O texto do Dr Salles da Fonseca trouxe-me à
lembrança páginas da Simone de
Beauvoir, que tanto admirei – e admiro, de resto, sobretudo
pelo que representou para mim de uma época feliz, na leitura das suas “Mémoires d’une jeune-fille rangée” e “L’Invitée”, no rigor claro e lúcido de uma
narrativa aberta e na sinceridade das suas confissões de ânsia libertária
contrariando os ideais burgueses da sua época, que transpôs para a sua família,
e me trouxeram à memória rebeldias pessoais da minha própria mocidade, sem a
espécie de desamor familiar que nela sempre notei, contudo. Simone de Beauvoir foi meu
ídolo, pela sua independência crítica, num estilo confessional sincero e rico
e, sobretudo, de extrema lucidez de análise, embora geralmente tendenciosa. Mas
o seu livro “La force des Choses”, já lido
cá, juntamente com outros da sua maturidade, seguindo igual percurso de agudeza
crítica, fez-me sentir zanga, por ter melhor entendido a sua mensagem de defensora
de ideais políticos que eu nunca aceitei, amante que fui –sou - da minha pátria
e da sua história de heroísmos e dos seus escritores que amei – amo. Um relato
rico de aventura e saber, acabada a guerra, onde os franceses sofreram bem –
uma Simone viageira e
conferencista, num lato mundo que a reconhecia e galardoava, que também passou
por este país, o qual descreve nos seus faustos - por não ter sofrido a guerra
- e nas suas misérias de povo descalço e inculto, que os seus amigos
portugueses, comunistas como ela, atribuíam com feroz radicalismo, à ditadura
de um Salazar por eles odiado.
São muitas essas páginas referentes à sua passagem por Portugal, páginas que me
feriram talvez por ser um estrangeiro a tecer considerações bem negativas sobre
ele, embora certeiras, hélas! Mas o
que definitivamente me arrumou em zanga, foi a denúncia de uma proposta de um seu
amigo “ancien ministre”, de “ceder Angola à França”, caso o então
Primeiro-Ministro Georges Bidault o
ajudasse a estabelecer um novo governo em Portugal. Uma tal
enormidade, condenável no português – pese embora a ligeireza do desfazer posterior
de todas as “Angolas” e Cia do nosso cardápio nacional, revelando tão vasta
multiplicidade traiçoeira bem nacional - achei-a repugnante na referência,
indigna da “Simone” que tanto
admirava. Transcrevo o texto, da página 47 da minha edição “Folio”, de 1962 (“Éditions Gallimard”):
«Le
peuple était délibérément maintenu dans la crasse et l’ignorance: on était en
train de lancer Fátima. …“Le malheur, c’est que Salazar ne tombera que si
Franco tombe”, me disaient mes interlocuteurs. Et ils ajoutaient que les deux
dictateurs ne se trouvaient, hélas! Que fort peu menacés par la défaite de l’Axe.
Les capitalistes anglais avaient de gros intérêts au Portugal, l’Amérique était
en train de négocier l’achat de bases aériennes aux Açores: Salazar pouvait
compter sur l’appui des Ango-Saxons; c’est pourquoi il était nécessaire de
remuer l’opinion française. Un ancien ministre me demanda de remettre une
lettre à Bidault: s’il l’aidait à établir un nouveau gouvernement, celui-ci
céderait l’Angola à la France. Cette combine colonialiste m’aurait fort déplu
si je l’avais prise au sérieux; mais je savais que la lettre serait jettée au
panier. Je la portai au Quai d’Orsay.»…
Mas a carta não chegou a ir para o lixo,
guardada que ficou para posterior “remuement”
de pré-aviso, que não beneficiaria, naturalmente, o governo francês, o destino
encarregando-se de outras finalidades separatistas.
O Dr. Salles encarrega-se, de vez em quando de nos alertar para o
significado das ideologias de diferente linhagem, como este seu ”DOUTRINAS E ESTRATÉGIAS” que me
lembrou uma S.B., num exemplo que vai ao encontro desse seu texto, julgo.
Com tristeza.
