Vale como desabafo. Não se sabe se o toldo cai mesmo, que o toldo é suficientemente espaçoso para albergar circenses, os excedentes, rodeando o todo, dando-se braços e mãos, como na velha e estimulante canção do “Adeus” das despedidas: “É só até mais ver, irmãs”… Que, neste caso, também contam - e cantam - todos irmãos. Sem pieguice nem ruptura, mas com decisão.
Caiu o toldo do Circo Costa
O mestre de cerimónias, no seu
impecável fato de lantejoulas brilhantes, ofereceu-se à plateia, como
homem-bazuca. Aos gritos e pulinhos, anunciou o seu novo estatuto. Era “o
Grande Bazuco”.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 28 out 2021
Tem
acesso livre a todos os artigos do Observador por ser nosso assinante.
Nem
a Dra. Graça Freitas, nem o Dr. Lacerda Sales, nem o Dr. Marques Mendes, nem
sequer o subtilíssimo Marcelo (que depois entrou em pânico e na perversidade
política consequente) conseguiram descobrir qualquer “evidência científica” que
anunciasse o que se passou nestes últimos dias. Os comentadores quase todos,
muito desembaraçados, declararam que o real actual era impossível.
Quando
o Circo Costa chegou à cidade, o
coro maravilhado não se calou. Vinha aí o maior espectáculo do mundo, o sol
radiante que substituiria a noite negra, o deslumbramento da cultura face ao
inominável horror da incultura, a atenção ao humano contrariando a paixão do
não-humano. Como convém a todo o verdadeiro espectáculo, convinha que ele
assentasse num mito fundador. O mito fundador do Circo Costa, anunciado
em grandes cartazes por todo o país, era simples e enunciável de forma simples,
mais simples – muito mais simples – que o mais simples mito primitivo: o “virar
a página da austeridade”.
A
pouco e pouco vieram chegando notícias do Circo Costa, notícias que nos diziam
que os “trabalhadores do espectáculo”, como se diz, não eram os melhores.
Começou a ter-se a prova clara de que o rosto feliz dos artistas dissimulava,
cada vez mais dificilmente, uma ficção incongruente. Uma ficção
incongruente: um enredo no qual os personagens não apenas oscilavam nas suas
características psicológicas mas tinham duas naturezas, que ora se combinavam
numa forma, ora se combinavam noutra. Num romance, até pode ter graça – embora,
segundo a minha experiência, seja raro. Na realidade, é uma desgraça. Lidamos
mal com a labilidade e a duplicidade. A má-fé e a reserva mental estragam-nos a
vida. Isto, que vale para a vida pessoal, vale também para a vida política.
O grande empresário político dos
nossos dias, Marcelo, suspeitando que o espectáculo atrairia o público,
deu-lhe, entusiasmado, cobertura.
Estava com Costa aqui e ali, e Costa ali e aqui com ele estava. O namoro
aparecia em todas as revistas cor-de-rosa, e os jornais sérios embeveciam-se
com prosa teórica delicodoce. Os telejornais competiam em imagens amorosas.
E acabavam com o equivalente das declarações: “Somos só bons amigos”.
Até
que algo começou, aos olhos do público, a correr mal com o Circo Costa. O
mestre de cerimónias, no seu impecável fato de lantejoulas brilhantes,
ofereceu-se à plateia, complementando o seu habitual exercício de equilibrismo,
como homem-bazuca. Aos gritos e pulinhos, anunciou o seu novo estatuto pelo
país inteiro. Era “o Grande Bazuco”.
O
problema é que o circo definhava. O palhaço pobre, Eduardo Cabrita, sem
ajuda na rábula de nenhum palhaço rico, perdeu o tino que nunca teve e
multiplicou-se em graças que nunca agradaram ao público, até porque a não
tinham. O domador de animais ferozes, João Leão, esgrimia o chicote “cativações”
e o animal feroz de serviço neste circo tão doméstico, Pedro Nuno Santos,
ameaçou-o de boca feroz, num rugido televisivo, sem que o mestre de cerimónias
dissesse uma palavra. Os restantes animadores – João Pedro Matos Fernandes,
Tiago Brandão Rodrigues, Marta Temido e Graça Fonseca – davam voltas e
voltinhas circulares, acenando aos espectadores, de cavalo e de triciclo, com
sorrisos postiços. Passavam outros também – Nelson de Souza, Ana Abrunhosa,
Maria do Céu Antunes, Ricardo Serrão Santos (conhecem-nos? são ministros) – e
circulavam igualmente personagens que apareciam aqui e ali, por razões que
ninguém percebia ou que se percebiam demasiado bem.
Razões que só se podem classificar
como laborais levaram Jerónimo
de Sousa e Catarina Martins a abandonar o circo. Andaram a
ajudar a montar a tenda nestes últimos anos, de foice e martelo na mão, e não
lhes pagavam o que pediam. Uma tristeza! Jerónimo optou por espectáculos ao ar
livre, onde ainda tem, por enquanto, público garantido e organizadores eficazes.
Catarina decidiu por Catarina, isto é, por nada. Mas ambos tristes. E com
razão, bem vistas as coisas. O circo foi-lhes cortando os vários membros do
corpo e, a cada corte, ofereceu-lhes um berloque que muito lhes agradou e,
regra geral, chateou à brava os espectadores, sem que grande parte destes
percebesse bem que os berloques iam corroendo a estrutura da tenda. Até que
ficaram só com a cabecinha falante, tristíssima pelas amputações sucessivas,
mas com o mesmo mobiliário que tinha quando tinham o corpo inteiro.
O toldo caiu em cima dos espectadores
quando os suportes foram cortados pela foice tão parceira do martelo que
pregara os suportes da tenda. Dir-se-á que se passa bem sem um espectáculo ou
outro. O problema é que ficamos todos a esbracejar debaixo do toldo, aos
encontrões desesperados uns aos outros, por culpa única e exclusiva do mestre
de cerimónias, com um cartãozinho nas mãos que nos fala das maravilhas da
transição climática e digital. A confusão é geral. A única solução, é
claro, é buscar a saída. Há um pequeno letreiro, ao fundo, que diz: “Eleições”.
Pode não resolver tudo – não vai resolver – mas alivia. Com sorte, alivia desta
tão catastrófica combinação do mais descarado oportunismo e do mais consumado
arcaísmo ideológico. O Circo Costa teria muito sucesso, creio eu, em Zanzibar.
Marcelo, de resto, também lá ficaria bem.
COMENTÁRIOS:
Antonyo antonyo: Excelente !! Até se podia citar os Monty Python com os seus “ Os Malucos do
Circo” Sérgio: Parabéns, muito bom. Pena esse circo ser um
espectáculo tão medíocre e TRÁGICO.... Clarisse Seca: Seria cómico, se não fosse
trágico com tão maus actores. Não os conseguiríamos piores em outras
paragens. Deram cabo disto tudo e ainda estarão a rir-se de nós todos.
Olhem, o Sr. Salgado calhou àquele senhor que ilibou Sócrates
e outros de crimes. Caramba que ainda estão em acção! Liberal
Assinante do Local > Clarisse Seca: O toldo pode cair que isso não
os tira do palco. José Barros: Excelente, Paulo Tunhas. É
tempo de desmontar mistificações. O País só tem a ganhar. Gustavo
Lopes: Genial forma de
descrever o nosso triste fado dos últimos 6 anos... Nada como brincar, pois que
isto está sério, disso poucos têm dúvidas!!! Parabéns pelo texto. josé
maria: Muito me vou rir
se o PS vier a obter maioria absoluta na próxima eleição legislativa, ó se
vou...
Bernardo Vaz Pinto: O circo caiu…esperamos que algo
melhor nasça …cabe a todos acordar e perceber a gigantesca fraude que foram
estes 6 anos…basta ver os números , em todo o lado disponíveis … Antonio Bentes:
ANTOLÓGICO!!!.
Para memória atual e futura. Extraordinário texto. Muitos e muitos parabéns
para a sua análise sobre este nosso triste país. Muito obrigado hugo Carreira Vou roubar! está impecável! Rita
Salgado: Genial! Que
alegoria extraordinária! João
Floriano: Crónica excelente e certeira no alvo. Caiu o toldo mas
não faltava adrenalina no circo. A palhaçada era excelente, o ilusionismo de
primeira qualidade. Um único senão: voava-se no trapézio sem rede. José
Silva: Excelente texto,
como uma ironia refinada e que traduz tudo. Obrigado. Rosa
Teixeira: Espetacular. Paulo Neves: Excelente fábula sobre a nossa
triste realidade, para além dos malabarismos propagandísticos do Largo do Rato. Hipo
Tanso: Do melhor que se
tem lido no Obs. Referência especial ao "grande bazuco"!
Ironia mais demolidora será difícil. augusto
sousa: A imagem escolhida “do circo Costa“ e seus
protagonistas como “o grande basuco “ está de excelência! Paulo Tunhas tem uma
escrita escorreita ,agradável de ler, elegante, com grande ironia, e um
pensamento estruturado. Identifico-me com a
sua análise da mediocridade dos “artistas” e do mestre de cerimónias e do seu
consumado arcaísmo. Como é possível a ausência de sentido de estado e de tanto
atraso na forma de ver a sociedade e a sua necessidade de desenvolvimento. O
“grande bazuco ” que são só lantejoulas e nada sabe fazer, aproveitou e
aliou-se ao que mais retrógrado, obsoleto e reaccionário existe na nossa
sociedade para …construir um país moderno ! Que tempo perdido. João
Alves > augusto sousa: O problema é se vamos continuar em busca dele … bento
guerra: É muito cedo para deitar
foguetes. O "bazuco" vai só mudar de fato, porque o negócio vai
continuar, talvez com mais força. Lidia Santos: Lindo Maria Nunes: Excelente. Antes
pelo contrário: Caíu o toldo mas não matou ninguém. Continuam lá todos a rastejar,
como cobras. Pedro Ferreira: Esta historia é baseada em
factos reais!
Rui Teixeira: So far, o seu melhor texto , Prof! Um circo sem dignidade alguma,
fundado na fraude eleitoral e a viver na e da Mentira. Um circo liderado por
uma Coisa execrável, verdadeiramente imprópria para consumo. 20 valores. José Dias: Lamento a maldição lançada
sobre o povo de Zanzibar ... não havia "nexexidade"! Pedro
Sena Esteves: Coitados dos "zanzibaros"!! Ninguém merece
tal sorte! Como sempre, está genial! Obrigado! Paulo
Cardoso: Perfeito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário