Um texto – de Eduardo Sá - que se poderia traduzir segundo o modelo ditado poeticamente por José
Régio. Citemos:
“Cântico Negro”
“Vem por
aqui”- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória
é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
—Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Não, não vou
por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…
Se ao que
busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: “vem por aqui”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
a ir por aí…
Se vim ao
mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! tendes
estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo
é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que
ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou…
Não sei para onde vou,
Não sei para onde vou
—Sei que não vou por aí! José
Régio
E todavia, vivemos numa época que se
afirma – com atraso, no que nos concerne a nós, portugueses de lei, de duzentos e muitos anos – fraternalmente em pé de absoluta
igualdade com o resto da camarilha humana. Mas eu acho que se enganam, os
pregoeiros da igualdade social. Cada um de nós, ao seguir o seu próprio
trilho, com orgulho ou sem ele, mostra que é uma unidade diferente da unidade
alheia e disso ninguém nos tira, cada árvore diferente da sua congénere, apesar
da moldagem que os valores – ou a sua ausência – provoca nos homens, como a
poda nas árvores ou buxos do jardim. A presunção de cada indivíduo, de ser ou
fazer diferente, como bem o define Eduardo
Sá - contrariando a doutrina piedosamente cínica do seu século - resulta das características que de facto diferenciam os homens, quer na
educação, quer no estatuto económico, ou no próprio tamanho físico, ou na
questão moral. Mas o resto é mesmo o silêncio, de que falou Hamlet, e nesse contexto
somos todos bem iguais, devíamos meditar mais nisso, em termos de moralidade, por
tosca que seja.
Ser diferente. Fazer diferente /premium
Podemos saber quem somos sem que o
orgulho faça parte de nós?… Não. Orgulho: será por aí que passa a fórmula para
a diferença. Sem a qual a nossa vida não terá a nossa cara.
EDUARDO SÁ
OBSERVADOR,10 out
2021
Fazer diferente ou ser diferente: parece ser esse o objectivo de milhões de pessoas,
todos os dias. Porque é que a diferença parece ter-se tornado tão
urgente? Porque nos sentimos todos demasiado iguais. “Irrespiravelmente”
iguais. Diferentes, por fora. E iguais (mais que semelhantes), em muito daquilo
que nos falta para que, aos olhos de todos, sejamos inimitáveis e singulares.
É estranho que a nossa diferença se reclame resumida a uma fórmula demasiado
clonada na ideia para a diferença de outras pessoas. Somos, até,
demasiadamente parecidos na forma como reclamamos a diferença! Sendo
assim, como podemos tornar-nos diferentes se inquinamos essa diferença, à
partida, da mesma forma, igual, que outras pessoas usam para reclamar as suas
diferenças?
Ser
diferente (ou fazer diferente) parece ser a forma de, por outras palavras,
dizermos que queremos ser melhores – ou fazer melhor – que os outros (que
acabam por ser, como nós, demasiado iguais entre si). É uma intenção séria. Se
bem que escorregadia. Porque se a nossa diferença se faz ancorada nos
contrastes que, considerando o comportamento dos outros, conseguimos destacar
daquilo que eles fazem, arriscamo-nos a nunca nos distinguirmos deles.
Porque, quando muito, vivemos presos aos seus actos. Sendo só o contrário
daquilo que eles fazem que nos fará diferentes. Duma forma que acaba por estar
sempre muito mais presa às suas características do que, propriamente, aquilo
que temos de único. De só nosso. Ou de singular.
Porque
é que sendo, inacreditavelmente, inimitáveis, acabamos a sentir que somos todos
demasiado iguais? Porque, quando nos olhamos ao espelho, raramente a nossa vida
tem a nossa cara. Porque ela parece estar, como a dos outros, atulhada de
ruído, de lixo e de constrangimentos. Sabemos que funcionamos; sim. Mas não
sabemos quem somos. Nem parecemos assumir um “Vou por aqui!”, íntegro e
determinado, que, apesar de todos os solavancos que ela dê, faça com que a
nossa vida seja aquilo que quisermos que ela seja. Uma impressão digital, mais
que um trilho de peugadas que logo se desvanece.
A
par, falamos, hoje, de tudo aquilo que, à primeira vista, distingue e discrimina
algumas pessoas, como “diferenças”. Tomamo-las como pessoas “diferentes”. Não,
não são deficientes. São diferentes. Ora, num mundo que parece reclamar, a
torto e a direito, o privilégio de ser diferente ou de fazer diferente, seria
motivo para o regozijo de todos que houvesse quem, por si mesmo, conseguisse
ser diferente dos demais. Mas não. Afinal, a diferença a que dantes
chamávamos deficiência não parece ser motivo de orgulho. Ou de destaque, pela
positiva (como agora se diz). Mas mais uma forma hipócrita de transformar um
estigma numa diferença. De pegarmos num defeito e de o tomarmos como “qualidade”.
Como se, entre todos os outros que não sendo diferentes mas que o reclamam, só
esses fossem diferentes. (O mundo é, por vezes, inacreditavelmente, confuso na
forma como pensa!)
Seja
como for, ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro, parece
ter sido, noutros tempos, a forma como, em retrospectiva, se passou a descrever
uma espécie de testamento vital que daria um rasto, um sentido ou um significado
à vida que teremos tido. Seriam provas de vida. Que deixariam um trilho
a propósito daquilo teremos sido capazes de construir. Que nos distinguiria de
todos os outros. Ou que vincaria a nossa diferença.
Ora,
porque havemos nós de dar voltas e voltas para assumirmos, como clareza, que
faz diferença olharmos para nós e precisarmos de sentir vários: “Este sou eu!”?
E sentir orgulho em muito do que somos? Orgulho pela forma como chegámos à
pessoa que temos connosco. Orgulho nela. Orgulho nos filhos que temos.
Orgulho ao sentirmos que quem gosta de nós nos admira por aquilo que reconhece
que somos. Ou orgulho por aquilo que fazemos. Porque é que passamos a vida a
reclamar a diferença?… Porque são demasiadas as vezes em que o orgulho
nos escasseia.
É
por não acharmos uma graça por aí além à vida que temos que passamos a vida a
reclamar pelas diferenças. E não achamos graça porque não nos reconhecemos
nela. Querermos ser diferentes (e melhores) que os outros é uma forma de nos
entrincheirarmos na vaidade daquilo que queremos para nós em relação aos outros
quando o orgulho, só por si, parece ir sucumbindo. Precisarmos dos outros
para nos afiançarmos que somos melhores que eles é, seguramente, diferente de
precisarmos do seu contributo para sermos melhores do que somos; todos os dias.
Sermos diferentes ou fazermos diferente parece ser a forma como, por falta do
orgulho, reclamamos a vaidade. Vendo bem, há forma de sermos, tragicamente,
mais iguais em relação aos outros do que sermos vaidosos?
Querermos,
antes de mais, ser diferentes é como começar uma casa pelo telhado. É querermos ser diferentes sem precisarmos de ser
nós. É uma espécie de fast food: ser diferente sem ser preciso trabalhar
para sermos quem somos. Diferentes por fora. Qualquer coisa como: não se
construa, não se transforme, não se preocupe com os erros, não procure as
pessoas que o tragam até si, não se pergunte “quem sou eu?” ou “por onde quero
ir?”. Poupe nos meios. Seja mais esperto. Faça mais rápido. Seja diferente.
Diferente – muito diferente! – de fazermos tudo para termos um percurso de
vida, fazermos por ser quem somos e acabarmos, só porque fomos por aí, por ser
singulares, únicos, inimitáveis; diferentes de verdade. Esta “formula” é mais
trabalhosa e aproveita os erros para construir a diferença. A outra, contorna
os erros e reclama a diferença de maneira preguiçosa e com pouco trabalho.
Podemos
saber quem somos sem que o orgulho faça parte de nós?… Não. Orgulho: será por
aí que passa a fórmula para a diferença. Sem a qual a nossa vida não terá a
nossa cara. Nem se fará
de todos os “vou por aqui!” sem os quais não seremos quem somos. Ficando-se por
um trilho de peugadas que logo se desvanece. Por mais que, como todos os
outros, por causa disso, queiramos ser diferentes. Ou fazer a diferença.
COMPORTAMENTO SOCIEDADE CRÓNICA
COMENTÁRIOS:
Idalina Moutinho: Fazer
diferente e sentir diferente é muito
desgastante, porque é mais o bota abaixo, que agradecer
João Floriano: Dei por mim a
imaginar o Dr. Eduardo Sá, qual Hamlet do Observador em collants pretos, de
caveira claro, a recitar To be or not to be different. O grande busilis é que
ser diferente sai caro. O preço é geralmente a solidão mesmo quando se está
acompanhado. Bela crónica. Gostei muito.
bento guerra: Quantos
"likes" , isso sim, faz a diferença
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