«Um ensaio de Bernardo Futscher Pereira»
Que parece extremamente lúcido, na
seriedade e rigor da sua análise sobre o avanço de um mundo actual de ambições,
rivalidades e farsas políticas, nas suas estratégias de entendimentos e de
confrontos, e com breve referência a tácticas políticas de séculos anteriores. Um
texto a reter e a agradecer.
Rivalidade, dependência, alianças e
contradições: para onde vai a nova (des)ordem mundial?
O novo mundo
do século XXI é multipolar, feito de várias potências cuja rivalidade existe
com a interdependência. Quais as causas e consequências deste cenário?
BERNARDO
FUTSCHER PEREIRA: Texto
OBSERVADOR, 23
out 2021, 10:166
A hegemonia americana durou pouco.
Após o colapso do império soviético, a lógica do equilíbrio do poder, a lei
mais firme e constante do sistema internacional, não tardou muito a impor-se. De uma estrutura bipolar que resistiu cerca de 45 anos,
transitámos abruptamente para uma estrutura unipolar que, nos últimos 20, se
transformou progressivamente numa estrutura multipolar. A ascensão da China é a manifestação mais
evidente desta transformação, mas não a única. Seria, com
efeito, um erro pensar que a bipolaridade está de regresso, bastando, para a
analisar, trocar a União Soviética pela China. O novo mundo do século XXI é multipolar. Se há
analogias a procurar com o passado, não são com a segunda metade do
século XX, mas sim com o século XIX, quando existiam várias potências
cuja rivalidade política e militar coexistia com a interdependência das suas
economias.
Contar polos
Não
é fácil ter uma visão clara da distribuição de poder no sistema internacional. É
evidente, no entanto, que o poder se fragmentou e dispersou. Os EUA e a China são primus interpares, mas não estão sozinhos em cena. Nem
Washington nem Pequim conseguem hoje impor a mesma disciplina aos seus aliados
que as duas superpotências no tempo da Guerra Fria. A União Europeia, com o alargamento a Leste, autonomizou-se e estendeu a sua esfera de actuação
ao conjunto do continente europeu, assumindo-se como um império burocrático em
permanente expansão. A China ascendeu, mas a Rússia não desapareceu. Pelo
contrário, sob a liderança de Putin, recuperou capacidade de intervenção.
Quais são os critérios para um
Estado, ou uma entidade sui generis como a União Europeia, ser
incluído na categoria das grandes potências?
Não basta possuir alguns dos atributos do poder. É necessário reuni-los todos
ou, pelo menos, quase todos: dimensão
territorial, população, poder militar, capacidade económica e tecnológica,
coesão e competência política e capacidade de atração – o chamado soft
power. Poucos são
os que conseguem satisfazer na totalidade esses critérios. Os E.U.A., certamente,
apesar da crescente polarização da sociedade americana, que afecta a sua coesão e competência
política. A China, também, embora na
dimensão militar não figure ainda em primeiríssimo plano. Os títulos da Rússia e
da União Europeia são menos evidentes, mas há boas razões para os
incluir nesta categoria.
A Rússia tem dois pontos fracos: a economia e a população. O seu PIB é
inferior ao do Reino Unido e dez vezes mais pequeno que o da UE. A sua
população, envelhecida, está a diminuir. Armados com estes dados e fiéis à
tendência para tudo analisar sob o prisma do poder económico, muitos analistas
têm desvalorizado a Rússia como grande potência. Não devemos cair no mesmo erro
que perdeu Hitler e Napoleão. Os seus trunfos são ainda consideráveis. É o país
com o maior território do mundo — quase o dobro dos EUA e da China e o triplo
da UE — e a única potência que partilha com os Estados Unidos o atributo de ser
simultaneamente europeia e asiática. O degelo do Ártico permite-lhe um
acesso fácil ao mar. O seu poder militar é enorme e a sua competência política
considerável. Dispõe de uma vasta esfera de influência no continente
euro-asiático. A crise demográfica e a debilidade da sua economia, muito
dependente da exploração de recursos naturais — mas estes são quase infinitos —
talvez tornem a Rússia uma potência em declínio. Contudo, as
demonstrações de poder que tem realizado nos últimos anos mostram que seria um
erro excluí-la de um clube que integra há pelo menos dois séculos.YURI KOCHETKOV/EPA
Quanto
à União Europeia, agora em busca da sua autonomia estratégica, já
não pode ser vista como um mero anexo dos Estados Unidos. Falta-lhe poder
militar, em especial após a saída do Reino Unido, e coesão política – que só
consegue atingir esporadicamente e ao cabo de um longo trabalho de concertação
interna que torna a sua acção lenta e ineficaz. Terá a União Europeia
atingido já a maturidade para ser tomada como uma unidade e não mero agregado
de Estados? Se ainda não o conseguiu, parece claro que é esse o caminho que
está a trilhar. Já dispõe, em todo o caso, de vários pontos fortes — território,
população, capacidade económica e soft power — que permitem
considerá-la uma grande potência, com uma larga esfera de atuação própria.
A dispersão do poder entre estes
quatro grandes polos abre margem de manobra a uma série de outros Estados que
se perfilam, num plano inferior, como agentes cada vez mais autónomos no
sistema internacional. Estados
rivais que pertencem ao selecto clube nuclear, como a Índia e o Paquistão; Estados com ambições regionais como a Turquia o Irão; Estados
pária como a Coreia do
Norte; Estados como o Japão, que
voluntariamente abdicou do estatuto de grande potência, acolhendo-se à sombra
do guarda-chuva nuclear americano, mas que pode ser forçado pelas
circunstâncias a procurar de novo maior autonomia; novas Espartas,
como Israel ou os Emirados Árabes Unidos, capazes de arrastar os seus aliados mais fortes;
potenciais futuros gigantes como o Brasil
ou a Nigéria; ou um
antigo poder imperial, como o
Reino Unido, que decidiu
de novo trilhar um caminho autónomo.
Multipolaridade e multilateralismo
Na sociedade internacional, há dois
princípios organizadores que competem pela primazia. O princípio da anarquia, cujo
prisma de análise é conhecido na gíria das relações internacionais como o
realismo, e um princípio de ordem, que
associamos ao multilateralismo e é representado pelas organizações
internacionais de caráter universal. O primeiro prima tradicionalmente
sobre o segundo. Contudo, com o avanço da globalização, é patente que, no
plano normativo, a sociedade internacional carece de mais ordem e menos
anarquia. A questão que agora se põe é de saber quais são as
implicações de uma estrutura multipolar de distribuição do poder para o
multilateralismo.
Prima
facie, a multipolaridade não favorece o multilateralismo. A dispersão do poder dificulta a obtenção de
consensos e favorece uma lógica de alianças cruzadas em vez de uma concertação
entre todos visando objectivos comuns.
A formação das Nações Unidas e a
globalização foram forjando
pouco a pouco algo que se assemelha a uma “consciência global” – embora seja fácil confundir essa consciência com a
agenda promovida pelo mundo ocidental. Essa
consciência embrionária manifesta-se agora, por exemplo, na mobilização internacional para combater a crise
climática. Todavia,
mesmo quando existe, o que nem sempre é o caso, essa consciência é frágil e
não se traduz automaticamente em acção para resolver os problemas globais.
Por uma razão simples: nas relações internacionais a força centrípeta da
globalização está em tensão permanente com as forças centrífugas dos interesses
nacionais. Sem uma
agência central que exerça as funções do Estado no plano internacional ou, na
ausência desta, sem um dispositivo de poder que suporte a diplomacia
multilateral, a
“consciência global” está permanentemente sujeita a erosão.
O
federador da vontade colectiva é um líder: identifica os problemas, tem
suficiente poder para manter os seus aliados em linha, se necessário pela coacção
e pela violência. Após a
criação das Nações Unidas, os EUA desempenharam esse papel. Nos últimos anos
têm vindo a abdicar dele, mostrando-se cada vez mais tentados pelo
unilateralismo puro e duro.
