sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Destemor


O de Maria João Avillez, nestas suas Impressões Digitais, bem de um espírito destemido e sensível. Penetrante, embora não aquente isso, nem arrefente, acomodados que somos. Ou deslumbrados...

Impressões digitais /premium

O chefe do governo não entende o que as Forças Armadas simbolizam, o que lhes deve dar, o que lhes deve pedir. Ignora o meio militar, não lhe interessa a sua idiossincrasia. Nem o respeito que merece.

MARIA JOÃO AVILLEZ

OBSERVADOR, 07 out 2021

1Deverá haver poucas impressões digitais tão fortes quanto a que António Costa deixou em Lisboa onde foi omnipotente autarca. Conheceu, mandou, pôs, dispôs: escolhendo, preferindo, elegendo, protegendo. Decidindo quem dentro do seu agregado partidário merecia atenção, projectos, aprovação, mimo.

Se inegavelmente cuidou bem da cidade, só havia nela um dono e senhor, ele mesmo. E na aliança de aço que fizera com Manuel Salgado sabia-se quem mandava na aliança.

Costa ficou uns anos, teceu uma rede de escolhidos e preferidos, saiu, deixou a rede, entrou Medina. Um discípulo. O discípulo amava – e seguia – o mestre, este punha nele todas as suas complacências. Começou por ser aliás uma sucessão, só depois uma eleição. Mas num e noutro caso e apesar do trabalho feito – e sim, também houve trabalho feito, conheço a lista – os consulados de Medina consentiram na percepção de que a impressão digital costista se mantinha: na herança de ideias, projectos, genteManuel Salgado por exemplo – mas sobretudo num injustificado triunfalismo, marca da “casa”: como se o PS permanentemente se auto-ungisse de uma legitimidade sobrenatural que tudo lhe permitia e de tudo o dispensava. Uma cultura política de sobranceria “natural” enfeitada pelos irremovíveis risos e sorrisos de António Costa. A vida era bela.

Que há nesta história de particularmente “contável”? Há isto: dada a presença, e influência do líder do PS em Lisboa, a derrota autárquica de 26 de Setembro pertence-lhe em grande parte e eis o que não é de somenos. Enquanto que no Porto, em Sintra e noutros lugares foi o PS como um todo que perdeu, em Lisboa foi pessoal e politicamente António Costa: uma parte do eleitorado lisboeta quis que ele saísse daquela cena – ao menos daquela – por interposto Medina. Não estou a eximir o ainda presidente de responsabilidades, longe disso, basta pensar na história da entrega de dados de activistas políticas pela Câmara de Lisboa às respectivas embaixadas – imperdoável história – para perceber a parte de leão que ela teve neste fracasso eleitoral. E houve mais: o falhanço da habitação – ficou aquém de todas as promessas –, a despropositada obsessão com as ciclovias numa cidade que as estranha, as deploráveis escolhas políticas como a da presidente da freguesia de Arroios, agora derrotada. O meu ponto não é porém hoje esse mas a persistente cultura de poder socialista promovida há muito pelo incansável mentor António Costa: o tom altivo, a exibição da arrogância na certeza da vitória antecipada, o puro desprezo usado contra os adversários, a “démarche” de proprietários em vez de servidores políticos. Pior: todos – autarcas, ministros, deputados – bebem extraordinariamente deste mesmo caldo, rendidos a este tique socrático de má memória e mau agoiro.

Fernando Medina, o dilecto de Costa para lhe suceder no PS, também se rendeu, num mimetismo que era dispensável e fez dele a segunda vítima (a primeira foi o próprio António Costa). É cedo para dizer se Medina hipotecou o seu futuro e não sou eu que o direi, muito pelo contrário. Mas… e já agora: e aquele vitorioso discurso de António Costa na madrugada eleitoral quando já sabia – mas nós ainda não – que o PS perdera Lisboa? Ignorando Fernando Medina e “encafuando” a sua derrota num saco de vitórias (secundárias) e num país “libertado” por obra e graça do PS? Como classificar politicamente aqueles longos minutos?

Uma impressão digital não se esbate. Fica. A do líder do PS que hoje me trouxe, não: esmorece e fenece. Mais depressa do que se imaginou, ou se jurou, ela começa agora a esfumar-se no ar da cidade. E grão a grão, cidade a cidade… É que um belo dia, a consciência da insuportabilidade de certas coisas fará um caminho na razão inversa desta impressão digital: uma cresce, a outra, decresce. Mesmo tendo ganho estas eleições autárquicas.

2Basta um olhar de relance: o governo está tão desacreditado – desautorizações, divisões internas, inoperância, exaustão – que procurar substitutos irá carecer de garantia no sucesso da empreitada. E agora, para além dos que a decência ou a inabilidade já deviam há muito ter excluído, há um novo candidato – Gomes Cravinho – a entrar no carrocel de saída.

Há muito que não se testemunhava questão institucional tão grave como a que opôs o poder político às forças armadas, obrigando um estupefacto Presidente da República a cortar cerce o inexplicável gesto do Governo.

Não se pode fazer de conta que se tratou de uma divergência do foro interno militar, uma ocorrência interpares e apenas a eles militarmente circunscrita. Nem resumi-la a uma “trapalhada”. Não foi: o primeiro-ministro (o mais antimilitarista que a nossa democracia conheceu) e o ministro da Defesa apropriaram-se de uma competência constitucional – a nomeação de altos cargos militares – do Chefe de Estado. Não se compreende muito bem como foi possível e porque foi possível, mas o que ambos produziram foi uma questão de Estado. O mal-estar que deixa não é leve, não será passageiro, envenenará futuras nomeações. As relações Forças Armadas/Governo passarão a estar sob suspeita. Uma questão de Estado, sim.

Basta aliás atentar na escolha de Azeredo Lopes e depois de Cravinho para a Defesa para entender uma espécie de menorização das Forças Armadas na hierarquia das prioridades ou atenções de António Costa. O chefe do Governo – que nunca se deu bem com militares – parece nunca ter entendido o que as FA simbolizam, o respeito que reclamam, o que lhes deve dar, o que lhes deve pedir.

Pior impressão digital deixada agora pelo chefe do governo e pelo seu ministro da Defesa no meio militar – e fora dele – deve ser difícil.

3Acabo com uma belíssima impressão digital: a que Mário Pereira, director do Palácio Nacional de Mafra/Biblioteca deixa naquilo de que amorosa e incansavelmente cuidou, na hora em que se despede ao fim de décadas de muito bom e leal serviço público. Há que honrar – e aplaudir – os melhores servidores do Estado. E reconhecer o modo como levaram a cabo o seu trabalho, quase sempre contra ventos e marés – do destratamento do Património por quem nele tem as mais altas responsabilidades, à permanente falta de meios passando pela saga da burocracia e outras sagas. Mário Pereira pertence a uma geração que foi um escol no nosso Património e no seu cuidar. Partirá, presumo eu, com alguma nostalgia pelo que poderia ter sido de (tão) melhor e não foi. Mas, suprema recompensa, partirá de consciência tranquila. Por mim agradeço-lhe: tal como o fazia para com os meus botões de cada vez que visitava o Palácio ou que, sentada na “sua” Basílica, ouvia com deleite os seis órgãos de Mafra – conjunto único no mundo — “conversarem” musicalmente uns com os outros, iniciativa que muito se lhe deve.

Entender assim o serviço público será muito parecido com um dom.

ANTÓNIO COSTA  POLÍTICA  GOVERNO  CÂMARA MUNICIPAL LISBOA  LISBOA  PAÍS  AUTÁRQUICAS 2021  ELEIÇÕES

COMENTÁRIOS:

André Ondine: Excelente texto. Em relação a Medina, o Habilidoso já o chutou para canto. Vá lá, ao menos poupou Medina à humilhação habitual daqueles que o Habilidoso afasta. É uma lição para Medina. Espero que, no discurso de admissão de derrota e no do 5 de Outubro, tenha mostrado a sua verdadeira natureza. Foram discursos dignos, sensatos e sérios, que contrastam brutalmente com o espírito arrogante e altivo que mostrou ao longo destes anos, talvez imbuído do espírito habilidoso que molda caracteres e deturpa feitios. O Habilidoso é cínico, arrogante, cínico outra vez e altivo...e parece que todos os que o rodeiam se enchem dessas mesmas características. Mesmo que não seja essa a sua natureza. Até a jovem adolescente Mariana Vieira da Silva já tem ataques de altivez. Enfim, Medina mostrou uma postura digna na hora da saída. E isso é um sinal de esperança para todos os que sofrem do Habilidosismo. Em relação à trapalhada do CEMA, do Ministro Cravinho e, sempre, do Habilidoso, parece-me que esta foi uma trapalhada propositada. O Habilidoso queria usar, e abusar, do Vice-Almirante Gouveia e Melo como trunfo político. Era preciso capitalizar na popularidade do Vice-Almirante e torná-lo um trunfo do socialismo trendy, comandado pelo Habilidoso. E esta foi a forma. Despede-se o CEMA, que ainda-por cima tinha a desfaçatez de nem sempre concordar com o governo e santificava-se o Vice-Almirante com um tacho que este, provavelmente, nem queria. Pelo menos desta forma. Marcelo foi, mais uma vez, um instrumento ao serviço do gangue e tentou ter voz grossa. Mas afinou logo, à noite, quando o Habilidoso e a marionete Cravinho foram a Belém lembrar a Marcelo as fotos comprometedoras que têm dele e que o fazem andar na linha...Lá veio o comunicado a dizer que estava tudo esclarecido. Tudo esclarecido? Para quem? Para aqueles três? Será que já se sentem tão donos do país que nem julgam que estão ao serviço do país e não deles próprios? Que quem tem que ficar esclarecido e convencido que esta democracia ainda não está totalmente destruída são os portugueses e não eles próprios? Maldita "elite" rasteira. Nunca uma "elite" foi composta de gente tão fraca.                 Maria Cordes: Estupendo, neste luscofusco de uma democracia, em que só clubistas e clientelas cantam hossanas, e que obrigam, filhos e netos a sair do país, sem que se faça oposição ao estado das coisas, mergulhados numa paranóica propaganda, a vitória de Moedas, alicerçada na humildade e desejo do bem comum, foi um alegre sinal de esperança. A sua crónica contém as razões dessa vitória.         Maria Nunes: MJA, obrigada por mais um excelente artigo.           Nuno W: Muito bem MJA. Acho que o reconhecimento que faz de um servidor do Estado que privilegiou o interesse público, como é o caso de Mário Pereira em Mafra, constitui um contraste muito feliz com o nepotismo, o clientelismo e a demagogia que caracteriza a governação de Portugal e o absolutismo, a arrogância e o desprezo pelos que pensam de modo diferente, evidenciado pelo seu PM.           António Lamas: Obrigado MJA. Um grande artigo a retratar muito bem um vendedor de feira que para nossa desgraça (des)governa o nosso país. Até o Marcelo já começa a ficar farto dele. Mais vale tarde do que nunca.

 

Nenhum comentário: