Que bem conhecíamos, por tradição - do
relato de Salles da Fonseca: Landim, Inchope, Maxixe, Vilanculos – já
isso nos tornou felizes: nomes sonantes, chiantes, para a nossa estranheza
linguística, de brandura fonética mais doce, talvez, e que de repente nos
surgia, num relato inesperado, a reviver espaços das nossas referências
primeiras. É certo que nunca percorremos distâncias tão longas, os nossos
passeios da infância confinados aos piqueniques em Marracuene, Namaacha quase
sempre, com a sua cachoeira, no carro dos nossos primos Celeste e Camilo, mais
tarde o Bilene e o Xaixai, embora o meu pai, por dever de
ofício, estendesse os seus conhecimentos toponímicos por outras andanças - Ressano Garcia, Quelimane, a Ilha de
Moçambique, além de Macau, onde
fez a tropa e estudou, terras de que trouxe conhecimentos e livros que o seu
isolamento longe da família lhe proporcionava, entre os quais o Diário de Miguel Torga e livros de
Aquilino. Não, não saímos das zonas limítrofes de Lourenço Marques, quando muito, fomos à Catembe e à Ponta do Oiro,
uma praia inçada de garrafinhas azuis verdadeiramente pecaminosas, no veneno
com que se abraçavam às pernas incautas, naquele mar Índico tão limpidamente
traiçoeiro.
Recordações nos trouxe Salles da
Fonseca, de um país dilatado e rico, é certo, mas mal explorado ainda, que a
longa estrada, cuja foto acompanha o descritivo, traduz melhor as melhorias trazidas
aquando da guerra, tal como o foi a barragem de Cahora Bassa do “tarde piaste”
da nossa política reticente e receosa, feita em regime de aproveitamento de
riquezas em favor da Metrópole, mais do que de desenvolvimento próprio, que se
deveu, todavia, a tantos desses colonos esforçados, herdeiros dos corajosos
mareantes que foram gradualmente estendendo a visão do mundo pelos vários
continentes. Mas enquanto os outros continentes foram obtendo nações
independentes dessas terras descobertas – nas Américas, na Austrália -
favorecendo, naturalmente, os povos europeus que as descobriram, e não os seus
naturais, o contrário se exigiu depois, na questão da África das primeiras
descobertas, com direito à sua independência, e ao retorno, quase, a tribalismos ancestrais
que espalharam miséria e terror, como se tem visto.
Eis um comentário extenso e menos erudito,
mas molhado de lágrimas, que estes passeios descritos por SF – certamente dos poucos portugueses que mantêm viva ainda a chama
da tradição antiga, de respeito nacionalista – provocaram, numa pequena hora de
isolamento, neste “Cantinho da Márcia”, esta, uma senhora brasileira dona da
esplanada onde me acolho, em fuga dos trabalhos caseiros, já mais ou menos
cumpridos, porque de exigência parcimoniosa, na casa vazia do bulício de
outrora.
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 24.07.19
Inchope,
a localidade mais próxima da Gorongosa e donde sai a estrada nova com destino a
Maputo que então se chamava Lourenço Marques. Foi para lá que nos dirigimos à
procura de alojamento. Não foi fácil mas conseguimos o que sempre tivemos ao
longo de toda a viagem, uma cama para cada um. E logo nos preveniram que se nos
dirigíamos para Sul pela estrada nova (e que ainda não tinha sido inaugurada),
que atestássemos o depósito pois seriam 300 quilómetros sem um único posto de
abastecimento. E que levássemos farnel pois ainda não devia haver cantinas. E
assim foi que na manhã seguinte atestámos o depósito do nosso «herói» e nos
precavemos a nós próprios com alguns comes e bebes.
