O de Maria João Avillez, nestas suas Impressões Digitais, bem de um espírito destemido e sensível. Penetrante,
embora não aquente isso, nem arrefente, acomodados que somos. Ou deslumbrados...
Impressões digitais /premium
O chefe do governo não entende o que
as Forças Armadas simbolizam, o que lhes deve dar, o que lhes deve pedir.
Ignora o meio militar, não lhe interessa a sua idiossincrasia. Nem o respeito
que merece.
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 07 out
2021
1Deverá haver poucas impressões
digitais tão fortes quanto a que António Costa deixou em Lisboa onde foi
omnipotente autarca. Conheceu, mandou, pôs, dispôs: escolhendo, preferindo,
elegendo, protegendo. Decidindo quem dentro do seu agregado partidário merecia
atenção, projectos, aprovação, mimo.
Se inegavelmente cuidou bem da cidade,
só havia nela um dono e senhor, ele mesmo. E na aliança de aço que fizera com
Manuel Salgado sabia-se quem mandava na aliança.
Costa
ficou uns anos, teceu uma rede de escolhidos e preferidos, saiu, deixou a rede, entrou Medina. Um
discípulo. O discípulo
amava – e seguia – o mestre, este punha nele todas as suas complacências.
Começou por ser aliás uma sucessão, só depois uma eleição. Mas num e noutro caso e apesar do trabalho feito – e
sim, também houve trabalho feito, conheço a lista – os consulados de Medina consentiram na percepção de que a impressão digital
costista se mantinha: na herança
de ideias, projectos, gente
– Manuel
Salgado por exemplo –
mas sobretudo num injustificado triunfalismo, marca
da “casa”: como se o
PS permanentemente se auto-ungisse de uma legitimidade sobrenatural que tudo
lhe permitia e de tudo o dispensava.
Uma cultura política de sobranceria “natural” enfeitada
pelos irremovíveis risos e sorrisos de António Costa. A vida era bela.
Que há nesta história de particularmente
“contável”? Há isto: dada a presença, e
influência do líder do PS em Lisboa, a derrota autárquica de 26 de Setembro
pertence-lhe em grande parte e eis o que não é de somenos. Enquanto que
no Porto, em Sintra e noutros lugares foi o PS como um todo que perdeu, em Lisboa foi
pessoal e politicamente António Costa: uma
parte do eleitorado lisboeta quis que ele saísse daquela cena – ao menos
daquela – por interposto Medina. Não estou a eximir o ainda presidente de
responsabilidades, longe disso, basta pensar na história da entrega de dados
de activistas políticas pela Câmara de Lisboa às respectivas embaixadas –
imperdoável história – para perceber a parte de leão que ela teve neste
fracasso eleitoral. E houve mais: o falhanço da habitação – ficou aquém de todas
as promessas –, a
despropositada obsessão com as ciclovias numa cidade que as estranha, as
deploráveis escolhas políticas como a da presidente da freguesia de Arroios,
agora derrotada. O meu ponto
não é porém hoje esse mas a
persistente cultura de poder socialista promovida há muito pelo incansável
mentor António Costa: o tom
altivo, a exibição da arrogância na certeza da vitória antecipada, o puro
desprezo usado contra os adversários, a “démarche” de proprietários em vez de
servidores políticos. Pior: todos – autarcas, ministros, deputados – bebem
extraordinariamente deste mesmo caldo, rendidos a este tique socrático de má
memória e mau agoiro.
Fernando
Medina, o dilecto de Costa para lhe
suceder no PS, também se rendeu, num mimetismo que era dispensável e fez
dele a segunda vítima (a primeira foi o próprio António Costa). É
cedo para dizer se Medina hipotecou o seu futuro e não sou eu que o direi,
muito pelo contrário. Mas… e já agora: e aquele vitorioso discurso de António
Costa na madrugada eleitoral quando já sabia – mas nós ainda não – que o PS
perdera Lisboa? Ignorando Fernando Medina e “encafuando” a sua derrota num saco
de vitórias (secundárias) e num país “libertado” por obra e graça do PS? Como
classificar politicamente aqueles longos minutos?
Uma
impressão digital não se esbate. Fica. A do líder do PS que hoje me trouxe,
não: esmorece e fenece. Mais
depressa do que se imaginou, ou se jurou, ela começa agora a esfumar-se no ar
da cidade. E grão a grão, cidade a cidade… É que um belo dia, a consciência da
insuportabilidade de certas coisas fará um caminho na razão inversa desta
impressão digital: uma cresce, a outra, decresce. Mesmo tendo ganho estas
eleições autárquicas.
2Basta
um olhar de relance: o governo está tão desacreditado – desautorizações,
divisões internas, inoperância, exaustão – que procurar substitutos irá carecer
de garantia no sucesso da empreitada. E agora, para além dos que a decência ou
a inabilidade já deviam há muito ter excluído, há um novo candidato – Gomes Cravinho
– a entrar no carrocel de saída.
Há
muito que não se testemunhava questão institucional tão grave como a que opôs o
poder político às forças armadas, obrigando um estupefacto Presidente da
República a cortar cerce o inexplicável gesto do Governo.
Não
se pode fazer de conta que se tratou de uma divergência do foro interno
militar, uma ocorrência interpares e apenas a eles militarmente circunscrita.
Nem resumi-la a uma “trapalhada”. Não foi: o primeiro-ministro (o mais antimilitarista
que a nossa democracia conheceu) e o ministro da Defesa apropriaram-se de uma
competência constitucional – a nomeação de altos cargos militares – do Chefe de
Estado. Não se
compreende muito bem como foi possível e porque foi possível, mas o que ambos
produziram foi uma questão de
Estado. O mal-estar que deixa não é leve, não será passageiro,
envenenará futuras nomeações. As relações Forças Armadas/Governo passarão a
estar sob suspeita. Uma questão de Estado, sim.
