sábado, 31 de agosto de 2024

Ora essa!


O que está feito, está feito! Não se fala mais nisso, embora seja enternecedor o papel reivindicativo de CARLOS LUNA, com este seu patriótico texto sobre OLIVENÇA. Mas nem a Espanha ia permitir procedimentos desses, arrebatadores, nem nós por cá nos metíamos em tal demanda de exigência devolutiva, e julgo que os oliventinos também se encontram bem, como estão, a progredir melhor do que se tivessem ficado na nossa posse. Mas foi um bonito e corajoso descritivo, este de C.L., gostei de ler mais um retalho de espaços que habitámos e onde deixámos marca, que deveria voltar para nós, como nós assim procedemos, nos tempos das descolonizações capitais, mas só com as raças “tristíssimas e pretas”, convenho. Como Espanha também fez, de resto, generosamente desapossando-se das por si colonizadas, pela mesma altura, a mostrar iguais sentimentos para com esses da cor discrepante, para a moda da devolução em moda. Olivença, que foi nossa, não merece idênticos escrúpulos devolutivos, sendo os seus nativos do mesmo tom de pele, a não excitar igual comiseração à para com os de além-mar, que, esses sim, mereceram, não só devolução, como indemnização, e hoje mesmo, a sua resposta invasora, a ajudar-nos, de resto, na nossa reconstrução própria, preguiçosos que estamos.  

Ir onde Saramago não quis ir (ao Portugal que não quis conhecer)

O viajante é patriota. Sempre ouviu dizer que Olivença nos foi abusivamente sonegada, educaram-no nessa crença. Agora a crença torna-se convicção.

CARLOS LUNA Professor de História licenciado pela Faculdade de Letras de Lisboa

OBSERVADOR, 27 ago. 2024, 00:202

Poucas vezes a arrogância e o génio se viram tão confundidas como no escritor José Saramago. Mesmo  quando escreveu um livro a tentar  dar uma visão geral de todo o Portugal, foi vítima dos seus preconceitos. No livro em questão ( “Viagem a Portugal”, de 1981), na página 339, encontra-se uma referência a Olivença que vale a pena citar: : «quando numa sombra se detém para consultar os mapas, repara que na carta militar que lhe serve de melhor guia não está reconhecida como tal a fronteira face a Olivença. Não há sequer fronteira. Para norte da Ribeira de Olivença, para sul da Ribeira de Táliga, ambas do outro lado do Guadiana, a fronteira é marcada com uma faixa vermelha tracejada: entre os dois cursos de água, é como se a terra portuguesa se prolongasse para além do sinuoso traço azul do rio.

O viajante é patriota. Sempre ouviu dizer que Olivença nos foi abusivamente sonegada, educaram-no nessa crença. Agora a crença torna-se convicção. Se os serviços cartográficos do exército tão privativamente mostram que Portugal, em trinta ou quarenta quilómetros, não tem fronteira, então está aberto o caminho para a reconquista, nenhum tracejado nos impede de invadir a Espanha e tomar o que nos pertence. O viajante promete que voltará a pensar no assunto. Mas uma coisa teme: é que não falte o tracejado nas cartas militares espanholas, e que para eles seja o assunto caso arrumado. Para se preparar, o viajante irá estar presente nas próximas reuniões das comissões mistas para as questões fronteiriças. Ouvirá com atenção o que se discute, como e para quê, até à altura de puxar do mapa que afervoradamente guarda e dizer: “Muito bem, vamos agora tratar desta questão de Olivença.

Diz aqui o meu papel que a fronteira está por marcar. Marquemo-la com Olivença da nossa banda.”. Morre de curiosidade de saber o que acontecerá.”». É confrangedor o argumento de nada constar nas cartas militares espanholas. Será que as cartas militares britânicas de Gibraltar reflectem as reivindicações de Madrid? E quanto ao comentário final de Saramago, ele  é claramente negativo sobre as pretensões portuguesas, mas omite ou esquece algo que em Saramago é constante, isto é, de que o que importa é a justiça, a razão do que se defende, e não o tamanho do oponente. Foi isso que o escritor defendeu na Palestina, e defendeu a propósito de Timor. Para sua honra! E, pasme-se… Saramago não foi a Olivença. E isso é imperdoável!

O que perdeu Saramago? É isso que vamos ver!

Em 1981, só se podia ir a Olivença indo a Badajoz. Desde 2000, há uma ponte administrativamente só  portuguesa entre Elvas e Olivença. É a Ponte da Ajuda, sobre o Guadianatendo ao lado a ruína duma Ponte Manuelina destruída em 1709. Ao passarmos a Ponte (nova), entramos no Território Histórico da Olivença!

São cerca de 453,61 Km.2, até às Ribeiras de Táliga (ou de Alconchel) e de Alcarrache. Dois concelhos: o de Olivença propiamente dito, e o de Táliga, pequeno comparativamente em área, antiga aldeia de Olivença, independentizado em 1850  Segundo a perspectiva diplomática oficial portuguesa, é um território legalmente português, administrado de facto pela Espanha. Uma região que foi, na época franquista principalmente, sujeita a uma descaracterização que se pode classificar de dramática. Durante mais ou menos quarenta anos.

A nova ponte foi inaugurada em 11 de Novembro de 2000, ´Houve quem quisesse que se chamasse “General Humberto Delgado”. Construída à mistura com  quase vários e pouco divulgados desentendimentos diplomáticos. Mas ela lá está, ligando directamente  Elvas a Olivença (e sem ligação a mais lado nenhum! São 21 Quilómetros ), sendo considerada como infra-estrutura local ou municipal, e não internacional. Aliás, o Estado Português pagou-a integralmente. Uma história que teve e tem tantos episódios e condicionantes estranhos, que deveria merecer um livro

Claro que, para quem sai de Elvas e se dirige somente a Olivença, a Ponte constituirá o primeiro local a visitar quando entrar na Região… mas voltaremos a falar do assunto!

Peço perdão, mas talvez caiba aqui um comentário! Sendo Democracias actualmente, Portugal e Espanha, aproveitando até o facto de ambos estarem na União Europeia, podem agora encarar este litígio de forma aberta, sem complexos, com um mínimo de traumas, sem pôr em causa princípios e interesses legítimos nem planos de cooperação noutros domínios. As boas relações facilitam a discussão de todos os assuntos, principalmente os melindrosos. Os preconceitos passam a ter muito menos sentido. Só por isso, a Democracia vale a pena!

Mas…voltemos ao tema da visita… e à Ribeira de Olivença. Ao lado da Ponte Nova, está uma mais antiga, que deixou de ser usada em 1994.  Para já, informa-se que está a um quilómetro do local onde foram assassinados o General Humberto Delgado e a sua secretária, em 1965. Mesmo a Norte da Ribeira de Olivença, a Leste, nas proximidades da herdade de “Los Almerines”. Se veio do Sul, ou de Elvas pela nova Ponte da Ajuda, que muitos querem, pelo episódio histórico referido, que se chame “Ponte General Humberto Delgado”, terá de percorrer três ou quatro quilómetros para norte, a partir da Terra das Oliveiras

Mas siga, a partir da Ponte. Está próximo, muito próximo mesmo de Olivença. Acabará por avistar a cidade, donde se destaca uma Torre de Menagem. Avance, vire à direita, e terá chegado a um mundo que o surpreenderá… se tiver olhos para ver… e que Saramago não quis ver. Continue a ler estas linhas, e dar-nos-á razão… esperamos.

