Esta de Carlos
Maria Bobone sobre Miguel de
Sousa Tavares, que tem o "azar" de ter vendido muito “Equador”, romance de
uma ficção um tanto artificial, segundo lembro, mas que se lê com agrado, com o
seu lado de intriga pretendendo seguir o jeito do tempo, com os seus laivos de acção
policial e romanesca, e personagens de requinte educacional, grato aos que
desejam fugir da promiscuidade ruidosa destes tempos de ruído e vulgaridade.
Gostei a valer desta análise crítica de Carlos Maria Bobone, como peça simplificada mas fundamental para se entender que o que hoje está a dar, em termos de escrita, embora já longe do “Nouveau Roman”, a dar o tiro de desvio, e a nós nos favoreceu com um Nobel da Literatura, é o artifício técnico da desconstrução gramatical, salientando a riqueza mental dos seus génios criadores.
De que é feita e o que representa a
escrita de Miguel Sousa Tavares /premium
Ao deixar o jornalismo, é para o romancista que as
atenções agora se viram. Entre "Equador " e "Último Olhar"
(o novo livro), Carlos Maria Bobone escreve sobre as singularidades de um
escritor.
OBSERVADOR, 10 out
2021
Vendeu
como nunca ninguém em Portugal tinha vendido. Há uns anos, explicava também um
editor que a Autobiografia de Gabriel
García Marquez tinha sido um
fiasco em Portugal porque encontrara pela frente um inultrapassável Equador,
que ocupara as preferências dos leitores portugueses. Passou da televisão
para os livros, para ver os livros voltarem à televisão.
Apesar
disso, a crítica pareceu pouco impressionada pela glória popular. Vasco Pulido Valente resmungou, com aquela sua concisão agressiva,
contra o Equador, chumbou o Rio das Flores com mais minúcia, e o próprio Miguel Sousa Tavares se queixa de ter havido um “esforço deliberado” para
não premiarem Equador.
Ora,
esta parece ser a versão clássica dos mecanismos de recepção de um livro. Àquilo que
as massas comem, torcem os especialistas o nariz. É assim com José Rodrigues dos Santos, foi assim
com Campos Junior, com Ken Follett, George Martin, numa lista que podia recuar
até à primeira plaquinha copiada em larga escala pelos assírios. Esta é,
aliás, uma situação que convém aos dois campos. Enquanto o público não souber
reconhecer a boa literatura, a crítica tem o seu lugar assegurado – continuam a
ser precisas guias literárias que se diferenciem da barbárie; e enquanto o
êxito repelir os críticos, os escritores mais afamados conseguem refugiar-se no
bordão consolador: como o livro se vendeu, os críticos decidiram
espremê-lo, a ver se pinga dele alguma das moedas que rendeu ao leitor. A
crítica dos zoilos não se deve à falta de qualidade, mas ao êxito do livro. O próprio Miguel Sousa Tavares, aliás, sustentou
esta tese.
▲As capas das
novas edições de "Equador", originalmente publicado em 2003, e
"Rio das Flores", livro de 2007. "Último Olhar" é o mais
recente romance de Miguel Sousa Tavares (Porto Editora)
Com
o autor de Rio das Flores, porém, o caso é ligeiramente mais complicado. As falhas
históricas que Pulido Valente encontrou nos seus romances, embora reais, são
perdoáveis. É certo que
ainda no mais recente livro, Último
Olhar, confunde requetés com pelotões do
exército de Queipo de Llano, como noutros livros fez vista grossa às dinâmicas
do aparelho político português da primeira república, mas convenhamos: não são erros gritantes, são confusões que até podem
ter aquele encanto bruto do homem insensível que aterra num lugar exótico,
aquela agitação ligeiramente trapalhona própria dos homens de acção, a lembrar
um general americano a ter de decidir o que fazer no meio das montanhas afegãs,
ou um Kipling, com a sua mentalidade imperial, a escrever sobre
as castas indianas. Por muito que haja nos livros aquele pequeno incómodo
de quem assiste à História contada com mais convicção do que rigor, Miguel Sousa Tavares também sabe dar às suas contextualizações a
condescendência viril de quem tem pouca paciência para rendilhados, como se
preferisse despachar os assuntos para contar o que realmente interessa.
Criticar
as imprecisões históricas de Miguel
Sousa Tavares é, assim,
insuficiente para o considerar um mau escritor, como serão insuficientes as
críticas feitas por João Pedro
George, por exemplo,
que encontra no Equador a expressão acabada de um pensamento machista e reaccionário,
em que mesmo as personagens discursivamente liberais ou tolerantes são
estruturalmente reaccionárias.
É
verdade que esta pode ser uma crítica mais consequente. O que está em
causa não é o facto de haver personagens progressistas ou reaccionárias, mas o
facto de serem artificialmente uma coisa ou outra. É na
contradição entre aquilo que declaram ou fazem e o modo subentendido como olham
para o mundo que podemos encontrar a inépcia do escritor. Note-se que não haveria, deste ponto de vista,
problema nenhum em que tivéssemos personagens machistas ou reaccionárias ou o
que quer que fosse no livro: o único problema está na falta de controlo
sobre as suas próprias personagens, que levaria o escritor a estar focado
apenas num plano (o plano mais óbvio, do discurso ou das acções principais),
de tal modo que tornaria as suas personagens inconsistentes. É esta
mesma ideia que pode levar a que consideremos as personagens unidimensionais ou
plásticas.
