. Registe-se, pois, o absurdo que consistiu na adesão de anarquistas portugueses ao PCP durante o «Estado Novo».

A única explicação que encontro para esse absurdo doutrinário tem a ver com algum pacto de estratégia visando o derrube de Salazar. Para além deste objectivo comum, tudo o mais só poderia ser discórdia. No plano da discórdia, basta referir o colectivismo comunista vs. o individualismo anarquista, o Estado policial soviético vs. o libertarianismo anarquista.

Ou seja, logo após o derrube do «Estado Novo», o putativo pacto estratégico se desfaria e, com os comunistas no poder, aos anarquistas restaria a hipótese de conseguirem passar à clandestinidade e à luta armada, serem fuzilados ou, mais benignamente, acabarem os seus dias como Kropotkin votado ao ostracismo morrendo de fome e de frio.

Contudo, a nossa História foi mais suave com os anarquistas a passarem-se para o graffittismo humorístico e com os comunistas a serem expulsos da área do poder em 25 de Novembro de 1975.

Conclusão: não há estratégia que resista à incongruência doutrinária e as coligações tendem a desfazer-se quando alcançam o poder.

Outubro de 2021

Henrique Salles da Fonseca

Nota de pé de página: Tomás da Fonseca era anarquista e morreu em 1968

Tags: história

COMENTÁRIOS:

Anónimo 16.10.2021: Objectivo. Lúcido. Actual. Obrigado. Fernando Catarino

Anónimo 16.10.2021: Meu Amigo Henrique, tocas num assunto complexo e triste. Triste, porque o antagonismo entre anarquistas e comunistas foi, por exemplo, gerador duma guerra civil entre eles, dentro da guerra civil espanhola entre republicanos e franquistas, na Catalunha, em 1937, como descreveu muito bem George Orwell em “Homenagem a Catalunha”, em que ele e a mulher tiveram de fugir para não serem mortos. Complexo, porque analisando o comportamento dos comunistas ao longo dos anos, talvez possamos concluir, com alguma objectividade, que eles estão onde podem controlar. Assim foi, no caso português, com o MUD, com a candidatura de Norton de Matos, nas eleições para deputados - CDE, em oposição à CEUD -, nas organizações sindicais, nas frentes chamadas unitárias. Esse posicionamento de controlo é inerente ao seu ADN. Recordo-me de duas exceções: uma por ter lido – o apelo aos católicos em 1947 para que se unissem aos comunistas, exactamente com o objetivo comum do derrube do regime – e outra por ter vivido – a candidatura do Dr. Arlindo Vicente versus a do General Umberto Delgado. Ainda me recordo de os comunistas, antes da candidatura de Vicente desistir a favor da de Delgado, chamarem a este “General Coca-Cola”, por ter estado vários anos, em missão oficial, nos EUA. Finalmente, um “reparo”: Tomás da Fonseca (assim como, pelo menos, o seu filho Branquinho da Fonseca, também escritor) não merece uma nota de pé de página, mas sim uma referência bem no alto da página. Sei que aquele posicionamento tem como razão a tua descrição pelo facto de Tomás da Fonseca ser teu familiar. Mas honremos devidamente o poeta, o escritor, o historiógrafo, o jornalista, o professor e o político. Grande abraço. Carlos Traguelho

Anónimo 16.10.2021: Obrigado, Carlos, pelo comentário sempre erudito e obrigado pelas referências ao meu avô e ao meu tio. O meu objectivo neste texto era apenas o da separação doutrinária e a referência ao meu avô em nota de pé de página deve-se apenas ao facto de esse não ter sido teórico do anarquismo mas apenas adepto. Mais: os comunistas andam sempre a dizer que ele era seu militante e eu, com este texto, afirmo que ele era totalmente contrário ao sovietismo e apenas se deixou envolver naquele movimento com o objectivo meramente estratégico. Como anarquista, Tomás da Fonseca era naturalmente anti-comunista. Continuemos...

 

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