Verá algumas casas alentejanas, principalmente em ruas pequenas, e até em algumas grandes. Principalmente algumas artérias simples poderão surpreender, mesmo porque é nelas que eventualmente poderá ouvir falar português “alentejano”, por vezes com surpreendente pureza. Pode mesmo tomar a iniciativa.

Sem dúvida que os nomes das ruas parecem, e são, espanhóis. Mas, desde 2011, graças aos esforços duma Associação local, os nomes portugueses antigos também lá estão. Os nomes antigos, como verá, são bem portugueses, e muita gente os conhece de cor, principalmente os mais idosos. Rua dos Oleiros. Rua das Atafonas. Rua do Poço. Rua da Caridade. Rua da Pedra. Rua dos Saboeiros. Há tantas, tantas !

Mas… vamos á parte turística “consagrada. Comece pela Torre de Menagem, construída por volta de 1488, por ordem de D. João II de Portugal… ou talvez antes.. Encontrará, num mesmo complexo, um Museu Etnográfico…que já foi Municipal… e que é algo de admirável. Está ali todo um passado, quase sem barreiras. Há Pré-História. Há mundo rural. Há mundo urbano. Há coisas que nunca pensou ver num museu… mas que devem mesmo lá estar. Aprenderá algo, seguramente.

Está na parte mais antiga de Olivença, a chamada zona dionisina. Nome derivado de D. Dinis de Portugal, que em 1297 assegurou a posse lusitana da cidade (Tratado de Alcañices), após meio século de confusões fronteiriças. Verá por ali as Portas dos Anjos, ou do Espírito Santo. Também as de Alconchel. E, já disfarçadas no Palácio dos Duques de Cadaval, actual Câmara Municipal, as Portas da Graça. E, como se não bastasse, foi reconstruída uma outra, que  se chamou 8 e chama de São Sebastião…

Porque estamos na parte dionisina, visite a Igreja de Santa Maria do Castelo, Igreja Salão, Matriz da cidade E também uma belíssima árvore genealógica da Virgem Maria (árvore de Jessé; a maior em, dizem terras lusófonas). Entre outras coisas.

Saiamos da zona dionisina pelas Portas do Espírito Santo, e examinemos a Porta Manuelina da Câmara Municipal. É um exemplar valioso.

Já que falamos em Manuelino… vamos à Igreja de Santa Maria Madalena,  a 20 metros de distância. Eis uma espantosa Catedral Gótica- Manuelina, a segunda em tamanho existente neste estilo… após, naturalmente, os Jerónimos. As colunas toscanas imitam cordas na perfeição. E podemos ver azulejos. E Talha Barroca, mais recente. Este templo, há poucos anos, mereceu a classificação de “espaço mais bonito de Espanha”, num concurso aberto à votação pública da responsabilidade de uma companhia petrolífera(gasolineira)

Não há que espantar. O templo foi sede do Bispado Português de Ceuta. O seu primeiro bispo, Frei Henrique de Coimbra, está lá sepultado. Trata-se ( as voltas que a História dá !) do homem que rezou a Primeira Missa no Brasil, em 1500.

Voltemos a passar em frente da Câmara Municipal, e viremos à esquerda, percorrendo parte da Rua da Caridade. Eis-nos diante da Misericórdia de Olivença. Vejamos os mármores em torno da belíssima porta. Os Escudos Nacionais de Portugal e Espanha. Sobre a porta da Capela, outro escudo luso, embora picado. Entremos na Igreja/Capela, . Tantos azulejos portugueses ! Dir-se-ia uma versão menor da Igreja da Madalena. E há talha em madeira para todos os gostos

Sigamos depois pela Rua Espírito Santo, ou pela sua paralela, a Rua Fernando Afonso Durão (“Fernando Alfonso”), ou das Parreiras. Desembocaremos na Plaza de España, antigo Terreiro ou Passeio Velho. E… para quem pensa que a presença histórica portuguesa se esgotou lá pelo século XVII, veja o Palácio dos Marçais, pombalino, do Século XVIII. Aí chegados, se houver tempo,  não é má idéia visitar-se o Convento de São Francisco (Séculos XVI/XVII), porque fica a menos de 100 metros.

Mas…existem muitas alternativas ainda! Podemos visitar alguns troços, de incontestável beleza, das muralhas dos séculos XVII-XVIII (estilo “Vauban”; iniciadas a propósito da Guerra da Restauração ), e, andando um bocado mais, ver as Portas do Calvário, que delas fazem parte, em mármore, iguaizinhas às que se encontram, por exemplo, em Elvas e Estremoz.

À direita das Portas do Calvário, encontraremos o Convento de São João de Deus ( Século XVI ).

Se, depois, seguirmos pelas ruas de Santa Luzia e de Santa Quitéria, encontraremos uma pequena Igreja, de Nossa Senhora da Conceição (ou de Santa Quitéria), e, sempre andando, uma dependência das já destruídas Portas de Santa Quitéria, ou Porta Nova, companheiras das Portas do Calvário (ainda que sem mármores), tal como uma outra porta também já destruída, a de São Francisco. De três, resta uma. Mais acima, o antigo Quartel de Cavalaria dos Dragões de Olivença (século XVIII) dá-nos as boas vindas. Em frente deste, nas antigas cavalariças, um Centro de Lazer para Idosos (“Hogar del Pensionista”) poderá ensinar muita coisa !

A menos de 50 metros, está o novíssimo Centro Cultural de Olivença/Casa da Cultura/Universidade Popular. A cultura tem lugar de destaque na Moderna Olivença.

Em todas estas “voltas”, poderão observar-se  os muitos “Passos” da Paixão de Cristo de que Olivença dispõe. Estão um pouco por todo o lado, alguns com azulejos novos, executados por artistas/profissionais das Caldas da Rainha ou doutros pontos de Portugal. E, recente, bastante calçada portuguesa…

Há muita coisa para ver. É difícil dizer tudo!

Se, de facto, se pensa que a Cultura não são só monumentos, e nem só cidades, então, para além das Ruas Antigas já sugeridas, podemos visitar as aldeias dos arredores. Como, por exemplo, São Jorge de Alôr, cinco quilómetros para Leste. Veremos casas alentejaníssimas, e chaminés meridionais portuguesas de estonteante altura. Podemos, em alternativa, visitar São Bento da Contenda (7 Km. a Sudoeste), com o mesmo tipo de arquitectura, uma das povoações onde a Língua Portuguesa se mantém como língua comum.

Podemos ainda visitar Vila Real, 10 Km. a Oeste, frente a Juromenha, de cujo extinto Concelho foi parte até 1801. As características linguísticas e arquitectónicas continuam a surpreender…ou, nesta altura, talvez já não! Ainda que, em Vila Real, desde 2004 e 2005, muita coisa tenha mudado, com umas obras em várias das suas velhas casas. Pelos vistos, não se está a preservar como devia a velha traça popular na região…

Mas… vamos a São Domingos de Gusmão, 4 Km. a sudeste,  aldeia quase abandonada por causa da emigração. Prosseguindo pela estrada que a esta conduz, a 20 Km. de Olivença, encontra-se, como já referimos, Táliga, (ou Talega), uma antiga aldeia que é hoje um Concelho independente da Terra das Oliveiras. Embora não tanto como noutras povoações, o Português alentejano ainda por lá subsiste… mais entendido que falado… ainda que o possa não parecer à primeira vista !

Poderemos ainda visitar as aldeias novas de São Francisco e São Rafael de Olivença, 7Km. a Norte de Olivença, a primeira, e 9 a nordeste, a segunda. Só existem desde 1954. Claro, por isso as suas características arquitectónicas são diferentes, mas há por lá umas chaminés não previstas nos planos iniciais, e a população também vai falando e compreendendo a lusa fala… em versão planície.

Já que andamos por estradas várias, independentemente de depois voltarmos para trás ou de simplesmente continuarmos diretamente para Elvas, visitemos a sério, parando por lá, a velha Ponte da Ajuda (10 Km. a noroeste da urbe transodiana), destruída, como já se disse,  desde 1709. Não foi reparada depois, e a ocupação espanhola de Olivença em 1801 veio dificultar ainda mais as coisas. É um impressionante Monumento Manuelino (mais um!), que tem cerca de 450 metros, 19 arcos, e um largo tabuleiro de quase seis metros… o suficiente para se cruzarem duas carroças. Não se sabe quando, ou mesmo se será reconstruída. O que se fez nesse sentido esteve e está envolvido em acesa polémica. Mas, como se disse antes, há uma Ponte novinha a cem metros de distância (desde 2000), pelo que o Guadiana já não é obstáculo!

Vamos dedicar a nossa atenção a outras coisas… ou outros pontos de interesse. Por exemplo, na estrada para São Jorge de Alôr há a Quinta de São João, ou da Marçala, ou dos Marçais… que esconde um Convento de Frades Franciscanos do Algarve, fundado talvez em 1500.

Encontramos muitos “montes” rurais alentejanos. Em número superior a uma centena. E pelo menos um doce português de muita fama (“Técula-Mécula”)  nas duas pastelarias, chamadas “Fuentes” e “La Chiminea” e que me perdoem em alguma eventual guerra de patentes! Encontramos…

Vamos a deter-nos com as indicações. Quem quiser, vá a Olivença. Descubra mais coisas. Escreva sobre isso, ou relate aos amigos. Parece-nos que já demos pistas suficientes !

Só umas últimas linhas -  referir que entre 2008 e 2019 existiu  uma associação autóctone ( a “Além Guadiana”), que, sem se meter em políticas ou questões de soberania, luta pela herança cultural lusa de Olivença em todas as suas vertentes, tendo conseguido convencer as autoridades locais a reporem os velhos nomes portugueses, em 2011 (ao lado dos atuais nomes espanhóis) em 74 ruas e praças no burgo. E anda no ar a ideia de fazer de Olivença uma espécie de cidade-museu, ou cidade de museusEm 2011, essa Associação inciou um processo de atribuição de nacionalidades portuguesas a oliventinos, que prossegue agora ao cuidado de cada particular. Em março de 2024, já havia mais de três mil oliventinos com nacionalidade lusa… dos quais dois mil eleitores para órgãos políticos (portugueses, naturalmente).

Agora, é a sério! Já chega de pistas! Repetimos: vá lá, visite o que puder. Já agora,  não vá a uma segunda feira, pois tudo quanto é monumento está fechado, e não caia no erro de querer visitar  seja o que for entre as catorze e as dezassete horas locais, pois, durante três horas, tudo fecha. É a inevitável “Siesta”… a Sesta, que já se usou no Alentejo.. .

Por aqui ficamos. Foi além de Saramago. Visitou o que talvez nem procurasse. Se veio de Badajoz, à moda antiga, talvez tenha feito menos compras do que esperava, ou pelo menos, não onde as pensava fazer. Seja como for, foi decerto interessante descobrir Portugala pouco mais de 20 Quilómetros ao Sul de Badajoz ! Se veio, à “moderna”, pela nova Ponte da Ajuda… nem chegou a ir a Badajoz… e a sua visita terá quase só um fim turístico-cultural, e aproveitou para honrar Elvas, há pouco declarada cidade-património mundial. A escolha é sua!

PAÍS      HISTÓRIA      CULTURA

COMENTÁRIOS:

Paul C. Rosado: Muito obrigado, pela aula de História. Belo artigo.               António Costa: Agora, que à falta de melhor, se manda matar e morrer em nome do chão (que não é de ninguém), trocou-me as voltas com uma humanização da paisagem que deve ter feito as delicias de quem estava à sua beira.                    Pedro Henrique Vilar Miranda > António Costa: Também gostei bastante do artigo. Posto isto fica nos meandros do futuro uma hipotética visita às terras lusas do lado espanhol :)

NOTAS DA INTERNET:

Olivença

Olivença (em castelhano: Olivenza é uma cidade sede do município homónimo da zona raiana, cuja demarcação é objecto de litígio entre Portugal e Espanha. Reivindicado de jure por Portugal, o município integra actualmente a província de Badajoz da comunidade autónoma espanhola da Estremadura. É a capital da comarca espanhola de Llanos de Olivenza (em português: "Planícies de Olivença"), também conhecida como Comarca de Olivença. Tem 430,1 km² de área e em 2021 tinha 11 871 habitantes (densidade: 27,6 hab./km²).  Apesar do desentendimento entre Portugal e Espanha sobre a Questão de Olivença, o tema não tem provocado atrito nas relações entre os dois países ibéricos. Olivença e os municípios raianos espanhóis de La CodoseraAlburquerque e Badajoz e portuguesesde ArronchesCampoMaiorEstremozPortalegre e Elvas chegaram a um acordo em 2008 com vista à criação de uma eurorregião. Tratado de Alcanizes, de 1297, estabelecia Olivença como parte de Portugal. Em 1801, através do Tratado de Badajoz, denunciado em 1808 por Portugal, o território foi anexado a Espanha. Em 1817 a Espanha reconheceu a soberania portuguesa subscrevendo o Congresso de Viena de 1815, comprometendo-se à retrocessão do território o mais prontamente possível. Porém, até aos dias de hoje, tal ainda não aconteceu. Assim continuam por colocar os marcos delimitadores de fronteira entre a confluência do rio Caia com o rio Guadiana e a confluência da ribeira de Cuncos com o rio Guadiana com a numeração de 802 a 899 correspondentes ao território de Olivença.

Bem prega Frei Tomás

 

Mas desvia os olhos do que ele faz… É o que se costuma pensar da sentença irónica, que se pode inferir da preocupação do Dr. Salles, perante uma pátria “mergulhada no gosto da cobiça e na rudeza duma austera apagada e vil tristeza”. Como sempre, aliás, mas há os que decididamente trazem a alegria do pensamento positivo e são, como o que este texto traduz. O que é bom, ainda que segundo mais outro provérbio: o da água mole, que, mesmo que não fure a pedra, contribui para as lavagens - do corpo e da alma, quero crer. E ficam sempre os textos refrescantes do espírito, como este - mais um – do Dr. Salles, que se agradece reconhecidamente, num país donde se pretende substituir os princípios, não se sabe bem com que fins.

VALORES DO OCIDENTE

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO,  27.08.24

 O bem é a Perfeição e a conveniência da pessoa; o mal é o seu contrário. (da Wikipédia, por adaptação).

* * *

A citação anterior – ou equivalente – pode ter sido a primeira pedra da filosofia humanista judaico-greco-latina que veio a ser de inspiração cristã e que, inequivocamente, constitui o primeiro Valor do Ocidente.

…E passaram séculos e séculos com o sol a girar em volta da Terra até que a Ciência se começou a libertar dos ditames romanos de cariz exegético e a Terra começou a girar à volta do sol. E assim se começaram a criar as condições para o Valor do respeito mútuo. Voando rapidamente sobre a História, vemos o integrismo de Mazarino a ser arquivado, a ferrugem a tomar conta da lâmina de Robespierre, vemos também os dramas horríveis provocados pelas aventuras transfronteiriças e finalmente vemos as águas acalmarem… surgindo então à superfície a famosa tríade «liberdade – igualdade – fraternidade».

LIBERDADEconceito unicitário apenas limitado pela vizinhança - «a minha liberdade termina onde começa a do próximo»; liberdade de pensamento, de expressão, de associação; pluripartidarismo; livre arbítrio e inerente responsabilização; a génese do Poder a partir das bases, as cúpulas permitidas, a decisão negociada.

IGUALDADEVersão erudita: a lei é igual para todos; Versão religiosa: todos somos iguais perante o Pai; Versão popular: todos nascemos nus.

De importância capital, o Imperativo Categórico de Kant que diz que «em todas as circunstâncias, o homem deve proceder em conformidade com os princípios da Moral Universal».

Foi preciso esperar por 1948 para que a ONU aprovasse a «Declaração Universal dos Direitos Humanos» a que só falta atribuir a condição categórica e o estatuto imperativo.

 Agosto de 2024

Henrique Salles da Fonseca

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sexta-feira, 30 de agosto de 2024

A responsabilidade das calças rasgadas


Na questão da falta de educação actual, apontando para uma permissividade educacional que me parece apenas grotesca, no seu pedantismo de uma liberdade que se pretende democrática. Pois até em senhoras pesadamente velhas já tenho visto o rasgão nos jeans da sua modernidade. Daí, do dito rasgão, a perda de maneiras, a deseducação generalizada de que trata o texto do escritor ALEXANDRE BORGES. De tal modo estranho tais jeitos representativos hodiernos, que chego a enternecer-me com a apresentação digna de grupos que por vezes aparecem nos programas musicais, vestidos com o rigor antigo, prova de uma antiga educação de respeito para com os assistentes e não de pura provocação exibicionista, de uma liberdade desrespeitosa para com o outro, apenas “respeitadora”(?) de si própria, no “livre” desprezo pelas “boas maneiras”. E, por muita “irmanação” para com os sem-abrigo ou a classe dos trabalhadores mal pagos na sociedade má pagadora, que os rasgões - por enquanto apenas nas calças - também traduzem – ou traduziram, a coisa está já tão enraizada que tal irmanação da virtude actual já passou ao esquecimento, (embora continuemos a vivê-la nos discursos pungentes da esquerda sempre contrária e sempre contrariada), tudo isso me parece apenas fruto de um fado miserabilista e sofredor, como foi, afinal, o nosso de todo o sempre, com rasgões menos hipócritas o de antigamente.

Fora de tempo

É o mesmo comportamento que observamos no supermercado, no elevador, na sala de espera do hospital, em todo o lado. Uma lenta decadência da ideia da importância do civismo.

ALEXANDRE BORGES Escritor e argumentista

OBSERVADOR, 29 ago. 2024, 00:2142

Agosto termina e, daqui e dali, metemos a vida no saco e enfiamo-nos num transporte qualquer de regresso à realidade. A estrada é o que é e há muito não inspira literatura, mas estações de comboios e aeroportos caíram, última e vertiginosamente, de lugares cinematográficos a expositores concentrados do pior que temos para apresentar enquanto espécie. Dirá que, na melhor das hipóteses, é saudosismo do cronista; na pior, superficialidade. Talvez, mas receio que não. A forma como nos apresentamos nunca é apenas a forma; para os filósofos antigos, era a forma que concedia a essência à matéria. Mas, se preferir uma reflexão mais prosaica, fiquemos por esta: se é assim que nos comportamos em público, imagine em privado.

Em tempos, as pessoas vestiam-se para viajar. De forma especial, digo. Tal como se vestiam para ir ao teatro, os católicos para a missa, os netos para o almoço de família. Havia a “roupa de domingo”, que agora lembramos com um sorriso entre a ternura e a troça. Hoje, cheirará a mofo, mas evoca tempos economicamente mais difíceis, em que era preciso poupar o casaco bom e os sapatos, e ir ao estrangeiro ainda não se tornara mais banal do que, sei lá, ao supracitado teatro.

As coisas mudam e malfeito seria se não o fizessem. Mas não precisávamos de ter caído para o ponto em que nos passeamos por estações e aeroportos com almofadas de pescoço por coleira ou cachecol (custava mesmo muito levá-las num saquinho na mão e colocá-las só quando fosse preciso?). Não se trata de termos deixado de nos preocupar com a aparência porque essa, como sabemos, nunca esteve tão em alta; trata-se de entendermos o momento da viagem como uma suspensão momentânea da realidade em que nos estamos nas tintas para o próximo. Homens e mulheres adultos viajam de fato de treino ou calção, quantas vezes a deverem muitas actualizações aos respectivos perímetros abdominais, e como quem está a duas viagens low-cost de começar a fazê-lo em pijama. Atropelam-nas filas para o check-in, o raio-x ou o embarque, bocejando, esgravatando o nariz, tossindo ou espirrando para cima do cidadão incauto mais próximo, indiferentes ao que possa pensar sobre eles já que, em princípio, ali a seguir ao Duty Free, nunca mais os verão na vida.

A única preocupação é passar à frente, não perder o respectivo comboio ou avião, nem o lugar, previamente marcado à janela ou não, onde dentro em pouco disputarão, ferozmente, com o passageiro do lado o direito à ocupação exclusiva do apoio para o braço. Durante todo o tempo, têm geralmente os olhos enfiados nos smartphones em scrolls infinitos, perdidos nas vidas que talvez gostassem de ter, seguindo pessoas com quem têm a ilusão de estarem a interagir, atrás das suas fotografias de perfil devidamente maquilhadas, filtradas, sorridentes, cheias de pretensa alegria de viver e paixão pela espécie – e sem almofadas de pescoço. Durante a viagem, hão-de fechar a persiana sem perguntar à restante fila se se importa, adormecer e babar-se para cima dela, enquanto esperam que tudo acabe depressa. No fim, correrão para tirar a mala e pelo direito inalienável a serem os primeiros a saírem da composição, furando pela multidão como jogadores de rugby famintos, atrasados para a ceia de Natal.

Exagero? Pormenor circunstancial? Espero que tenha razão. Mas, assim de repente, diria que é o mesmo comportamento que observamos no supermercado, no elevador, na sala de espera do hospital, em todo o lado. Uma lenta decadência da ideia da importância do civismo que os tempos da pandemia apenas parecem ter acelerado.

Vivemos metidos nos nossos telemóveis, fechados de headphones nos ouvidos, trabalhamos em casa, mandamos entregar a nossa comida à porta. Amanhã, pode haver outra praga, outro confinamento, uma guerra ainda mais próxima, alterações climáticas ainda mais drásticas. Então, açambarcamos. Do apoio para o braço ao papel higiénico. Tratamos de nós porque já não confiamos nas instituições para isso. Vivemos fechados na bolha das nossas redes sociais e avatares, convencidos da nossa importância no mundo ou revoltados contra ele pela terrível injustiça de tanto tardar em no-la reconhecer. Os nossos candidatos a líderes políticos são o exemplo acabado do colapso das boas maneiras: ser rude, grosseiro, ordinário, brejeiro, não só já não inspira vergonha; parece tomar-se agora por qualidade. Frontalidade, genuinidade, vir de fora do “sistema”.

Na sua superior crónica de ontem, Maria João Avillez recordava Sven-Goran Eriksson como um exemplo de decência e dignidade de um tempo que talvez já não exista. Muita gente lembrou assim o técnico sueco, um príncipe num universo, o futebol, onde a elegância é mais rara do que um pontapé-de-bicicleta. Eriksson foi mais do que isso, é claro; foi um vencedor em Portugal, Suécia, Itália, Inglaterra, e um dos técnicos que mais contribuiu para o avanço da modalidade nos anos 80 e 90. Mas a elegância bastaria.

Num tempo de tanta obsessão com o sucesso pessoal e profissional e exibição de vidas-troféu para pretensos “seguidores” que desprezaríamos na fila para o check-in do lado, não me importaria que um dia a lápide dissesse “aqui jaz um tipo que era bem-educado”. Quanto não diria da vida agora ali respeitosamente posta em sossego? Se a elegância e a gentileza são coisas de outro tempo, deixem-nos estar, orgulhosamente, fora de moda.

COMENTÁRIOS (de 42)

José B Dias: A coisa era ensinada em casa ... há já muito que as famílias se esqueceram.              Carlos Chaves: Caríssimo Alexandre Borges, excelente radiografia dos nossos tempos actuais! Felizmente ainda vamos tendo liberdade para seguirmos de acordo com os nossos valores e maneira de estar na vida, escolhendo estar “fora de moda”, ou pelo contrário entrar nesse “mainstream”, onde a nossa civilização ocidental está a mergulhar!   P.S. E o Alexandre nem sequer mencionou a forma como estamos a tratar os nossos velhos!                           Maria Paula Silva: Mais um de que gostei muito. Retrato perfeito da "modernidade". O preciosismo das cenas em aeroporto é delicioso, perfeito. Há falta de elegância e há  (muita) falta de higiene. Como epílogo basta-me "era uma boa pessoa". É muito bom estar fora de moda :) Boa noite!                    Tim do A: O artigo mostra bem a decadência da civilização ocidental e a americanização da a Europa cada vez mais parecida com o gueto africano da decadente Nova Iorque.                        José Manuel Pereira: Li com avidez. Parece a descrição perfeita da sociedade em que o egocentrismo tomou conta e a civilidade ou a falta dela, não são percebidas por falta de conhecimento. Ou então é pior quando há o conhecimento, e por vezes há, por ser pura grosseria potencialmente acompanhada por uma agenda obscura carregada de frustrações, onde o próprio perde a noção da cavalidade em que se tornou. Não se olha ao espelho, ou acha-se a si mesmo o máximo e não é, pelo contrário. Sem certezas poderia apontar algumas das razões que acredito estarem na origem desta aparente escolha individual ou colectiva pelo grotesco, talvez se possam resumir na falta de valores, mas também não sei se é causa ou consequência. Agora, muito provavelmente, mais uma vez, tal como sempre, este gritante egocentrismo e falta de educação individual e colectiva trará as piores consequências...                   Luís CR Cabral: Parabéns pela excelente crónica e fique descansado que ainda há muita gente bem- educada e que espero nunca se deixe abandalhar pela espero que pequena percentagem de grunhos que dão mais nas vistas.

Fanatismo ideológico e ideário revolucionário.  

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Eutanásia: o que é isso?


Tem razão a advogada TERESA DE MELO RIBEIRO, nessa questão da hipocrisia do PS e seguidores, para lançar o odioso de uma doutrina que a muitos PSs. e Cia. repugnará, como aos mais, no fundo respeitadores das doutrinas anti assassínio, em que mais ou menos todos comungamos, mas que alguns pretendem assumir sem o anti, como exemplo de vanguardismo modernizante, que só nos pode elevar na opinião do mundo. Daí, a demora do PS em dar andamento à lei, para se isentar de culpas, perante o povo votante, mas a insistência pérfida da sua aplicação por outrem para provável redução de votos eleitorais, no dito outrem.

A hipocrisia do PS em relação à lei da eutanásia

Não me recordo de alguma vez deputados do PS terem questionado o anterior Ministro da Saúde sobre o “atraso” na regulamentação da lei da eutanásia. Toda esta indignação mais parece hipocrisia.

TERESA DE MELO RIBEIRO Advogada, Mandatária da Iniciativa Popular de Referendo #simavida sobre a (des)Penalização da Morte a Pedido

OBSERVADOR, 29 ago. 2024, 00:2017

 “É preciso ter lata” é uma expressão que costuma ser comummente usada para descrever comportamentos dominados por ausência de vergonha, atrevimento, descaramento, ousadia, hipocrisia.

Nos artigos de opinião que escrevo, tento não utilizar expressões deste género, mas desta vez não resisto. É que é preciso ter mesmo muita lata para o PS (através de deputados) vir agora criticar o Governo da AD por ainda não ter aprovado a regulamentação da lei da eutanásia (cuja publicação é condição necessária para a entrada em vigor da lei), quando o anterior Governo em 10 meses não aprovou a referida regulamentação e quando os Governos socialistas de António Costa não só demoraram por vezes anos a aprovar várias regulamentações de leis, como inclusive deixaram por regulamentar dezenas de leis, algumas delas pendentes de regulamentação há muitos anos.