Como a escrita de Miguel Sousa
Tavares é sobretudo virada para a acção, as circunstâncias
acabam por ser aquilo que melhor define as personagens. Estas não têm propriamente um carácter, têm um cadastro, e esse
cadastro pretende mostrar-nos o tal carácter. Porém, se são realmente as acções
aquilo que importa na definição das personagens, é o contexto que as faz, mais
do que elas próprias. Nada conseguiríamos saber sobre o Pablo de Último Olhar se
ele não tivesse combatido na Guerra de Espanha. Mais, caso Pablo não tivesse
combatido, teríamos uma pessoa diferente, e uma percepção diferente do seu
carácter. Isto significa que o fundamental da personagem não está nela, mas
nas circunstâncias. Ora, o facto de não se ligar às pequenas
circunstâncias, ou estas terem um papel meramente funcional na História, é o
que pode levar às personagens incoerentes.
É
claro que as pessoas são incoerentes, como as personagens também podem ser. A
incoerência, porém, geralmente está invertida: é nos momentos mais difíceis
que é mais improvável sermos virtuosos, e nos fáceis que a virtude cresce.
Mesmo que isto não seja uma absoluta regra de vida, será com certeza uma regra
da ficção: não faz sentido do ponto de vista de um enredo que as situações
mais fáceis se sigam às mais difíceis. Se um governador se porta como um
grande homem nos momentos decisivos, não faz sentido que pouco liguemos àqueles
em que se porta com menos justiça – é anticlimático e contribui para termos uma
sensação de que as personagens são artificiais.
Ainda
assim, mesmo com
personagens artificiais e com uma certa trapalhice histórica, Miguel Sousa
Tavares podia ser um grande escritor. Eugénio Lisboa, aliás, atravessa-se pelo Equador, e considera
as “boquinhas” da crítica um sinal de hipocrisia (os críticos leriam, como
fazem com os contos de Somerset Maugham, o Equador às escondidas). De
facto, haveria em Miguel Sousa Tavares uma série de características que
poderiam fazer dele um autêntico “écrivain national”, na acepção que Elias Canetti
faz do escritor que encarna o “espírito” de uma época ou de um país. Miguel
Sousa Tavares escreve como um “écrivain national”, pensa como um “écrivain
national” e porta-se como um “écrivain national”.
▲Miguel Sousa Tavares tem as qualidades
da discreta escrita jornalística. Mesmo que isto seja pouco valorizado
literariamente, não deixa de ser uma qualidade, própria de um “escritor
nacional”
DIANA
QUINTELA
Aquilo
que era próprio desta grande figura canónica das letras, o verdadeiro arquétipo
do escritor antes de ser ultrapassado pelo escritor maldito, era uma espécie de
capacidade vocal para concretizar o ar do tempo, uma noção do cânone, a correcção
gramatical e um uso alargado do vocabulário, uma certa grandiosidade, enfim:
tudo aquilo que encontramos primeiro em Victor Hugo e depois em Barrês, em
Hermann Broch ou em Almeida Garrett. Republicanos no tempo da Revolução,
nacionalistas no tempo de Boulanger e da Action Française, liberais com a
vitória de D. Pedro, etc.
Em
certo sentido, o problema de Sousa Tavares está no facto de a figura
do escritor nacional ter sido ultrapassada, em matéria de prestígio literário,
pela figura do escritor maldito. Mais importante do que o conhecedor da gramática é
aquele que a revoluciona, mais importante do que vocalizar o ar do tempo é
vir da frente e contra o tempo, mais importante do que a grandiosidade é a
marginalidade, de tal modo que houve uma transferência dos campos de prestígio
literário que não favoreceu Miguel Sousa Tavares. É
porque o grande plano passa a ser menos importante do que o pormenor que Miguel
Sousa Tavares, sem escrever com os pés, parece tão deslocado da alta
literatura. Toleram-se, hoje, falhas de enredo, enredos desinteressantes,
histórias inexistentes, desde que o pormenor seja explorado ao máximo. Vemo-lo nos
grandes exemplos da literatura contemporânea, como Proust e Joyce, que deixaram
o enredo para segundo plano. O feitio de Miguel Sousa Tavares é, neste sentido,
anti-literário, pelo menos pelo cânone da literatura contemporânea.
Percebemos, assim, que críticos menos
interessados na “contemporaneidade” queiram salvar Miguel Sousa Tavares. É um escritor com as qualidades próprias de um
jornalista: sabe o que é importante, quer contar a história e não contar-se a
si próprio (coisa que também o prejudica nos pergaminhos literários, ganhos com
a personalidade e com a originalidade) e escreve funcionalmente, sem ademanes e
sem surpresas, exactamente como esperamos que as coisas sejam escritas. Não há revoluções no seu modo de escrever, os ambientes
não são vistos por perspetivas desconhecidas, os comunistas românticos pensam
como todos os comunistas românticos desde que a literatura é literatura e os
capitalistas alarves pensam como todos os capitalistas alarves desde que o
tempo é tempo. A sua escrita atinge o pináculo do lugar-comum, naquilo que de
mais elogioso se pode dizer sobre o lugar-comum: não é fácil expressar com
clareza e do modo mais natural aquilo que as pessoas pensam sobre os assuntos.