O grande problema político do século
XXI é a organização da acção colectiva num mundo em que ninguém manda. Problemas globais exigem soluções globais, diz-se, e
muito bem. Mas o problema
está em organizar essas soluções. A
diplomacia multilateral é o mecanismo existente para dar forma e expressão
à “consciência
global” e
traduzi-la em acção. O
mecanismo funciona a dois tempos. Primeiro, é necessário encontrar um consenso mínimo, apenas possível muitas vezes com base no mínimo denominador comum. Segundo, e ainda mais difícil, é necessário organizar a acção coletiva com base nesse
consenso. A experiência
mostra que, mesmo quando existe uma visão partilhada, é difícil traduzi-la numa
cooperação eficaz entre estados soberanos.
Podemos pensar em soluções para
problemas globais, como a crise climática, como bens públicos internacionais. Num sistema hierárquico, como o dos Estados, é o
poder central que se encarrega de produzir e fornecer bens públicos – como
a segurança dos cidadãos ou a qualidade do ar que
respiram. Nas
relações internacionais, a ausência de um poder central forte torna mais
difícil garantir que todos partilhem de forma justa o custo de os fornecer. É o problema
do passageiro clandestino. Cada
Estado, no seu interesse nacional, quer evitar pagar um preço desproporcionado
para fornecer o bem público, para evitar que outros beneficiem à sua custa,
ganhando vantagens indevidas. Ou, mais cinicamente, procura pagar menos do que
deve para obter benefícios à custa dos outros. Pior ainda, alguns Estados e
muitas vezes não os menos importantes, recusam-se a pagar seja o que for. O
resultado desta dinâmica é que o fornecimento de bens públicos no sistema
internacional é insuficiente, embora todos reconheçam que, num mundo
globalizado, eles são mais necessários do que nunca.
Quando o poder está concentrado, esse problema é
mitigado. Uma potência hegemónica pode
funcionar como um sucedâneo do poder central, exercendo o papel de federador. O federador da vontade colectiva é um líder: identifica
os problemas, assume um custo desproporcionado pelo fornecimento de bens
públicos internacionais, tem suficiente poder para manter os seus aliados em
linha, se necessário pela coacção e pela violência. Após a
criação das Nações Unidas, os EUA desempenharam esse papel. Nos últimos anos
têm vindo a abdicar dele, mostrando-se cada vez mais tentados pelo
unilateralismo puro e duro.
Mesmo querendo os EUA recuperarem esse
papel, num mundo multipolar é mais difícil exercê-lo. A existência de
diferentes pólos de poder exerce uma influência centrífuga. Quando a cooperação
falha, ou tarda em materializar-se, aumenta a pressão para os Estados atuarem
cada um por si.
Os
Estados Unidos dispõem ainda, com o dólar, de um poderoso elemento federador. Mas cedem cada vez mais à tentação perigosa de o utilizar
como uma arma para impor a extraterritorialidade da lei americana, usando e
abusando de sanções unilaterais. Com
Trump, os EUA não se limitaram a actuar de forma unilateral. Procuraram mesmo
opor-se activamente à vontade colectiva — por exemplo ao retirarem-se dos
acordos de Paris. O
comportamento da administração Trump foi apenas a manifestação mais extrema e
aberrante de uma tendência bem implantada no partido Republicano. A administração Biden procura agora revertê-la, mas ainda que o consiga
as profundas divisões existentes na sociedade americana fazem temer que a sua
política não dure.
Porém,
mesmo querendo os EUA recuperar esse papel, num mundo multipolar é mais difícil
exercê-lo. A
existência de diferentes pólos de poder exerce uma influência centrífuga. Quando a cooperação falha, ou tarda em materializar-se,
aumenta a pressão para os Estados actuarem cada um por si. Cada qual se sente não só na obrigação de agir
unilateralmente para defender os seus interesses como mais livre para o fazer. Quanto
mais os Estados actuam por conta própria, numa lógica egoísta, mais os outros
se sentem obrigados a proceder da mesma forma, privilegiando interesses
nacionais limitados, mas imediatos, a interesses colectivos difusos e só
materializáveis a médio ou longo prazo.
