domingo, 31 de outubro de 2021

Uma página de fé


Do P. Gonçalo Portocarrero de Almada, baseada no relato dos Apóstolos e sem artificiosa pregação propagandística, a propósito das sondagens sobre a natureza divina de Jesus de Nazaré, e a justificar como as sondagens são passíveis de enganos, ainda hoje….

P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA

OBSERVADOR, 30 out 2021, 00:1921

É discutível saber quem foi o vencedor das últimas eleições autárquicas, mas não há dúvidas sobre quem as perdeu: as sondagens.

Foi sobretudo em Lisboa que as sondagens mais falharam. A uma semana das eleições, publicava-se a seguinte: “Sondagem: Medina sucede a Medina em Lisboa, sem maioria absoluta e com direita reforçada” (Público, 22-9-2021). Não satisfeito com a putativa derrota eleitoral do candidato do PSD, o mesmo jornal insistia na esperada (e, eventualmente, desejada) derrota do actual presidente da Câmara Municipal de Lisboa: “Carlos Moedas fica aquém do resultado obtido pelo CDS e PSD há quatro anos.Mais um prognóstico porventura querido, mas falhado porque, se assim tivesse sido, não teria ganho a presidência da CML.

Na semana seguinte às eleições autárquicas, o Expresso de 27-9-2021 dava conta de uma evidência: “Nenhuma sondagem pré-eleitoral adivinhou a vitória de Carlos Moedas, nem sequer um empate técnico entre os dois candidatos a presidente da câmara”. Melhor teria sido que os adivinhos em matéria de eleições, em vez de arriscarem palpites sobre os resultados, fizessem sua a prudente atitude do jogador de futebol que, inquirido sobre um desafio a disputar, cautelosamente afirmou: ‘Prognósticos, só no fim do jogo!’

Ainda bem que os eleitores não se deixam levar pelas sondagens que, como agora se viu, não são inocentes, nem fidedignas. Agora?! A bem dizer, as sondagens falham desde quando, há dois mil anos, se fez uma consulta popular em Cesareia de Filipe.

Refere o evangelista São Mateus que, “tendo chegado à região de Cesareia de Filipe, Jesus interrogou os seus discípulos, dizendo: ‘Quem dizem os homens que é o Filho do homem?’” (Mt 16, 13). Portanto, pode-se dizer que Cristo, ao pedir aos seus discípulos que averiguassem o que a multidão pensava dele, foi a primeira personalidade que encomendou uma sondagem à opinião pública!

Os apóstolos estavam, habitualmente, em contacto com as gentes que se encontravam com Cristo. Assim aconteceu quando, surpreendentemente, com apenas cinco pães e dois peixes, cerca de dez mil pessoas esfomeadas se alimentaram até ficarem saciadas (cf Mt 15, 32-38). Foram os discípulos que distribuíram os pães e peixes milagrosamente multiplicados por Jesus e, depois, recolheram doze cestos “cheios dos bocados que sobejaram”. Ao fazê-lo, decerto ouviram os comentários daqueles homens, mulheres e crianças. Embora o Mestre, ao protagonizar algum facto extraordinário, procurasse a máxima discrição, indo por vezes para fora das povoações, estes milagres mais espectaculares não podiam ser ignorados pelas multidões.

Sobre Jesus de Nazaré havia então, como agora, duas posições opostas: a dos que crêem que é Deus e a dos que afirmam que é um demónio. Com efeito, todos os cristãos afirmam, como Simão Pedro, que Jesus “é o Cristo, o Filho de Deus vivo” (Mt 16, 16). No extremo oposto, os fariseus de ontem e de hoje, afirmam o contrário, ou seja, que era pelo príncipe dos demónios que Jesus expulsava os demónios (Mt 12, 24; Lc 11, 15-26; etc.). Entre estes dois extremos, situa-se a resposta à sondagem em Cesareia de Filipe: “uns dizem que (Cristo) é João Baptista, outros que é Elias, outros que é Jeremias ou algum dos profetas” (Mt 16, 14).