Seriam
umas 7 da manhã quando nos pusemos a andar. Já não era assim tão cedo como o
homem dos horários gostava mas foi o que se arranjou. E porquê aquela «mania»
das ceduras? Porque quanto mais tarde, mais quente e tudo o que consigamos
percorrer pela fresca da manhã, melhor. Então, com estrada em construção,
haveríamos de ter frentes de obra pelo caminho, não haveríamos de ficar tão
isolados como se a estrada já estivesse concluída e entregue ao dono. E assim
foi. Não com tantas frentes de obra como teríamos gostado mas, mesmo assim, com
umas quantas presenças humanas algo espaçadas. A estrada já estava toda
terraplanada e na maior parte do percurso até já tinha o piso quase todo
faltando apenas o alcatrão. E, afinal, em zonas que antigamente deviam estar no
meio de nenhures, encontrámos uma ou outra cantina cujos proprietários nem
deviam querer acreditar na sorte de lhes terem posto uma estrada à porta. Deve
ter sido a diferença de saírem da pré-história para o pleno século XX sem que
os obrigassem sequer a fazer algum requerimento em papel azul de 25 linhas.
Curvas? Não as vimos. Uma quase linha recta com enormes extensões apenas
rodeadas de capim virgem de há um ror de secas, chuvas e cacimbas a que se
seguiam quilómetros de floresta compacta e impenetrável. E foi neste ínterim
que apareceram as tais cantinas. Como tinham ido ali parar? A que propósito?
Mistérios que não tive tempo de estudar mas que me fizeram admitir que deve ser
preciso estar-se muito desesperado da vida para se decidir mudar para um sítio
daqueles. Terra para arrependidos e penitentes, só pode.
Seria
pelas 10 da manhã quando chegámos ao rio Save e eis que nos coube fazer a
pré-inauguração da ponte que alguém nos disse ser projecto do Professor Edgar
Cardoso. Também ainda lhe faltava a última camada de alcatrão e deve ter sido
por isso que não nos cobraram portagem. Na verdade, as cabines dos portageiros
ainda não estavam colocadas e nem sequer imagino se o pessoal já estaria
recrutado. Obviamente, a obra ainda não estava entregue ao dono.
Passada
a ponte, pusemos rodas na região dos landins, o sul do Save. Daquilo que
consegui ver, Vila Franca do Save confundiu-se-me com o estaleiro da obra da
ponte e como não voltei a passar por ali, fiquei-me pela impressão que trazia
da outra margem: região pobre e com muito trabalho à espera dela.
Terra
dos landins… «Landins» é como nós, portugueses, chamávamos a todos os povos a
sul do rio Save. Ainda não estudei a etimologia da expressão mas talvez um dia
investigue como ela nasceu. Agora, tenho mais que fazer pelo que, se um leitor
me quiser ajudar, esteja à sua vontade.
Lembram-se
os Caros Leitores do temor infligido pelas «tropas landins» nas partes do nosso
Oriente, nomeadamente na Índia e em Macau? É que estes povos daqui têm uma
estatura relativamente alta e quando se sentem espezinhados por pequenotes, são
danados para a chapada. Eis por que nós os recrutávamos como tropas de elite e
os enviávamos para Goa, etc. Também por isso mesmo, o aparecimento de etnias
muito escuras naquelas paragens orientais onde o habitual é mais pardo que preto.
Mas, pelos vistos, os landins não se fizeram rogados e tanto indostânicas como
cataias se deixaram embevecer por estes grandalhões.
E
agora, com outros tantos quilómetros pela frente até à Maxixe quantos os já
feitos hoje, que fazemos? Vamos até Vilanculos e lá dormimos. São só mais 141
quilómetros, um saltinho.
Amanhã
há mais.
Julho
de 2019
Henrique
Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS
Adriano Lima, 24.07.2019: Pelos vistos, a massa de casca de árvore a tapar o
buraco do cárter do motor do Fiat está para durar, se calhar em condições até
de dispensar uma intervenção mecânica supostamente mais definitiva. Sim, os
landins deixaram fama, exactamente pelas características físicas aqui
referidas. Mas julgo que tinham outro predicado que os predispunha para o
serviço militar: adaptavam-se bem à disciplina e ordem militar. Puxando pela
memória, não me recordo se entre os 50 soldados moçambicanos que reforçaram a
minha companhia no Niassa - Grupo de Intervenção 105 - havia algum landim. Eles
eram de várias regiões de Moçambique, sobretudo do Centro e do Sul.
Henrique Salles da Fonseca, 24.07.2019:
Acabei agora de pôr em dia os três «por essa picada
além...» que me faltavam. Estou a gostar bastante de acompanhar esta crónica!
Tomás Bernardo
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