Uma estrutura multipolar dificulta a formação de
consensos para produzir bens públicos à escala internacional e torna mais
difícil exercer o papel de federador. Quanto maior o número de
grandes potências, mais difícil é conciliar os seus interesses e maior é a
margem de manobra para os estados de segunda linha. A deriva da Turquia é paradigmática. Continua a ser vista como um aliado indispensável no
seio da NATO e, teoricamente, mantém o seu estatuto de candidato a membro da
União Europeia, mas age cada vez mais em função dos seus interesses próprios,
sem sofrer consequências. As suas
relações com os seus aliados são eivadas de ambiguidade. Sente-se livre para
defender os seus interesses se necessário contra os seus próprios aliados, pois
sabe que é tida por indispensável para controlar o fluxo de migrantes e
refugiados em direcção à Europa e como contrapeso à Rússia.
Pela primeira vez desde a criação das
Nações Unidas, a diplomacia multilateral tem de funcionar no quadro de
uma estrutura multipolar. As
dificuldades são evidentes a olho nu. O Conselho de Segurança está paralisado. Ainda assim, é um tributo extraordinário à
sagacidade dos fundadores das Nações Unidos que o seu núcleo de membros
permanentes continue a ser largamente representativo da distribuição do poder a
nível internacional. Dos cinco membros permanentes, três, os EUA, China e Rússia, são grandes potências. A União Europeia está de algum modo representada pela
França. Só o Reino Unido é, desde o Brexit, um
caso à parte. É um argumento poderoso
para respeitar a composição do núcleo duro do Conselho de Segurança.
A multipolaridade e o sistema de
alianças
Numa
estrutura multipolar, o sistema das alianças é, simultaneamente, menos
previsível, porque cada estado tem mais opções, e mais importante porque, para
equilibrar o poder, as alianças contam mais do que os esforços internos. O sistema bipolar desmoronou-se essencialmente por a
URSS ser incapaz de competir economicamente com os EUA. Num mundo multipolar globalizado, as alianças contam
mais do que as capacidades internas porque o perigo do isolamento é maior. Nenhuma grande potência, por maior que seja o seu
poder, pode arriscar o isolamento completo. O sistema de alianças é mais fluido
igualmente por outras razões, ideológicas e geopolíticas.
O actual
sistema de alianças continua a basear-se nas afinidades ideológicas. De um
lado, as chamadas democracias liberais ocidentais – E.U.A., União
Europeia, Austrália — do outro os
dois gigantes ex-comunistas, com regimes políticos
autoritários. Na Ásia, o
Japão e a Coreia do Sul mantêm-se
firmemente ao lado dos E.U.A. para
conter a China. Na Europa, a
NATO, ainda que em morte cerebral, como disse Emmanuel Macron, continua a
estruturar uma aliança contra a Rússia. Entre a Rússia e
a China, há um entendimento, ou se quisermos uma aliança
tácita, ainda que eivada de desconfiança mútua. Tal como Mao não quis ficar
subalterno de Kruschev, também Putin não quer ficar na dependência de Xi
Jinping.
Embora
a UE e a China exerçam uma influência global no plano económico, do ponto de
vista geopolítico são potências regionais: a UE na Europa e a China na Ásia. Estas
diferentes situações geográficas ditam perspectivas diferentes sobre as ameaças
a que estão sujeitos.
A administração Biden tem claramente
apostado nesse critério, procurando caracterizar a sua política externa como um
confronto ideológico entre as democracias e os regimes autoritários. O cimento
ideológico é, no entanto, mais frágil que no tempo da guerra fria. Por um lado,
esbateram-se as diferenças entre o mundo ocidental e o mundo ex-comunista. O
autoritarismo da China e da Rússia já não se exerce em nome de uma ideologia
claramente oposta ao Ocidente. O facto de ambas terem adoptado o capitalismo de
Estado permite-lhes
participar de um mesmo sistema económico globalizado. Ao mesmo
tempo que se atenuaram as diferenças ideológicas que demarcavam o Ocidente dos
países comunistas, cavaram-se as diferenças ideológicas no campo ocidental. Biden não obstante, os EUA e a Europa têm hoje em
dia perspectivas muito diferentes sobre o mundo. A União
Europeia é pacifista, feminista, antinacionalista e multilateralista ao passo
que os Estados Unidos, são cada vez mais militaristas, nacionalistas e
unilateralistas.