HENRIQUE SALLES DA
FONSECAde heróis
A BEM DA NAÇÃO, 16.10.21
AS PESSOAS:
Kropotkin (1842 – 1921), «pai» do
anarquismo;
Lenin (1870
- 1924), «pai» do sovietismo
AS DOUTRINAS:
Sovietismo
– Estado omnipresente e omnipotente;
Anarquismo
– nihilismo do Estado *
* *
No que se refere ao conceito de
Estado, não pode haver duas doutrinas mais antagónicas. Registe-se, pois, o absurdo que consistiu
na adesão de anarquistas portugueses ao PCP durante o «Estado Novo».
A
única explicação que encontro para esse absurdo doutrinário tem a ver com algum
pacto de estratégia visando o derrube de Salazar.
Para além deste objectivo comum, tudo o mais só poderia ser discórdia. No plano da discórdia, basta referir o colectivismo
comunista vs. o individualismo
anarquista, o Estado policial soviético vs. o libertarianismo anarquista.
Ou
seja, logo após o derrube do «Estado Novo», o putativo pacto estratégico se
desfaria e, com os comunistas no poder, aos anarquistas restaria a hipótese de
conseguirem passar à clandestinidade e à luta armada, serem fuzilados ou, mais
benignamente, acabarem os seus dias como Kropotkin votado ao ostracismo
morrendo de fome e de frio.
Contudo, a nossa História foi mais
suave com os anarquistas a passarem-se para o graffittismo humorístico e com os
comunistas a serem expulsos da área do poder em 25 de Novembro de 1975.
Conclusão:
não há estratégia que resista à incongruência doutrinária e as
coligações tendem a desfazer-se quando alcançam o poder.
Outubro de 2021
Henrique Salles da Fonseca
Nota de pé de página: Tomás da
Fonseca era anarquista e morreu em 1968
Tags: história
COMENTÁRIOS:
Anónimo
16.10.2021: Objectivo. Lúcido. Actual. Obrigado. Fernando Catarino
Anónimo 16.10.2021: Meu Amigo
Henrique, tocas num assunto complexo e triste. Triste, porque o antagonismo
entre anarquistas e comunistas foi, por exemplo, gerador duma guerra civil
entre eles, dentro da guerra civil espanhola entre republicanos e franquistas,
na Catalunha, em 1937, como descreveu muito bem George Orwell em “Homenagem a
Catalunha”, em que ele e a mulher tiveram de fugir para não serem mortos. Complexo,
porque analisando o comportamento dos comunistas ao longo dos anos, talvez
possamos concluir, com alguma objectividade, que eles estão onde podem
controlar. Assim foi, no caso português, com o MUD, com a candidatura de Norton
de Matos, nas eleições para deputados - CDE, em oposição à CEUD -, nas
organizações sindicais, nas frentes chamadas unitárias. Esse posicionamento de
controlo é inerente ao seu ADN. Recordo-me de duas exceções: uma por ter lido –
o apelo aos católicos em 1947 para que se unissem aos comunistas, exactamente
com o objetivo comum do derrube do regime – e outra por ter vivido – a
candidatura do Dr. Arlindo Vicente versus a do General Umberto Delgado. Ainda
me recordo de os comunistas, antes da candidatura de Vicente desistir a favor
da de Delgado, chamarem a este “General Coca-Cola”, por ter estado vários anos,
em missão oficial, nos EUA. Finalmente, um “reparo”: Tomás da Fonseca (assim
como, pelo menos, o seu filho Branquinho da Fonseca, também escritor) não
merece uma nota de pé de página, mas sim uma referência bem no alto da página.
Sei que aquele posicionamento tem como razão a tua descrição pelo facto de
Tomás da Fonseca ser teu familiar. Mas honremos devidamente o poeta, o
escritor, o historiógrafo, o jornalista, o professor e o político. Grande
abraço. Carlos
Traguelho
Anónimo 16.10.2021: Obrigado,
Carlos, pelo comentário sempre erudito e obrigado pelas referências ao meu avô
e ao meu tio. O meu objectivo neste texto era apenas o da separação doutrinária
e a referência ao meu avô em nota de pé de página deve-se apenas ao facto de
esse não ter sido teórico do anarquismo mas apenas adepto. Mais: os comunistas
andam sempre a dizer que ele era seu militante e eu, com este texto, afirmo que
ele era totalmente contrário ao sovietismo e apenas se deixou envolver naquele
movimento com o objectivo meramente estratégico. Como anarquista, Tomás da
Fonseca era naturalmente anti-comunista. Continuemos...
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