Na verdade, a posição intermédia, como era a dos que consideram Jesus como um profeta, é equidistante da cristã, que o considera Deus, e da farisaica, que o identifica com o demónio. A afirmação de que Cristo é um profeta, como João Baptista, Elias ou Jeremias, não só era, há dois mil anos, a mais consensual, como parece ser, também agora, a mais razoável. Se hoje se fizesse uma sondagem à opinião pública sobre Jesus de Nazaré, é muito provável que o resultado fosse o obtido, há dois mil anos, em Cesareia de Filipe.

Contudo, a hipótese de Jesus de Nazaré ser um homem justo, um santo ou um profeta, apesar de parecer ser a resposta mais razoável à pergunta sobre a sua identidade, não é racionalmente possível. Com efeito, a alternativa existe apenas em relação às restantes duas hipóteses: Jesus Cristo é Deus ou, então, o demónio.

Porquê?! Por uma razão muito simples e absolutamente decisiva: Jesus de Nazaré disse, inúmeras vezes, que é Deus. Disse-o nas primeiras palavras que dele se conhecem quando, com doze anos apenas, se intitulou filho de Deus. Ora, qualquer filho é da mesma natureza do seu pai: ao dizer-se filho de Deus e não de José, Jesus estava a afirmar a sua natureza divina. Como tal foi entendido pelos seus contemporâneos e, por isso, as autoridades religiosas da altura o condenaram à morte, por blasfémia. Ele disse também, claramente, que era o Messias e igual ao Pai, porque ele e Deus são um só. Permitiu-se promulgar um novo mandamento da Lei de Deus, prerrogativa exclusivamente divina. Deixou-se adorar pelos seus discípulos, momentos antes de ascender aos Céus.

Nenhum profeta, homem justo ou santo, fez alguma vez tais afirmações ou se deixou adorar e, por isso, Jesus de Nazaré, decididamente, não pode ser equiparado a João Baptista, Elias, Jeremias ou algum dos profetas: a sondagem, em Cesareia de Filipe, falhou redondamente! São Paulo, por exemplo, não deixou que fosse oferecido um sacrifício em sua honra, por entender, com toda a razão, que uma tal homenagem seria um acto idolátrico (cf. At 12, 11-18; 28, 6). Quando São João quis prostrar-se diante do anjo que lhe revelara o que escreveu no Apocalipse, este ser angélico não consentiu, porque também ele é uma criatura e só Deus pode ser adorado (cf. Ap 22, 8-9). Logo, se Cristo permitiu a adoração que lhe foi prestada pelos seus discípulos, ou é verdadeiramente Deus, ou não e, neste caso, seria um falsário e um mentiroso, ou seja, como o demónio, que “é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44).

Dois mil anos depois de ter andado pela terra, Jesus de Nazaré só pode ser adorado ou odiado. Enquanto alguns, não obstante a sublimidade da sua vida e ensinamentos, bem como os seus prodigiosos sinais, insistem em fazer coro com a multidão que pediu a sua crucifixão, outros muitos, rendidos ante a evidência da sua divindade, caem prostrados a seus pés, fazendo sua a profissão de fé do apóstolo incrédulo: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20, 28).

CRISTIANISMO   RELIGIÃO   SOCIEDADE   SONDAGENS

COMENTÁRIOS:

Theodor Adorno: Uma religião que acredita que um zombie judeu é deus, e um acto canibal é um dos mais importantes exercícios de religiosidade católica! Nada nem ninguém consegue competir com a alucinação dos crentes.         Jesus Cristo laico: Imagine-se como seria a história universal se fosse escrita com tamanha pormenorização como são relatados os actos bíblicos que chegam ao "rigor; do tempo, da hora e da forma falada, dos costumes e do tarifário das mercadorias! Não tarda teremos a Bíblia em vídeo e então poderemos ver e ouvir todos os pormenores, as línguas, as falas, as inflexões, as vestimentas, as condições meteorológicas, os costumes, os vícios, etc., mas só e somente no médio oriente e Egipto porque a corte celestial nunca foi Ao norte da Europa, à Ásia, à África, às Américas, à Antártida e nem à Lua!               Simão  > Jesus Cristo laico: Foi, pois. A Igreja que Cristo fundou já chegou ao mundo todo.          Manuel Ferreira21: É interessante como nos motiva para os mistérios da fé e nos leva a ler tudo e a voltar atrás para uma segunda leitura mais enriquecedora. Obrigado.        Soares Loja: Caro Pe. Portocarrero de Almada, aprecio muito o que escreveu. Um abraço              João Afonso: Quando acusaram Jesus de se sentar com más companhias, Ele respondeu dizendo que um médico deve procurar os doentes. Lembro-me sempre desta passagem bíblica quando leio grande parte dos comentários aos textos do padre Almada. Simão João Afonso: O médico deve procurar os doentes para lhes fazer o diagnóstico correcto e prescrever o tratamento adequado.         David Pinheiro: Quem é que sabe o que realmente Jesus disse? O que sabemos é que os evangelhos canónicos, apesar de baseados numa fonte comum, possuem contradições internas (e externas). Não era de esperar outra coisa de escritos muito posteriores à vida e ministério de Jesus, noutra língua, sabe-se lá quem os escreveu e que pessoas entrevistou (ou entrevistaram, podem ter sido vários autores de um mesmo evangelho). Por isso afirmar que Jesus disse isto ou aquilo é um tiro no escuro.              Liberal Assinante do Local: Como o padre Gonçalo Almada invoca a lógica e a razão, há que aprofundar esse ponto de vista. E o que ele diz tem lógica e é racional desde que o que está escrito no Novo Testamento, "cozinhado" trezentos anos após Jesus e de acordo com as conveniências dos cristãos, seja verdade. Assim sim, o padre tem razão. Mas, hélas, só assim. Alguns dos ateus mais empedernidos acreditam que Jesus nunca existiu, note-se. Pessoalmente pagaria bem caro por um bilhete de ida e volta para a Judeia na Páscoa do ano 33 (?), para poder saber o que realmente se passou! E acrescento, se confirmasse a história bíblica, voltaria como cristão.           Simão Liberal > Assinante do Local: Que Jesus de Nazaré existiu, a opinião académica (mesmo a não cristã) não podia ser mais clara: sim, existiu. Esta concordância avassaladora entre os académicos até pode estar escondida do público em geral devido aos polemistas pop que muito gostam de se promover, mas é uma concordância real e amplamente substantivada. Nos departamentos universitários relevantes, a questão está tão encerrada quanto é possível estar quando o tema é a historiografia do mundo antigo. Sobre a alegação de que o Novo Testamento foi escrito séculos depois dos factos que diz relatar, também é falso. Está hoje bem estabelecido, mesmo entre os académicos não cristãos, que os vários livros do NT foram escritos num período não superior a um século após a morte (e Ressurreição, acrescento eu) de Jesus. Mais debatido é se o NT foi alterado sucessivamente ao longo desse primeiro século, deixando-nos no escuro relativamente ao que terá acontecido, ou se pelo contrário narra fielmente os acontecimentos com base em prova testemunhal directa. O que cada um que se queira dedicar a investigar este assunto em profundidade poderá verificar com os seus próprios olhos é que o que os académicos partidários da primeira solução fazem, invariavelmente e sem exceção, é partir do pressuposto de que os milagres não existem (ou pelo menos de que não podemos confiar num relato de milagre) e que, consequentemente, todos os