Importa, assim, recordar alguns dos antecedentes desta (totalmente infundada e ilegítima) crítica, só compreensível por ser feita em plena “estação ridícula” (tradução livre de “Silly Season”).

Antes, porém, não quero deixar de fazer uma declaração de interesses: em minha opinião, a lei da eutanásia é uma lei contra-natura, iníqua, ilegítima, ilícita, antiética, imoral e ostensivamente inconstitucional, um verdadeiro atentado à dignidade da pessoa humana, ao Estado de Direito e ao dever e responsabilidade do Estado e da sociedade em cuidarem das pessoas mais frágeis, vulneráveis e dependentes. Nessa medida, defendo que esta lei deveria ser revogada o quanto antes pela Assembleia da República.

Esta minha opinião não me impede, no entanto, de ter a objectividade necessária para denunciar e criticar a recente hipocrisia do PS em relação a esta lei, veiculada por alguns dos seus deputados. Vejamos porquê.

Como se sabe, depois de ter sido aprovada em 12 de Maio, no dia 25 de Maio foi publicada em Diário da República a Lei n.º 22/2023, lei que “Regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal”, ou dito de forma mais correcta e menos eufemística, a lei que despenaliza, em certas situações, os crimes de homicídio a pedido da vítima, e ajuda ao suicídio, e que legaliza o procedimento administrativo destinado à concretização da morte medicamente provocada (vulgo “lei da eutanásia”).

Estabeleceu o legislador que a referida lei só entra em vigor 30 dias após a publicação da respectiva regulamentação (cfr. art. 34.º), tendo estabelecido que o Governo aprova, no prazo de 90 dias (úteis) após a publicação da lei, a respectiva regulamentação (cfr. art. 31.º).

Importa ter presente que, sem prejuízo de a eficácia jurídica das leis (entre outros actos) depender da sua publicação no Diário da República, sob pena de ineficácia jurídica, nem sempre a mera publicação de uma lei acarreta a sua imediata entrada em vigor e/ou a produção (total ou parcial) dos seus efeitos, tendo assim que se distinguir entre vigência e eficácia (e exequibilidade) da lei.

Com efeito, entre a publicação e o início da vigência de uma lei decorre o tempo que a própria lei fixar, começando as leis a vigorar (por regra) no dia nelas fixado ou, na falta de fixação, no 5.º dia após a sua publicação (a denominada «vacatio legi»).

Mas, mesmo a entrada em vigor de uma lei pode não acarretar, por si só, a imediata produção (total ou parcial) dos seus efeitos: por um lado, o legislador pode fixar uma data para que tal aconteça; e, por outro lado, a eficácia (e exequibilidade) dos preceitos da lei (de todos ou de alguns) pode estar ou ficar dependente da aprovação de regulamentação por parte de outros órgãos do Estado, nomeadamente o Governo.

Sucede que, no caso da lei da eutanásia, o legislador não se limitou a tornar a eficácia da lei dependente da aprovação de regulamentação para dar exequibilidade à mesma. O legislador foi muito mais exigente. O legislador estabeleceu que a própria vigência e entrada em vigor da lei ficava dependente da publicação da respectiva regulamentação a aprovar pelo Governo. E só decorridos 30 dias após essa publicação é que a lei entrará em vigor.

Ora, esta opção, que foi (livremente) seguida pelo legislador, não é isenta de críticas ou, pelo menos, de dúvidas quanto à sua constitucionalidade.

Por vezes as leis, ao invés de fixarem uma data certa, estabelecem que a sua entrada em vigor fica dependente da verificação de um evento futuro, como seja a publicação doutra lei.

A pergunta que se impõe fazer é se uma lei pode subordinar a sua entrada em vigor à publicação da respectiva regulamentação a aprovar pelo Governo, sem especificar qual a natureza do acto de regulamentação, se um decreto-lei ou um regulamento? É essa subordinação conforme com a Constituição?

Esta questão afigura-se problemática, se tivermos presente que, nos termos previstos no art. 112.º, n.º 5 da Constituição, “Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”.

Ou seja, por força deste princípio da reserva de lei, nenhuma lei pode conferir a actos de outra natureza – como é o caso, por exemplo, dos regulamentos do Governo, aprovados no exercício das suas competências administrativas – o poder de, com eficácia externa, suspender qualquer dos seus preceitos (para além de os interpretar, integrar ou modificar).

A lei da eutanásia pode, assim, padecer de mais uma inconstitucionalidade, a acrescer a todas as outras inconstitucionalidades de que padece, pelo facto de o legislador ter tornado a sua entrada em vigor dependente da publicação da respectiva regulamentação sem especificar que esta teria de assumir a forma de lei, no caso decreto-lei. Mas os problemas não se ficam por aqui.

Se atentarmos que a lei da eutanásia está repleta de normas contraditórias, imprecisas, vagas e incompletas, não apenas no que se refere aos requisitos estabelecidos na lei, mas ao próprio procedimento administrativo (de morte) por ela instituído, até se conseguirá perceber por que razão o legislador tornou a entrada em vigor da lei dependente da publicação da respectiva regulamentação a aprovar pelo Governo, sob pena de criar um (ainda maior) clima de incerteza jurídica e de insegurança pessoal e social.

Mas, ao fazê-lo, o legislador (recorde-se, no caso, a maioria dos deputados da esquerda e extrema-esquerda e a IL, obviamente) criou um novo problema de conformidade constitucional.

É que, ao contrário do que os autores da lei querem fazer crer, a regulamentação da lei da eutanásia não se cingirá a aprovar o modelo do “registo clínico especial (RCE)” de cada “doente” e o modelo de relatório final a elaborar pelo “médico orientador” no prazo de 15 dias úteis após a morte do “doente”.

Através da regulamentação da lei, o Governo terá a missão impossível de tentar “resolver” todas as contradições, imprecisões, deficiências, insuficiências e incompletudes da lei, em particular abordando os múltiplos aspectos do procedimento administrativo que o legislador, propositada ou inadvertidamente, por incapacidade ou incompetência, deixou para a regulamentação da lei.

Isto partindo do princípio, claro está, de que o Governo quererá garantir a existência de um procedimento que assegure o mínimo de rigor, cautela, certeza e segurança na aplicação da lei aos casos e condições que ela própria prevê.

Assim sendo, essa regulamentação incluirá – diria, eu, inevitavelmente -, normas que vão interpretar, integrar ou modificar vários preceitos da lei da eutanásia. Ora, como vimos, o princípio da reserva da lei proíbe que uma lei preveja a faculdade de um regulamento dispor do seu conteúdo, ou seja, proíbe que uma lei remeta para regulamento a sua interpretação, integração, modificação, para além da sua suspensão ou revogação.