O credo comum da democracia liberal
não chega para disfarçar o afastamento crescente na maneira de ver o mundo
entre os EUA e a UE. É claro que, sob a administração Biden, estamos todos a
fazer um esforço para mostrar que se regressou ao passado. Mas não vale a pena
ter ilusões. Para além das suas ideologias coincidirem cada vez menos, as
situações geopolíticas dos EUA e da UE ditam à partida prioridades distintas e
preferências não necessariamente coincidentes.
O
ponto de partida para analisar estas prioridades e preferências é
necessariamente geográfico. Os EUA e a
Rússia são potências simultaneamente europeias e asiáticas. Embora a UE e a China exerçam uma influência
global no plano económico, do
ponto de vista geopolítico são potências regionais: a UE na
Europa e a China na Ásia. Estas
diferentes situações geográficas ditam perspetivas diferentes sobre as ameaças
a que estão sujeitos.
Um
dos critérios básicos para avaliar o nível de ameaça nas relações
internacionais é a proximidade. A União Europeia está rodeada pela Rússia a Norte e
pelo mundo muçulmano a Sul. Para
gerir e conter as ameaças que partem da sua vizinhança, depende, ou dependia,
essencialmente dos EUA. Essa protecção está a desaparecer, à medida que os EUA
prosseguem inexoravelmente a sua retirada do Médio Oriente, se viram para a
Ásia e insistem para que os europeus assumam uma maior quota de
responsabilidade pela sua defesa. Não admira assim que a União
Europeia, ao constatar a sua solidão crescente, queira desenvolver a sua
autonomia estratégica.
A razão para a alteração na posição
americana é simples: como potência global, simultaneamente europeia e
asiática, os EUA preocupam-se mais com a China, em ascensão, do que com a
Rússia, em declínio. A China representa um desafio claro e evidente à
supremacia americana e uma ameaça directa ao seu sistema de alianças na Ásia. Com quase 1500 milhões de habitantes, um território de
dimensão semelhante ao dos Estados Unidos, uma economia que será muito em
breve, ou por alguns critérios, já é a maior do mundo e um sistema político que
se tem revelado altamente eficaz, só resta à China transformar-se num grande
poder militar para se poder equiparar plenamente e até mesmo superar os Estados
Unidos.
Para a União Europeia, a China, por
ser distante, é uma ameaça menos presente do que a Rússia. Se analisarmos as
relações de força unicamente pelo prisma económico, a China é um rival muito
mais poderoso que a Rússia, mas também oferece muitas oportunidades. A Rússia é
mais perigosa simplesmente por estar mais próxima e competir num mesmo espaço
geopolítico. Presa das suas contradições internas, a UE não o pode
reconhecer abertamente, mas o Reino Unido já o fez na sua recente Strategic
Review. A Rússia
é uma potência revisionista, com ambições territoriais no coração da Europa e
uma atitude agressiva relativamente ao mundo ocidental que se
manifesta nas suas tentativas para corromper e manipular os seus regimes
democráticos, atacando-os
na ciberesfera e financiando movimentos populistas e antieuropeus. O seu
desrespeito pelos direitos humanos deixa pouco a desejar ao que se verifica na
China.
Com
uma determinação algo surpreendente, a administração Biden optou inicialmente
por confrontar simultaneamente a Rússia e a China num terreno essencialmente
ideológico. Mas se esse critério serve para dar coesão às suas alianças na
Europa e no Extremo Oriente, será certamente mais problemático aplicá-lo no
resto do mundo. O confronto com a Rússia e a China já está a levar a
uma maior aproximação entre estes dois países e a uma tendência para se
erigirem em protectores dos países em conflito com os EUA como o Irão. Para confrontar simultaneamente a Rússia e a China, o
Ocidente vai precisar de aliados e, para os encontrar, não poderá ater-se a
critérios de pureza ideológica. Mais uma vez, o caso da Turquia é paradigmático. Se a Rússia é uma ameaça à UE, é lógico procurar uma
aproximação à Turquia, visto que Rússia e Turquia são potencialmente rivais.
Por mais que Erdogan seja um
parceiro incómodo, a Europa não o pode dispensar.
▲ Não
admira que a União Europeia, ao constatar a sua solidão crescente, queira
desenvolver a sua autonomia estratégica ANADOLU AGENCY VIA GETTY IMAGES
A pressão americana provoca uma
cristalização do sistema de alianças, com os países ocidentais de um lado e a
Rússia e a China do outro. Quanto maior
for a tensão internacional, maior será a tendência para a bipolarização, tal
como ocorreu nas vésperas da primeira guerra mundial. Mas o facto de haver uma tendência para a
bipolarização não significa que a estrutura do poder seja bipolar. Significa
apenas que a competição chegou a um tal nível de intensidade que todos os
países são obrigados a escolher entre dois campos. Tal tendência, ao dividir o
mundo em campos opostos, também não será muito favorável ao multilateralismo.
Quanto
mais rígido for o sistema de alianças, mais difícil será operar um sistema
multilateral eficaz. Pelo
contrário, uma situação fluida, com áreas sobrepostas de competição e
cooperação entre as grandes potências, parece ser a que melhor permitirá
preservá-lo. Mas, ainda que seja possível evitar a cristalização, as estruturas
multilaterais continuarão sujeitas a erosão pelos efeitos da multipolaridade no
sistema internacional.
No
actual mundo multipolar, dominado pela competição entre os EUA e a China, não é
de excluir que os Estados Unidos se sintam um dia tentados, como sucedeu com
Trump, ainda que por outras razões, a procurar uma acomodação com a Rússia para
a afastar da China – o inverso do que fez Kissinger com a sua abertura à China
no tempo da Guerra Fria. Para a
União Europeia, pelo contrário, parece mais atraente uma acomodação com a China
para travar a Rússia. Na UE há um grupo substancial de países – os que
estiveram sob domínio soviético — que se sentem directamente ameaçados pela
Rússia. A China é mais remota e consensual.
Trinta
anos depois, há razão para pensar que Fukuyama errou ao não antecipar a
vitalidade da tradição de governo autoritário na Ásia, e a forma como a China e
a Rússia a renovaram após o fim do comunismo, inventando um novo tipo de regime
político assente no capitalismo de Estado, servido por uma máquina política
de elite.
Em divergência estratégica com a UE, os
EUA sentem-se tentados a construir na anglo-esfera um novo sistema de alianças
com países like minded. O recente
episódio do contrato com a Austrália para a dotar de submarinos de propulsão
nuclear, que enfureceu Macron, é um bom exemplo.
Mas Biden já dera outras indicações no mesmo sentido. Uma das suas primeiras
iniciativas foi a organização de um encontro virtual da chamada Quad Alliance –
Quadrilateral Security Dialogue – em que participaram, para além dos Estados
Unidos, a India, o Japão e a Austrália. Para o Reino Unido, esse poderia ser um
caminho atraente, que lhe permitiria situar-se numa bissectriz entre os EUA e a
UE. O Brexit permite ao Reino Unido
recuperar plenamente a sua soberania política, mas não lhe confere autonomia
estratégica, devido à sua contínua dependência dos EUA, que lhe fornecem os
misseis Trident que equipam os seus submarinos nucleares.
A globalização e a crise da
democracia liberal
A
situação internacional afecta a política interna das democracias liberais do
mundo ocidental. O colapso
do comunismo levou Fukuyama a decretar o fim da história. A sua tese não foi
bem compreendida. Fukuyama não previu o fim dos conflitos ou da evolução da
humanidade. Apenas argumentou que a democracia liberal triunfara de forma
definitiva no plano ideológico, independentemente do tempo e das peripécias que
fossem precisas para vingar em todo o mundo.
