quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Textos complementares


“Se um diz mata, outro diz esfola”. E estamos fritos, sem esperança de reverter, nosso fado.

I - Lapsos

A peça teatral protagonizada há sete anos pelas esquerdas será retirada do cartaz por falta de protagonistas interessados em assegurar a sua continuidade.

MARIA JOÃO AVILLEZ

OBSERVADOR, 28 out 2021

1Parece que me enganei. Errei por escrito e errei no écran levando com isso alguns a pensarem – como eu – que nunca o PCP avançaria resoluto para um não ao OE; que o BE ficaria de fora para alívio do próprio António que não o estima por-aí-além; que o governo continuaria a sua falsamente bem-sucedida vida, mesmo que cada vez mais à custa do empobrecimento do país e basta pensar no que entretanto já cedera à esquerda radical em sete anos. O carrossel das cedências como instrumento de manutenção do poder, foi aliás este ano oficializada pelo próprio chefe do governo com a confissão de ser este o orçamento “mais à esquerda de sempre”. O pregão tão insistentemente cantado pelo governo não deixa de ser sintomático da herança que o socialismo vai deixar ao país: retenha-se apenas o penoso espectáculo das últimas reivindicações das esquerdas radicais, oportunisticamente fora da arquitectura e do contexto do próprio orçamento para perceber a dimensão da herança: fortes abanões numa fraca economia, esgarçando ainda mais o tecido empresarial, atrofiando a criação de riqueza, vetando o indispensável crescimento económico: qualquer dia, aqui d’el-rei. Estamos lembrados.

Ao pé disto governar por duodécimos parecer-se-ia com uma medida de muito bom senso se o Presidente não se tivesse precipitado com a palavra “eleições” e calendarizadas ainda para mais… Não era obrigatório. Eleições à pressa e a pressão? Tudo no actual contexto dispensaria uma coisa e outra.

2A extrema-esquerda desistiu de Costa. Que é outra forma de dizer que a peça teatral protagonizada há sete anos pelo PS, PCP e BE será retirada do cartaz por falta de protagonistas interessados em assegurar a sua continuidade. O PC vinha até já aviado de casa com o seu sonoro “niet” ao OE) e o BE foi apanhado em contra mão. O futuro não lhes sorri.

Apesar de tudo espantei-me: habituada às coreografias que no passado enfeitavam esta espécie de comédia de costumes que se viveu nos últimos anos em Portugal, caí na distração: se tivesse “visto” melhor o resultado das autárquicas teria obrigação de ter percebido a mudança de ciclo que anunciavam. E consequentemente, as (inevitáveis) alterações nas estratégias partidárias que se seguiriam. Tão grandes que um Partido Comunista, banindo credos, convicções e ideologia, nos mostrou sempre votar sem remorso e disciplinadamente em quatro orçamentos do ex-presidente do Eurogrupo, para subitamente se mostrar agora expedito e convicto no chumbo deste: “o mais à esquerda” que Portugal teve nas últimas décadas. E de facto: os patrões sentiram-se tão a mais que se levantaram da sala da concertação social e saíram porta fora. Fizeram bem. Horas depois a palavra “lapso” remetida pelo chefe do governo ao patronato, ficou a balançar nos écrans dessa noite: lapso?

Assistiremos a um passa culpas assassino mas não é difícil escolher um responsável. Só há um, chama-se António Costa, e inventou a geringonça e a sua estratégia: se uma e outra poderiam ter alguma razão de ser na primeira legislatura — para alcançar e manter o poder, Costa só encontraria eco e guarida à esquerda — na segunda, como dizia o outro, não havia necessidade. O governo poderia — deveria – ter ganho distância relativamente à extrema-esquerda exibindo uma equidistância que lhe teria permitido ampliar politicamente a sua capacidade de negociação. O Primeiro-Ministro preferiu — e fez — o contrário. Triturou o PSD, tratou mal a direita, humilhou metade do país. Como há males que vêm por bem, o centro e a direita agradecerão. Nada absolutamente lhes pesa neste desastre, nenhuma responsabilidade lhe poderá ser assacada.

Nisto tudo lembro-me de António Guterres: foi mais inteligente e mais rápido. No próprio dia das eleições autárquicas de 2001, era ele primeiro-ministro, percebeu de imediato que tínhamos caído num pântano. Abalou nesse domingo. Costa, conhecido como um político tão habilidoso, parece ter percebido menos. Deve ter sido outro lapso.

3Acredito que a muitos possa não parecer mas em certo sentido Portugal está mais pobre, mais indefeso, menos estruturado, mais desigual do que em 2011. Olhe-se para os algarismos que certificam a dimensão astronómica da nossa dívida; para a cruel desigualdade económica e social entre portugueses, comprovada por números fiáveis; para a juventude, manietada por salários que lhe vetam qualquer futuro onde caiba um bocadinho de ambição; para as trapalhadas da Justiça; a vergonha da Educação; o angustiante estado da Saúde; para o asfixiante cerco do fisco; para a TAP, o estado dos comboios e agora o modo como se lida com os combustíveis. E já agora para a ficção dos fundos europeus — à qual o governo chama deprimentemente bazuka — que não vai chegar ao bolso dos portugueses porque não é a eles nem a ”isso” que se destina.

Tratar do país vai ser mais complexo, mais duro e mais ingrato do que em 2011 e não estou obviamente com isto a sub- estimar o ciclópico trabalho de Passos Coelho para nos tirar do fundo de um poço ( tirou e ganhou a seguir o prémio das urnas) mas a constatar uma evidência: dez anos depois o país está mais doente mesmo que não pareça ou que a retórica socialista — conforme se ouviu no parlamento — continue incansavelmente ilusória.

4Repito: à hora a que escrevo nada sei sobre o “como” e o “quando” das eleições. Mas há uma coisa que sei: se forem um galope, o país é que sofre e nada ganha. À pressa, as eleições confundirão mais do que clarificarão. Perder-se-á tempo, oportunidades e dinheiro.

Não lhe parece, sr. Presidente que seria sensato evitar um lapso deste tamanho?

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II -Os dois erros de Marcelo (que Costa agradece)

Marcelo errou ao agir como se valesse tudo para aprovar o OE 2022. E errou quando apontou a eleições em Janeiro (com a direita em renovação). Ambos os erros servem as intenções de António Costa.

ALEXANDRE HOMEM CRISTO

OBSERVADOR, 28 out 2021

O Presidente da República envolveu-se directamente nas negociações com vista à aprovação do Orçamento de Estado para 2022 (OE 2022). Tudo normal? Nem por isso. Por um lado, ouvimos os habituais apelos à estabilidade política, que marcam a sua Presidência desde o primeiro mandato. Mas, por outro lado, Marcelo passou o risco. Fê-lo quando usou como argumento para a aprovação do OE 2022 um eventual surgimento de nova pandemia — o que será isto, senão a manipulação pelo medo? Passou o risco quando dramatizou a situação e equivaleu a não-aprovação do OE 2022 a uma crise política — ora, refira-se que em vários países europeus há orçamentos que não passam à primeira e governos em gestão durante meses. E, por fim, passou o risco quando estabeleceu contactos directos com deputados, para os convencer a virar o seu sentido de voto e até a quebrar disciplinas partidárias (com o PSD-Madeira) — o que é verdadeiramente inconcebível.

A tradução é simples: Marcelo pisou o risco porque não aceita limites e porque se deixou levar pelo erro de percepção de que ter um Orçamento péssimo aprovado seria melhor do que ter um Orçamento rejeitado. Talvez o tenha feito para, na opinião pública, legitimar a sua posição e tornar claro que exerceu todos os esforços para evitar um cenário de ruptura. Ou talvez o tenha feito porque, simplesmente, acreditou mesmo nesse erro de percepção. Na prática, faz pouca diferença: o Presidente da República colocou na cabeça dos portugueses que valia tudo para aprovar o OE 2022 — e fez mal.

As medidas que o PS e os parceiros da geringonça negociaram em público converteram o OE 2022 numa manta de retalhos. Pior: várias das exigências de BE e PCP, como as da legislação laboral, constituem retrocessos graves. Como tal, o ponto tornou-se este: o amontoar de cedências do PS à sua esquerda converteu a aprovação deste OE 2022 na pior solução possível para o país. Não haja qualquer dúvida: a ideia de que a aprovação do OE 2022 e que a estabilidade política são bens em si mesmos, e que por isso justificam a adesão a este vale-tudo, é completamente errada. Nada é pior do que ter um OE 2022 que faz o país recuar, em vez de avançar.

O segundo erro de Marcelo foi informar que, perante a não-aprovação do OE 2022, iniciaria muito rapidamente diligências para dissolver o parlamento e convocar eleições legislativas, que nesses termos se poderiam realizar logo em Janeiro. Esta pressa é contraproducente. Desde logo, porque saltou etapasnão ouviu partidos nem o Conselho de Estado, decidiu antes de os factos estarem consumados. Mais importante ainda: até para preservar a estabilidade política e garantir o regular funcionamento das instituições, o Presidente da República deve ter em conta a situação dos partidos da oposição — e estes estão em processos de eleições internas. Goste-se ou não, dê jeito ou não, as coisas são mesmo assim: sem partidos, não há democracia. Não há qualquer vantagem para o país em ir para eleições legislativas em circunstâncias temporais que impossibilitam PSD e CDS de apresentar ao eleitorado as suas equipas (haja ou não mudança de lideranças), explicar as suas propostas e fazer campanha nas ruas. Com eleições em Janeiro, tal seria impossível — haveria apenas tempo para as eleições internas. A razoabilidade impõe que as eleições legislativas só possam realizar-se a partir de meio de Fevereiro.

Marcelo errou ao agir como se valesse tudo para a aprovação do OE 2022. E errou quando apontou a eleições em Janeiro (quando a direita está em renovação). O que têm estes erros em comum? Servem as intenções de António Costa — que aprecia a dramatização à volta da aprovação do OE 2022 e beneficiaria da impreparação da direita num calendário eleitoral apertado. É tudo uma grande coincidência? Talvez haja quem acredite que sim. Mas, na política, o que parece é.

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