Mas o problema constitucional poderá não desaparecer caso a regulamentação da lei seja feita por decreto-lei, uma vez que a matéria dos direitos, liberdades e garantias constitui matéria da exclusiva competência legislativa da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo (cfr. art. 165.º, n.º 1, al. b) da Constituição). Recorde-se, no entanto, que a autorização ao Governo tem de ser feita através de uma específica lei de autorização legislativa, lei essa que deve definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização (cfr. art. 165.º, n.º 2), o que não é manifestamente o caso da lei da eutanásia.

Em suma, e em face do que ficou dito, esta controversa questão constitucional só seria ou será ultrapassada se a regulamentação da lei da eutanásia vier a constar de uma proposta de lei a apresentar pelo Governo à Assembleia da República.

Seja como for, as dificuldades inerentes à elaboração da regulamentação da lei da eutanásia foram expressamente reconhecidas e afirmadas pelo anterior Ministro da Saúde, conforme foi aqui noticiado (24.11.2023):

«Já esta sexta-feira, o ministro da Saúde justificou a decisão de adiar a regulamentação da lei com a “complexidade” do processo. “A regulamentação não é isenta de complexidade nem da necessidade de audições e de debate”, explicou Manuel Pizarro, à Rádio Observador, à margem do Congresso da Ordem dos Médicos, que está a decorrer em Gaia. “Seria um erro regulamentar à pressa uma lei, que, sendo muito importante, é também muito delicada”, sublinhou o ministro da Saúde, confirmando que “o processo que vai ter mesmo de esperar pelo próximo ciclo político”».

Foi, assim, o anterior Governo que decidiu não aprovar a regulamentação da lei da eutanásia, quando o podia ter feito, mesmo depois de entrar em período de gestão.

Refira-se que só no mês de Novembro foram aprovados pelo Conselho de Ministros 41 decretos-lei, para além de 14 Resoluções, entre muitos outros diplomas, actos e autorizações de realização de despesas.

E mesmo depois de se ter transformado num Governo de gestão, entre os meses de Dezembro de 2023 e Março de 2024, foram aprovados em Conselho de Ministros dezenas de decretos-lei, dezenas de resoluções, entre muitos outros actos.

Ora, não me recordo de alguma vez deputados do PS terem questionado o anterior Ministro da Saúde sobre o “atraso” na regulamentação da lei da eutanásia, nem de terem criticado o anterior Governo por deixar essa regulamentação, dada sua complexidade e sensibilidade, para o próximo Governo.

Mudou o Governo e eis que decorridos nem três meses desde a tomada de posse do novo Governo da AD, alguns deputados do PS decidiram (por requerimento datado de 19.06.2024) questionar o Governo, através da Ministra da Saúde, sobre a regulamentação da lei. Em resposta dada pelo gabinete da Ministra da Saúde (datada de 08.08.2024), foi dito que “a regulamentação da Lei n.º 22/2023 encontra-se atualmente em fase de elaboração”.

No entanto, uns dias mais tarde, segundo foi aqui noticiado, e após o CDS-PP “ter questionado o ministro dos Assuntos Parlamentares se o Executivo mudou de posição sobre esperar por uma decisão do Tribunal Constitucional antes de avançar com a regulamentação da lei”, o Ministro da Presidência, António Leitão Amaro, afirmou que “O Governo não legislou e não tem em circuito legislativo nenhuma iniciativa à morte medicamente assistida“; tendo reforçado «que “não existe no sistema informático do processo legislativo do Governo” qualquer diploma sobre a eutanásia».

Nesse mesmo dia (22.08.2024), e conforme foi aqui noticiado, deputados do PS, BE, PAN e IL (sim, da IL) insurgiram-se contra estas declarações do Ministro da Presidência. Para efeitos do presente artigo, atente-se apenas naquilo que foi dito por uma deputada do PS:

«Em declarações ao Observador, a deputada socialista Isabel Moreira corrige Leitão Amaro: “Não há processo legislativo nenhum em curso. O processo legislativo já terminou e a lei foi aprovada”, sublinha a constitucionalista.

“A única coisa que há a fazer é cumprir e regulamentar a lei, e foi isso que o Governo nos respondeu, que a lei está a ser regulamentada. O que não é muito difícil, uma vez que a lei é muito pormenorizada. Portanto, tem de cumprir a lei e respondeu-nos em conformidade”, recorda, numa referência à resposta que veio por escrito do Ministério da Saúde. Depois, acrescenta: “Não consigo compreender o alcance de declarações que venham noutro sentido. Num Estado de Direito cumpre-se a lei”».

A propósito do desagrado do CDS, a deputada socialista vai mais longe. “Fico surpreendida com que o CDS esteja confortável com uma não regulamentação, ou seja, com um convite à interrupção do Estado de Direito”. E faz a pergunta ao contrário, questionando os democratas-cristãos se acreditariam que um próximo Governo poderia “simplesmente não fazer nada” quanto a uma lei que fosse aprovada nesta conjuntura. “É um novo paradigma do direito constitucional. Fico perplexa”».

Quanto às afirmações de que “Não há processo legislativo nenhum em curso. O processo legislativo já terminou e a lei foi aprovada”, esquece-se (convenientemente) a senhora deputada de que foi o legislador quem tornou dependente a entrada em vigor da lei da eutanásia da publicação da respectiva regulamentação. Ao tê-lo feito, é evidente que o processo legislativo não terminou, pois não só a entrada em vigor da referida lei, como o início da produção dos seus efeitos, ficou dependente da publicação da respectiva regulamentação.

Ora, sendo a senhora deputada um dos autores, se não mesmo o principal autor, da lei da eutanásia, só se poderá queixar de si própria.

É verdade que provavelmente a senhora deputada não antecipava que a legislatura anterior não iria durar quatro anos. Mas tendo tal acontecido, então a senhora deputada apenas se poderá queixar junto de António Costa, por este ter apresentado, por decisão própria, a sua demissão.

Quanto à alegada (mas totalmente errónea e infundada) simplicidade da regulamentação da lei da eutanásia, a senhora deputada deveria antes queixar-se junto do seu partido, por o anterior Governo não ter aprovado a referida regulamentação, regulamentação, essa, considerada muito complexa pelo anterior Ministro da Saúde.

Por último, se num “Num Estado de Direito cumpre-se a lei” e se uma não regulamentação constitui um “convite à interrupção do Estado de Direito”, então tenho de confessar ser eu quem fica perplexa. E fico perplexa não só com o tempo que os Governos socialistas, em particular entre os anos de 2015 e 2024, demoraram a regulamentar um conjunto muito significativo de leis, como pela quantidade de leis que o anterior Governo deixou por regulamentar.

Eu bem me parecia que nos últimos anos Portugal não foi um verdadeiro Estado de Direito.

Entre tantos e tantos casos, refiro apenas o exemplo da regulamentação da lei da gestação de substituição (vulgo “barrigas de aluguer”), prevista na Lei nº 90/2021, de 16.12 (lei que alterou o regime jurídico aplicável à gestação de substituição, alterando a Lei nº 32/2006, de 26.07, que regula a procriação medicamente assistida).