Trinta
anos depois, há razão
para pensar que errou ao não antecipar a vitalidade da tradição de governo autoritário na Ásia, e a forma
como a China e a Rússia a renovaram após o fim do comunismo, inventando um
novo tipo de regime político assente no capitalismo de Estado, servido por uma máquina política de elite, como o Partido Comunista
Chinês ou o FSB, sucessor do KGB russo,
chefiado por uma figura carismática, e capaz de utilizar tecnologias de controlo social sem
precedentes na história da humanidade, baseadas na análise de dados e na
inteligência artificial. Desde que
consigam gerar crescimento económico e garantir a segurança de pessoas e bens,
estes regimes são perfeitamente capazes de beneficiar da aceitação tácita da
maioria da população, o que lhes confere uma certa aura de legitimidade.
A vitalidade destes regimes,
particularmente na China, constitui um desafio para as democracias liberais e
para um sistema de alianças baseado em afinidades ideológicas. No actual momento histórico, podemos dizer que o
capitalismo reina triunfante, mas as democracias liberais estão sujeitas a
novos desafios e manifestam graves sintomas de crise. Paradoxalmente, a globalização,
seu principal triunfo, contribui para este estado de coisas, por duas razões
Primeiro, a adesão geral ao capitalismo, seja ele
essencialmente privado ou de Estado, esbate as diferenças ideológicas entre,
por um lado, as democracias liberais, e, por outro, as democracias iliberais –
como a Hungria de Vítor Orban, em que um poder autoritário é sufragado por
eleições livres e continua a permitir um módico de liberdades e garantias
individuais — e os regimes autoritários puros e duros, como a Rússia ou a China
e permite a estes penetrarem e corromperem o Ocidente com o poder do dinheiro.
Segundo, a globalização, ao promover uma divisão internacional do trabalho
cada vez mais fina, favorece o desenvolvimento económico, mas produz igualmente
efeitos perversos, gerando desigualdades que minam por dentro as democracias.
O crescimento das desigualdades nos
próprios expoentes da democracia liberal, estimula neles uma reação
nacionalista, populista e autoritária. Nos EUA, um país que nunca conheceu outro
regime político, o símbolo máximo da
democracia — o Capitólio — foi atacado em nome dos seus próprios princípios
pelos partidários de Trump.
Na Europa, essa reação alimenta-se de outras tradições políticas
– não necessariamente fascistas – cuja memória está ainda bem presente e é
agravada pelo facto dos regimes democráticos nacionais terem de conviver e
competir com instituições comunitárias dotadas de um formidável poder
burocrático e centralizador.
À
crise do multilateralismo, favorecida pela estrutura multipolar do sistema
internacional, junta-se assim uma crise da democracia liberal, paradoxalmente
favorecida pela globalização.
A
qual, por sua vez, está nitidamente em recuo. Antes mesmo de se agudizarem as tensões entre os EUA e
a China, esse recuo já era patente nas tendências proteccionistas que se
verificam um pouco por todo o lado e na progressiva dissolução de um regime
comercial global em prol de arranjos bilaterais ou regionais. A pandemia de
Covid19 agravou essa tendência. A competição entre os EUA e a China pode acentuá-la
ainda mais, diminuindo
a interpenetração das suas economias, ou levando mesmo ao “mundo fracturado”
dramaticamente evocado pelo secretário-geral da ONU, António Guterres. Prima
facie, esse recuo da
globalização também não será de molde a favorecer o multilateralismo.
As contradições do século XXI
Vivemos assim uma situação recheada de
contradições.
Em primeiro lugar, as
mudanças na distribuição de poder no sistema internacional, consubstanciadas na
transição para uma estrutura multipolar, dificultam a obtenção dos consensos
necessários para que o multilateralismo, principal mecanismo para os fornecer a
nível internacional, resista e seja eficaz, numa altura em que é mais
necessário do que nunca.
Em segundo lugar, essas dificuldades são agravadas pelos efeitos
perversos da globalização. Se, por um lado, a globalização carece de ser gerida
no plano multilateral, por outro provoca reacções proteccionistas e
nacionalistas, devido ao desejo natural de cada Estado de evitar dependências
indesejadas — veja-se o actual debate sobre as cadeias de abastecimento global
— e de mitigar as desigualdades internas que ela favorece.
Em terceiro lugar, o recurso
à ideologia para
demarcar campos perde eficácia devido às divergências estratégicas entre EUA e
UE, à necessidade de aliados que não podem ser recrutados apenas com base em
critérios de pureza ideológica, à crise da democracia liberal, e ao facto de o capitalismo ter deixado de ser apanágio do Ocidente
para passar a ser praticado, com crescente sucesso, por regimes políticos
autoritários como o chinês e o russo.
Como lidar com estas contradições?
Num mundo simultaneamente mais integrado
e mais fragmentado, parece importante reconhecer que a globalização não é
garantia de paz, nem de bom governo global. Prosseguindo
a analogia com o século XIX, convém não esquecer o fim trágico de uma outra era
áurea da globalização. Após uma longa paz que, apesar de algumas guerras
localizadas, durou praticamente um século, pensava-se que a guerra entre as
grandes potências era impossível, tal a interpenetração das suas economias. Não
foi o que aconteceu.
Não
estamos perto do desfecho fatal que se verificou em 1914. Para o mantermos
longe do nosso horizonte, devemos, contudo, avaliar correctamente as relações
de força e as dinâmicas que produzem, evitando analogias erradas com a época da
Guerra Fria, e apreender as contradições do sistema em que vivemos.
Perante as incertezas que se perfilam
no horizonte, recomenda-se prudência e flexibilidade. Sem renegar os valores do Ocidente, é importante
reconhecer os limites da ideologia como princípio orientador da política
internacional e procurar manter, a todo o custo, entendimentos multilaterais em
matérias de óbvio interesse global,
como a crise climática, a controlo das
armas nucleares, ou a gestão da saúde pública.
Ao mesmo tempo, é preciso aceitar que
a globalização pode, e provavelmente deve, ser limitada, de forma a mitigar a
instabilidade que gera. Um mundo de blocos mais independentes entre si, desde
que aprendam a cooperar uns com os outros em matérias de interesse fundamental,
não será necessariamente pior, nem mais instável.
Bernardo Futscher Pereira é
embaixador de Portugal em Rabat. Foi anteriormente assessor diplomático e
sherpa do Primeiro-Ministro António Costa.
GEOPOLÍTICA MUNDO HISTÓRIA CULTURA
COMENTÁRIOS:
V. Oliveira: "Para a
União Europeia, pelo contrário, parece mais atraente uma acomodação com a China
para travar a Rússia". O artigo
parece bem fundamentado. Quanto a uma das opções, acima descritas, não sabemos,
o terreno é movediço (outro leitor refere-se, e bem, prognósticos só no
fim do jogo). Por exemplo, e o gás russo Sr. Embaixador? E a Alemanha que
encerra as centrais a carvão e rejeita (pelo menos agora, veremos) o
nuclear? Quanto ao
Reino Unido, de acordo. São uma potência militar, mas com cordão umbilical aos
EUA. Ainda que jocosamente, alguém um dia disse que o UK era o porta-aviões
americano estacionado na Europa :) Globalmente,
gostei do artigo. Obrigado.
Harry Dean Stanton: Um
bom ensaio. Com alguma opções mais que duvidosas como a aproximação a alguém
tão instável como Erdogan. Até nas relações com a Rússia. Com quem até a
História diz que era muito mais fácil a UE estabilizar uma boa relação, que só
por si eliminaria todas as ameaças de que também se fala aqui. Mas concordo
sobretudo que a UE precisa de muito mais autonomia estratégica, inclusive a
nível militar, que também facilitaria passarmos muito melhor por esta crise
energética.
Jorge Simoes: O
que faz a perua do sofá na foto? Desde quando aquela representa a Europa? Se
representa, então a decadência é uma certeza.
Vou ali e já
volto: Bom texto, boa análise, muito
esclarecedor. Parabéns aos sr. Bernardo Pereira.
Jose Martins: o que quer
dizer vitalidafe do regime Chinês??? Em ditaduras existe um tipo de vitalidade.
Será a essa que o Autor se refere?
bento guerra: Prognósticos, só no fim do jogo, quando houver uma só
potência a mandar
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