relatos de milagres do NT têm de ser cortados. E depois aí cada um tenta adivinhar o que lá estaria escrito no princípio, antes de os cristãos começarem a "inventar" os milagres todos. Pena só duas coisas: esta tese não é sustentada pelos documentos históricos; e constitui uma gigantesca falácia de petição de princípio (assumir como premissa a conclusão que se pretende defender). A Fé Cristã sempre apostou as fichas todas num facto histórico: a Ressurreição. Esta sempre foi (logo desde o início) o pilar central da Fé para todos os cristãos, daí que até o próprio São Paulo os tivesse de alertar contra as influências pagãs que negavam que o corpo fosse um constituinte intrínseco da pessoa humana, ideias de resto muito comuns no Império Romano de então, e como tal contrariavam a Ressurreição (1 Cor 15:14). O ponto aqui é que os cristãos sabiam que não tinham nada a ganhar em inventar uma suposta ressurreição, pois isso seria para eles estar a admitir que a Fé era falsa, e portanto assim também nunca se teriam convertido a ela em primeiro lugar (visto que também não teriam nada a ganhar com isso, certamente pelo menos nos primeiros séculos). Leituras aconselhadas: The Case for Jesus, de Brant Pitre (nível introdutório); Jesus and the Eyewitnesses, de Richard Bauckham (nível académico).         josé maria: Sondagens meramente canónicas porque as apócrifas, segundo a Igreja Católica, já não valem, não interessam, nem ao menino Jesus...          Simão > josé maria: As sondagens apócrifas foram logo unanimemente denunciadas na sua época por terem sido encomendadas. Ao contrário das canónicas.       Elvis Dwayne > josé maria: De sondagens (e como manipulá-las) percebe bem o teu Partido.           josé maria > Elvis Dwayne: As sondagens não canónicas foram apenas aquelas que não se encaixavam na narrativa interesseira da Igreja Católica.              João Paulo Reis: O testemunho do Pe. Gonçalo invocando os Evangelhos são como um regar da nossa alma em tempos de grande prevalência de uma contracultura woke que tudo nega e relativiza. É de capital importância que existam e se mantenham na esfera pública vozes como a do articulista. Obrigado!              Ahmed Gany: Somos todos (na condição) "filhos de Deus" e "filhos do Pai" e Jesus não é excepção:  -Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados “Filhos de Deus". - Eu porém vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem para que sejais “filhos do Pai” que está nos Céus”. Mateus 5.            Antes pelo contrário > Ahmed Gany: Em resumo: os "filhos do Pai" devem amar e orar pelos "filhos da Mãe"... Tanta patetice. E já agora, quem venceu mesmo as eleições há 2 mil anos foi Barrabás... e não foi uma sondagem.           Ahmed Gany > Antes pelo contrário: Segue o teu desejo e deixa os "patetas" em paz.             Simão >  Ahmed Gany: Mas Jesus é Filho Unigénito do Pai (isto é, o único que é gerado). Os demais filhos de Deus são filhos adotados; esta adoção está disponível para todos, mas é necessário que cada um a aceite.             Elvis Dwayne > Simão: Na verdade (e segundo o conceito da Santíssima Trindade), Jesus (mais do que filho) é, em conjunto com o Espírito Santo, parte do todo formado pelo Pai. Quanto ao sermos "filhos adotados", não sei se é a melhor expressão. Segundo o Génesis, foi Deus que nos deu vida, que nos criou. O uso da expressão "filhos adotados", sugere (erradamente) que somos originados de algum outro deus, ou que surgimos de forma espontânea e entretanto fomos adotados (ou como disse, foi nos concedida essa opção) o que é um pouco bizarro. Cumprimentos.           Simão >  Elvis Dwayne: Num sentido filosoficamente estrito, Deus é Pai de toda a criação na medida em que toda ela tem origem em Si. Mas há outro sentido dessa palavra. No sentido teológico que é relevante para a Fé Cristã, Deus é Pai só daqueles que querem ser Seus filhos. Sobre a Santíssima Trindade é que considero mesmo necessário ser-se um pouco mais preciso com os termos utilizados, uma vez que Deus é indivisível e Nele não existem partes: Deus é uma Trindade de Pessoas que partilham a mesma substância. Cumprimentos.

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