É esta uma das grandes qualidades da discreta escrita jornalística e Miguel
Sousa Tavares tem-na. Mesmo que isto seja pouco valorizado literariamente, não
deixa de ser uma qualidade, e uma qualidade própria de um “escritor nacional”.
O seu modo de escrever tem
simplesmente aquela estranheza de quem entra numa conversa sem saber que um
acontecimento fulcral alterou aquilo que de mais importante pode ser dito.
O
azar de Miguel Sousa Tavares passa, assim,
do ponto de vista crítico, por escrever de um modo desprestigiado ou, quase
que o poderíamos dizer, atrasado. Da mesma maneira que não faz sentido,
depois de Kant, continuarmos a discutir conceitos de
sujeito e objecto como se a Crítica da Razão Pura não
existisse, também não fará sentido escrever romances como se não existissem Proust ou Kafka ou Joyce – pelo menos caso queiramos ser reconhecidos como bons
escritores. O problema maior de Miguel Sousa Tavares é, do ponto de vista
literário, escrever como se nada se tivesse passado, o que lhe dá um ar um
tanto anacrónico. Não tem aquela contenção simples de quem escreve com uma
contenção propositada, que se encontra em Thomas Mann ou em E. M. Forster, com
o formalismo daqueles que deliberada e conscientemente rejeitam as formas
modernas de escrever: o seu modo de escrever tem simplesmente aquela
estranheza de quem entra numa conversa sem saber que um acontecimento fulcral
alterou aquilo que de mais importante pode ser dito.
Poderíamos
daqui depreender que Miguel Sousa
Tavares podia ser um excelente escritor de outro tempo. Não serviria para a literatura do nosso tempo, mas se a
posteridade viesse a confundir datas de nascimento, poderia ser considerado um
grande escritor de princípios do século XX, por exemplo. Não nos parece, porém, que seja exactamente assim.
Para já, porque Miguel Sousa
Tavares tem um perfil de escritor anacrónico, o que é diferente de ter um
perfil de escritor do passado. Porque
como um escritor sobretudo de acção, de exterior, naturalmente não tem o mundo
de um escritor de princípio de novecentos. Depois, porque aquilo que o
caracteriza é o facto de ser um escritor “do seu tempo”, de uma maneira que a
literatura contemporânea não é. Em
Joyce, mais do que o seu tempo, vemos Joyce, como em Kafka vemos Kafka e não um
tempo preciso (é claro que há nele um lado alegórico temporalmente convertível,
mas não temos um retrato do seu tempo).
Com
Sousa Tavares, porém, aquilo que temos é precisamente uma projecção do seu tempo. Do modo como o seu tempo olha para a História, no
caso dos romances mais históricos, e do modo como este tempo olha para si próprio,
no caso por exemplo deste Último
Olhar. A escrita de Miguel Sousa Tavares é, neste sentido,
transparente, com o problema de ser este um tempo que não favorece este tipo de
escrita. Não porque tenha havido tempos mais pinturescos – essa é, também, uma
característica literária, de tal modo que são os grandes artistas que moldam a
compreensão que temos de outros tempos – mas porque é um tempo que está de todo
em todo contra o tipo de escrita de Sousa Tavares. O que é
próprio do nosso tempo é a consagração da marginalidade, pelo que a defesa dos
marginais aparece com o ridículo de se ter tornado a causa central, pervertendo
assim o seu lugar. A ideia do maldito, do contra-corrente, da vanguarda, da
contradição como ideais colectivos transformam-nos numa caricatura de si
próprios.
Miguel Sousa Tavares escreve como porta-voz destas ideias (com uma
ou outra excepção que fazem parte da “pose Hemingway” e que
contribuem para a ideia de idiossincrático ou de homem livre, que diz o que pensa), ideias
essas que perdem o propósito quando são quase consensuais. O facto de as ideias progressistas se terem tornado
consensuais e de a vanguarda se ter transformado no comum obrigam a que um
escritor com o perfil de Miguel
Sousa Tavares se torne
uma estranha construção. É convencional defender o original, é estranho ser um
escritor que respeita a gramática e o vocabulário do seu tempo quando a gramática
e o vocabulário foram praticamente abolidos, de tal forma que o papel de Miguel
Sousa Tavares enquanto escritor tem forçosamente de ser artificial. Não há problema nenhum em ser-se convencional. Castilho
foi um grande emulador das convenções, como aliás toda a Arcádia. O problema é
ser-se convencional num tempo que não acredita nas convenções. E é
isso que faz de Miguel Sousa Tavares um escritor com um lugar só seu, mesmo que
seja um lugar que poucos (do ponto de vista exclusivamente literário, claro)
queiram.
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