Recordo que as disposições desta lei a regulamentar pelo Governo entraram em vigor no dia 01.01.2022 e que, nos termos previstos na lei, o Governo tinha 30 dias, após a publicação da referida lei, para aprovar a respectiva regulamentação. Ora, o decreto-lei que continha essa regulamentação apenas foi aprovado pelo Conselho de Ministros quase dois anos mais tarde, mais precisamente no dia 16.11.2023, tendo sido, no entanto, vetado (oportuna e justificadamente, em minha opinião) pelo Presidente da República a 13.01.2024 e devolvido ao Governo sem promulgação.

Quanto às demais dezenas de leis que o anterior Governo deixou por regulamentar (não cumprindo os prazos fixados pelo legislador para o efeito) e que, apesar de aprovadas e publicadas, ainda requerem regulamentação para poderem ser integralmente aplicadas, não me recordo de deputados do PS terem questionado o anterior Governo sobre essa falta de regulamentação, nem de o terem criticado por deixar essa regulamentação para o próximo governo.

Na página oficial da Assembleia da República, estão disponíveis para consulta, no âmbito do “Relatório de progresso de escrutínio da actividade do Governo” da XV Legislatura, vários relatórios elaborados pelos serviços da AR sobre esta matéria, como seja o “Relatório de​ progresso sobre a aprovação e entrada em vigor das leis e da consequente regulamentação” e o “Relatório sobre as l​eis parcialmente regulamentadas e não regulamentadas”, no período entre 05.04.2002 e 25.03.2024, em anexo.

Em suma, toda esta indignação por causa das declarações do Ministro da Presidência acerca da regulamentação da lei da eutanásia não parece séria, parece hipocrisia. Sempre ouvi dizer que “Não basta ser sério, é preciso parecer”. Infelizmente, há muito tempo que muitos políticos deixaram de se preocupar sequer em parecer. Claro que existem excepções. Mas estas não infirmam a regra, antes a confirmam.

Para terminar, diria que concordo com a afirmação de que num Estado de Direito cumpre-se a lei. Mas a primeira lei que tem de ser cumprida é a lei constitucional, sob pena, aí sim, de ser interrompido o Estado de Direito. Nunca é demais recordar que o Estado está subordinado à Constituição e que a validade das leis e dos demais actos do Estado depende da sua conformidade com a Constituição.

Neste momento, encontram-se pendentes de apreciação e decisão, por parte do Tribunal Constitucional (TC), vários pedidos de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade de muitas das normas da Lei nº 22/2023: um, foi apresentado em 02.11,2023 por 56 dos (então) deputados do PSD, no qual foi suscitada a inconstitucionalidade da maioria das normas da lei da eutanásia (cerda de 20); um outro, foi apresentado em 12.03.2024 pela Provedora de Justiça.

Se o TC vier a declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de algumas ou de muitas das normas desta lei, como eu espero, então razões de certeza e segurança jurídica, entre tantas outras, aconselham a que a regulamentação da lei fique a aguardar a decisão do TC. Pelo menos neste caso, o actual Governo, ao contrário do anterior, tem razões (que ainda por cima são válidas e legítimas) para não proceder à aprovação da regulamentação desta lei.

Durante a campanha eleitoral para as últimas eleições legislativas, o presidente do PSD, Luís Montenegro, disse, quanto à lei da eutanásia, que iria aguardar a pronúncia do TC, por razões de segurança jurídica.

Recordo que, no Programa Eleitoral da AD 2024, era dito que, sem prejuízo de todas as medidas e políticas propostas, o seu “eixo mais relevante são as políticas sociais e a promoção do bem-estar das populações. Queremos uma sociedade mais justa, mais solidária e mais humana, que respeite a dignidade da pessoa humana, que proteja os mais vulneráveis …”.

Por sua vez, no Programa do actual Governo, é referido que o mesmo assenta em seis pilares estratégicos, que, segundo é dito, orientam a sua acção nas diversas áreas de governação: Um desses pilares é o de “Um País mais justo e solidário, que combate as desigualdades sociais e territoriais, que protege os mais vulneráveis …”.

Uma vez que, infelizmente, não foi assumido pela AD o expresso compromisso de propor a revogação da lei da eutanásia, espero que, pelo menos, o Primeiro-Ministro, Luis Montenegro, mantenha aquilo que disse em campanha eleitoral, pois quero crer que, para si, palavra dada é mesmo palavra honrada.

EUTANÁSIA       SAÚDE      PS       POLÍTICA

COMENTÁRIOS (de 17)

Ediberto Abreu: Deixei de ler quando esta senhora exprimiu um chorrilho de asneiras sobre a lei da eutanásia é impressionante quando a lliberdade da pessoa é subtraído por outra que julga ter o poder fisico e moral da razão (o que em meu entender a perde de imediato). O PS realmente não tem vergonha não apenas porque não resolveu de vez este problema, mas também porque o deixou ficar nas mãos de pessoas deste quilate. Apenas me resta acrescentar que votei sempre no PSD, mas se ele rejeitar esta lei, nunca mais verá o meu voto nem o dos meus.                  bento guerra: A autora esquece algumas coisas. António Costa demitiu-se em 11 de Novembro e daí em diante, começava a nova campanha eleitoral. Ninguém queria aprofundar um tema sensível, tanto mais que, outra omissão, Marcelo manifestava a sua rejeição ao que se chama "lei da eutanásia" porque ele é bum católico de beija-mão. Depois, a ida dos inúteis do CDS , por calculismo do  manhoso do PSD, deu ao bando a oportunidade de terem uma bandeira que neutraliza a lei aprovada. Detesto a Isabel Moreira, mas tenho de louvar a sua militância nalguns temas modernos               Carlos Chaves: Caríssima Teresa de Melo Ribeiro, qual é a surpresa? Um partido que conseguiu convencer a maioria dos eleitores, da comunicação social, dos opinadores, etc… que foi o governo da Paf que trouxe a troika e a austeridade a Portugal, e não o ex-PM Sócrates e seu número dois António Costa, não tem lata, tem mesmo um ferro velho inteiro! O problema não é inventar verdades alternativas (como agora se diz), o problema é quem as veicula e quem acredita nelas! Quanto à palavra de Montenegro, manda a prudência, esperar para ver!   P.S. Concordo em absoluto com a sua opinião que deixou neste artigo, e agradeço a detalhada explicação que me ajudou a melhor compreender todo este processo. …              Maria Nunes: O PS não tem sentido de estado. São uns hipócritas e não têm vergonha na cara. Hoje dizem uma coisa e amanhã o seu contrário. Só lhes interessa o partido e não o país.                   Ricardo Pinheiro Alves: A lei da eutanásia é um perigo para a civilização. O que se passa na Holanda, na Bélgica ou no Canadá deveria fazer imperar o  bom senso. Infelizmente, onde deveria haver bom senso só há fanatismo ideológico e ideário revolucionário.