“Se um diz mata, outro diz esfola”. E estamos fritos,
sem esperança de reverter, nosso fado.
I - Lapsos
A peça teatral protagonizada há sete
anos pelas esquerdas será retirada do cartaz por falta de protagonistas
interessados em assegurar a sua continuidade.
OBSERVADOR, 28
out 2021
1Parece
que me enganei. Errei por escrito e errei no écran levando com isso alguns a pensarem
– como eu – que nunca o PCP avançaria resoluto para um não ao OE; que o
BE ficaria de fora para alívio do próprio António que não o estima por-aí-além;
que o governo continuaria a sua falsamente bem-sucedida vida, mesmo que cada
vez mais à custa do empobrecimento do país e basta pensar no que entretanto já
cedera à esquerda radical em sete anos. O carrossel das cedências como
instrumento de manutenção do poder, foi aliás este ano oficializada pelo
próprio chefe do governo com a confissão de ser este o orçamento “mais à
esquerda de sempre”. O pregão tão
insistentemente cantado pelo governo não deixa de ser sintomático da herança
que o socialismo vai deixar ao país: retenha-se apenas o penoso espectáculo das últimas reivindicações das esquerdas radicais, oportunisticamente fora da arquitectura e do contexto
do próprio orçamento para perceber a dimensão da herança: fortes abanões numa fraca economia, esgarçando ainda
mais o tecido empresarial, atrofiando a criação de riqueza, vetando o
indispensável crescimento económico: qualquer dia, aqui d’el-rei. Estamos
lembrados.
Ao
pé disto governar por duodécimos parecer-se-ia com uma medida de muito bom
senso se o Presidente não se tivesse precipitado com a palavra “eleições” e
calendarizadas ainda para mais… Não era obrigatório. Eleições à pressa e a
pressão? Tudo no actual contexto dispensaria uma coisa e outra.
2A extrema-esquerda desistiu de Costa. Que é outra forma de dizer que a peça teatral
protagonizada há sete anos pelo PS, PCP e BE será retirada do cartaz por falta
de protagonistas interessados em assegurar a sua continuidade. O PC vinha até já aviado de casa com o seu sonoro
“niet” ao OE) e o BE foi apanhado em contra mão. O futuro não lhes sorri.
Apesar de tudo espantei-me: habituada às coreografias que no passado
enfeitavam esta espécie de comédia de costumes que se viveu nos últimos anos em
Portugal, caí na distração: se tivesse “visto” melhor o resultado das
autárquicas teria obrigação de ter percebido a mudança de ciclo que anunciavam.
E consequentemente, as (inevitáveis) alterações nas estratégias partidárias que
se seguiriam. Tão grandes que um Partido Comunista, banindo credos,
convicções e ideologia, nos mostrou sempre votar sem remorso e
disciplinadamente em quatro orçamentos do ex-presidente do Eurogrupo, para
subitamente se mostrar agora expedito e convicto no chumbo deste: “o mais à
esquerda” que Portugal teve nas últimas décadas. E de facto: os patrões
sentiram-se tão a mais que se levantaram da sala da concertação social e saíram
porta fora. Fizeram bem. Horas depois a palavra “lapso” remetida pelo chefe do
governo ao patronato, ficou a balançar nos écrans dessa noite: lapso?
Assistiremos
a um passa culpas assassino mas não é difícil escolher um responsável. Só há um, chama-se António Costa, e
inventou a geringonça e a sua estratégia: se uma e outra poderiam ter alguma
razão de ser na primeira legislatura — para alcançar e manter o poder, Costa só
encontraria eco e guarida à esquerda — na segunda, como dizia o outro, não havia
necessidade. O governo
poderia — deveria – ter ganho distância relativamente à extrema-esquerda
exibindo uma equidistância que lhe teria permitido ampliar politicamente a sua
capacidade de negociação. O Primeiro-Ministro
preferiu — e fez — o contrário. Triturou o
PSD, tratou mal a direita, humilhou metade do país. Como há males que vêm por
bem, o centro e a direita agradecerão. Nada absolutamente lhes pesa neste
desastre, nenhuma responsabilidade lhe poderá ser assacada.
Nisto
tudo lembro-me de António
Guterres: foi mais
inteligente e mais rápido. No próprio dia das eleições autárquicas de 2001, era
ele primeiro-ministro, percebeu de imediato que tínhamos caído num pântano.
Abalou nesse domingo. Costa,
conhecido como um político tão habilidoso, parece ter percebido menos. Deve ter
sido outro lapso.
3Acredito
que a muitos possa não parecer mas em certo sentido Portugal está
mais pobre, mais indefeso, menos estruturado, mais desigual do que em 2011. Olhe-se para
os algarismos que certificam a dimensão astronómica da nossa dívida; para a
cruel desigualdade económica e social entre portugueses, comprovada por números
fiáveis; para a juventude, manietada por salários que lhe vetam qualquer futuro
onde caiba um bocadinho de ambição; para as trapalhadas da Justiça; a vergonha
da Educação; o angustiante estado da Saúde; para o asfixiante cerco do fisco;
para a TAP, o estado dos comboios e agora o modo como se lida com os
combustíveis. E já agora para a ficção dos fundos europeus — à qual o governo
chama deprimentemente bazuka — que não vai chegar ao bolso dos portugueses
porque não é a eles nem a ”isso” que se destina.