Basta
aliás atentar na escolha de Azeredo Lopes e depois de Cravinho para a Defesa
para entender uma espécie de menorização das Forças Armadas na hierarquia das
prioridades ou atenções de António Costa. O chefe
do Governo – que nunca se deu bem com militares – parece nunca ter entendido o
que as FA simbolizam, o respeito que reclamam, o que lhes deve dar, o que lhes
deve pedir.
Pior
impressão digital deixada agora pelo chefe do governo e pelo seu ministro da
Defesa no meio militar – e fora dele – deve ser difícil.
3Acabo
com uma belíssima impressão digital: a que Mário Pereira, director do Palácio Nacional de Mafra/Biblioteca deixa
naquilo de que amorosa e incansavelmente cuidou, na hora em que se despede ao
fim de décadas de muito bom e leal serviço público. Há que honrar – e aplaudir – os melhores servidores
do Estado. E reconhecer o modo como levaram a cabo o seu trabalho, quase sempre
contra ventos e marés – do destratamento do Património por quem nele tem as
mais altas responsabilidades, à permanente falta de meios passando pela saga da
burocracia e outras sagas. Mário
Pereira pertence a
uma geração que foi um escol no nosso Património e no seu cuidar. Partirá, presumo eu, com alguma nostalgia pelo que
poderia ter sido de (tão) melhor e não foi. Mas, suprema recompensa, partirá de
consciência tranquila. Por mim agradeço-lhe: tal como o fazia para com os meus
botões de cada vez que visitava o Palácio ou que, sentada na “sua” Basílica,
ouvia com deleite os seis órgãos de Mafra – conjunto único no mundo —
“conversarem” musicalmente uns com os outros, iniciativa que muito se lhe deve.
Entender
assim o serviço público será muito parecido com um dom.
ANTÓNIO COSTA POLÍTICA GOVERNO CÂMARA
MUNICIPAL LISBOA LISBOA PAÍS AUTÁRQUICAS
2021 ELEIÇÕES
COMENTÁRIOS:
André Ondine: Excelente texto. Em relação a Medina, o Habilidoso já o chutou para canto.
Vá lá, ao menos poupou Medina
à humilhação habitual daqueles que o Habilidoso afasta. É uma lição para
Medina. Espero que, no discurso de admissão de derrota e no do 5 de Outubro,
tenha mostrado a sua verdadeira natureza. Foram discursos dignos, sensatos e
sérios, que contrastam brutalmente com o espírito arrogante e altivo que
mostrou ao longo destes anos, talvez imbuído do espírito habilidoso que molda
caracteres e deturpa feitios. O Habilidoso é cínico, arrogante, cínico outra
vez e altivo...e parece que todos os que o rodeiam se enchem dessas mesmas
características. Mesmo que não seja essa a sua natureza. Até a jovem
adolescente Mariana Vieira da Silva já tem ataques de altivez. Enfim, Medina
mostrou uma postura digna na hora da saída. E isso é um sinal de esperança para
todos os que sofrem do Habilidosismo. Em relação à trapalhada do CEMA, do
Ministro Cravinho e, sempre, do Habilidoso, parece-me que esta foi uma
trapalhada propositada. O Habilidoso queria usar, e abusar, do Vice-Almirante
Gouveia e Melo como trunfo político. Era preciso capitalizar na popularidade do
Vice-Almirante e torná-lo um trunfo do socialismo trendy, comandado pelo
Habilidoso. E esta foi a forma. Despede-se o CEMA, que ainda-por cima tinha a
desfaçatez de nem sempre concordar com o governo e santificava-se o
Vice-Almirante com um tacho que este, provavelmente, nem queria. Pelo menos
desta forma. Marcelo foi, mais uma vez, um instrumento ao serviço do gangue e
tentou ter voz grossa. Mas afinou logo, à noite, quando o Habilidoso e a
marionete Cravinho foram a Belém lembrar a Marcelo as fotos comprometedoras que
têm dele e que o fazem andar na linha...Lá veio o comunicado a dizer que estava
tudo esclarecido. Tudo esclarecido? Para quem? Para aqueles três? Será que já
se sentem tão donos do país que nem julgam que estão ao serviço do país e não
deles próprios? Que quem tem que ficar esclarecido e convencido que esta
democracia ainda não está totalmente destruída são os portugueses e não eles
próprios? Maldita "elite" rasteira. Nunca uma "elite" foi
composta de gente tão fraca. Maria Cordes: Estupendo, neste luscofusco de uma democracia, em que
só clubistas e clientelas cantam hossanas, e que obrigam, filhos e netos a sair
do país, sem que se faça oposição ao estado das coisas, mergulhados numa
paranóica propaganda, a vitória de Moedas, alicerçada na humildade e desejo do
bem comum, foi um alegre sinal de esperança. A sua crónica contém as razões
dessa vitória. Maria Nunes: MJA, obrigada por mais um excelente artigo. Nuno W: Muito bem MJA. Acho que o reconhecimento que faz de um
servidor do Estado que privilegiou o interesse público, como é o caso de Mário
Pereira em Mafra, constitui um contraste muito feliz com o nepotismo, o
clientelismo e a demagogia que caracteriza a governação de Portugal e o
absolutismo, a arrogância e o desprezo pelos que pensam de modo diferente,
evidenciado pelo seu PM.
António Lamas: Obrigado MJA. Um
grande artigo a retratar muito bem um vendedor de feira que para nossa desgraça
(des)governa o nosso país. Até o Marcelo já começa a ficar farto dele. Mais
vale tarde do que nunca.
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