Tratar do país vai ser mais complexo,
mais duro e mais ingrato do que em 2011 e não estou obviamente com isto a sub-
estimar o ciclópico trabalho de Passos Coelho para nos tirar do fundo de um
poço ( tirou e ganhou a seguir o prémio das urnas) mas a constatar uma
evidência: dez anos depois o país está mais doente mesmo que não pareça ou que
a retórica socialista — conforme se ouviu no parlamento — continue
incansavelmente ilusória.
4Repito:
à hora a que escrevo nada sei sobre o “como” e o “quando” das eleições. Mas
há uma coisa que sei: se forem um galope, o país é que sofre e nada ganha. À
pressa, as eleições confundirão mais do que clarificarão. Perder-se-á tempo,
oportunidades e dinheiro.
Não lhe parece, sr. Presidente que seria
sensato evitar um lapso deste tamanho?
II -Os dois erros de Marcelo (que Costa
agradece)
Marcelo errou ao agir como se valesse
tudo para aprovar o OE 2022. E errou quando apontou a eleições em Janeiro (com
a direita em renovação). Ambos os erros servem as intenções de António Costa.
ALEXANDRE HOMEM
CRISTO
OBSERVADOR, 28
out 2021
O Presidente da República envolveu-se
directamente nas negociações com vista à aprovação do Orçamento de Estado para
2022 (OE 2022). Tudo
normal? Nem por isso. Por um lado, ouvimos os habituais apelos à estabilidade
política, que marcam a sua Presidência desde o primeiro mandato. Mas, por outro
lado, Marcelo passou o risco. Fê-lo quando usou como argumento para a aprovação
do OE 2022 um eventual surgimento de nova pandemia — o que será
isto, senão a manipulação pelo medo? Passou o
risco quando dramatizou a situação e equivaleu a não-aprovação do OE 2022 a uma
crise política — ora,
refira-se que em vários países europeus há orçamentos que não passam à
primeira e governos em gestão durante meses. E, por fim, passou o
risco quando estabeleceu contactos directos com deputados, para os convencer a
virar o seu sentido de voto e até a quebrar disciplinas partidárias (com o
PSD-Madeira) — o que é verdadeiramente inconcebível.
A tradução é simples: Marcelo pisou o
risco porque não aceita limites e porque se deixou levar pelo erro de percepção
de que ter um Orçamento péssimo aprovado seria melhor do que ter um Orçamento
rejeitado. Talvez o tenha feito para, na opinião pública, legitimar a sua
posição e tornar claro que exerceu todos os esforços para evitar um cenário de
ruptura. Ou talvez o tenha feito porque, simplesmente, acreditou mesmo nesse
erro de percepção. Na prática, faz pouca diferença: o Presidente da
República colocou na cabeça dos portugueses que valia tudo para aprovar o OE
2022 — e fez mal.
As
medidas que o PS e os parceiros da geringonça negociaram em público converteram
o OE 2022 numa manta de retalhos. Pior: várias das exigências de BE e PCP, como
as da legislação laboral, constituem retrocessos graves. Como tal, o ponto tornou-se este: o amontoar de cedências
do PS à sua esquerda converteu a aprovação deste OE 2022 na pior solução
possível para o país. Não haja qualquer dúvida: a ideia de que a aprovação do
OE 2022 e que a estabilidade política são bens em si mesmos, e que por isso
justificam a adesão a este vale-tudo, é completamente errada. Nada é pior do
que ter um OE 2022 que faz o país recuar, em vez de avançar.
O segundo erro de Marcelo foi informar
que, perante a não-aprovação do OE 2022, iniciaria muito rapidamente
diligências para dissolver o parlamento e convocar eleições legislativas, que
nesses termos se poderiam realizar logo em Janeiro. Esta pressa é
contraproducente. Desde logo,
porque saltou etapas — não ouviu partidos nem o Conselho de Estado, decidiu
antes de os factos estarem consumados.
Mais importante ainda: até para preservar a estabilidade política e garantir o
regular funcionamento das instituições, o Presidente da República deve ter
em conta a situação dos partidos da oposição — e estes estão em processos de
eleições internas. Goste-se ou não, dê jeito ou não, as coisas são mesmo assim:
sem partidos, não há democracia. Não há qualquer vantagem para o país em
ir para eleições legislativas em circunstâncias temporais que impossibilitam
PSD e CDS de apresentar ao eleitorado as suas equipas (haja ou não mudança de
lideranças), explicar as suas propostas e fazer campanha nas ruas. Com
eleições em Janeiro, tal seria impossível — haveria
apenas tempo para as eleições internas. A
razoabilidade impõe que as eleições legislativas só possam realizar-se a partir
de meio de Fevereiro.
Marcelo
errou ao agir como se valesse tudo para a aprovação do OE 2022. E errou quando
apontou a eleições em Janeiro (quando a direita está em renovação). O que têm
estes erros em comum? Servem as intenções de António Costa — que aprecia a
dramatização à volta da aprovação do OE 2022 e beneficiaria da impreparação da
direita num calendário eleitoral apertado. É tudo uma grande coincidência?
Talvez haja quem acredite que sim. Mas, na política, o que parece é.
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