quinta-feira, 25 de julho de 2019

Ainda que fosse só pelos nomes



Que bem conhecíamos, por tradição - do relato de Salles da Fonseca: Landim, Inchope, Maxixe, Vilanculos – já isso nos tornou felizes: nomes sonantes, chiantes, para a nossa estranheza linguística, de brandura fonética mais doce, talvez, e que de repente nos surgia, num relato inesperado, a reviver espaços das nossas referências primeiras. É certo que nunca percorremos distâncias tão longas, os nossos passeios da infância confinados aos piqueniques em Marracuene, Namaacha quase sempre, com a sua cachoeira, no carro dos nossos primos Celeste e Camilo, mais tarde o Bilene e o Xaixai, embora o meu pai, por dever de ofício, estendesse os seus conhecimentos toponímicos por outras andanças - Ressano Garcia, Quelimane, a Ilha de Moçambique, além de Macau, onde fez a tropa e estudou, terras de que trouxe conhecimentos e livros que o seu isolamento longe da família lhe proporcionava, entre os quais o Diário de Miguel Torga e livros de Aquilino. Não, não saímos das zonas limítrofes de Lourenço Marques, quando muito, fomos à Catembe e à Ponta do Oiro, uma praia inçada de garrafinhas azuis verdadeiramente pecaminosas, no veneno com que se abraçavam às pernas incautas, naquele mar Índico tão limpidamente traiçoeiro.
Recordações nos trouxe Salles da Fonseca, de um país dilatado e rico, é certo, mas mal explorado ainda, que a longa estrada, cuja foto acompanha o descritivo, traduz melhor as melhorias trazidas aquando da guerra, tal como o foi a barragem de Cahora Bassa do “tarde piaste” da nossa política reticente e receosa, feita em regime de aproveitamento de riquezas em favor da Metrópole, mais do que de desenvolvimento próprio, que se deveu, todavia, a tantos desses colonos esforçados, herdeiros dos corajosos mareantes que foram gradualmente estendendo a visão do mundo pelos vários continentes. Mas enquanto os outros continentes foram obtendo nações independentes dessas terras descobertas – nas Américas, na Austrália - favorecendo, naturalmente, os povos europeus que as descobriram, e não os seus naturais, o contrário se exigiu depois, na questão da África das primeiras descobertas, com direito à sua independência, e ao retorno, quase, a tribalismos ancestrais que espalharam miséria e terror, como se tem visto.
Eis um comentário extenso e menos erudito, mas molhado de lágrimas, que estes passeios descritos por SF – certamente dos poucos portugueses que mantêm viva ainda a chama da tradição antiga, de respeito nacionalista – provocaram, numa pequena hora de isolamento, neste “Cantinho da Márcia”, esta, uma senhora brasileira dona da esplanada onde me acolho, em fuga dos trabalhos caseiros, já mais ou menos cumpridos, porque de exigência parcimoniosa, na casa vazia do bulício de outrora.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 24.07.19
Inchope, a localidade mais próxima da Gorongosa e donde sai a estrada nova com destino a Maputo que então se chamava Lourenço Marques. Foi para lá que nos dirigimos à procura de alojamento. Não foi fácil mas conseguimos o que sempre tivemos ao longo de toda a viagem, uma cama para cada um. E logo nos preveniram que se nos dirigíamos para Sul pela estrada nova (e que ainda não tinha sido inaugurada), que atestássemos o depósito pois seriam 300 quilómetros sem um único posto de abastecimento. E que levássemos farnel pois ainda não devia haver cantinas. E assim foi que na manhã seguinte atestámos o depósito do nosso «herói» e nos precavemos a nós próprios com alguns comes e bebes.
Seriam umas 7 da manhã quando nos pusemos a andar. Já não era assim tão cedo como o homem dos horários gostava mas foi o que se arranjou. E porquê aquela «mania» das ceduras? Porque quanto mais tarde, mais quente e tudo o que consigamos percorrer pela fresca da manhã, melhor. Então, com estrada em construção, haveríamos de ter frentes de obra pelo caminho, não haveríamos de ficar tão isolados como se a estrada já estivesse concluída e entregue ao dono. E assim foi. Não com tantas frentes de obra como teríamos gostado mas, mesmo assim, com umas quantas presenças humanas algo espaçadas. A estrada já estava toda terraplanada e na maior parte do percurso até já tinha o piso quase todo faltando apenas o alcatrão. E, afinal, em zonas que antigamente deviam estar no meio de nenhures, encontrámos uma ou outra cantina cujos proprietários nem deviam querer acreditar na sorte de lhes terem posto uma estrada à porta. Deve ter sido a diferença de saírem da pré-história para o pleno século XX sem que os obrigassem sequer a fazer algum requerimento em papel azul de 25 linhas. Curvas? Não as vimos. Uma quase linha recta com enormes extensões apenas rodeadas de capim virgem de há um ror de secas, chuvas e cacimbas a que se seguiam quilómetros de floresta compacta e impenetrável. E foi neste ínterim que apareceram as tais cantinas. Como tinham ido ali parar? A que propósito? Mistérios que não tive tempo de estudar mas que me fizeram admitir que deve ser preciso estar-se muito desesperado da vida para se decidir mudar para um sítio daqueles. Terra para arrependidos e penitentes, só pode.
Seria pelas 10 da manhã quando chegámos ao rio Save e eis que nos coube fazer a pré-inauguração da ponte que alguém nos disse ser projecto do Professor Edgar Cardoso. Também ainda lhe faltava a última camada de alcatrão e deve ter sido por isso que não nos cobraram portagem. Na verdade, as cabines dos portageiros ainda não estavam colocadas e nem sequer imagino se o pessoal já estaria recrutado. Obviamente, a obra ainda não estava entregue ao dono.
Passada a ponte, pusemos rodas na região dos landins, o sul do Save. Daquilo que consegui ver, Vila Franca do Save confundiu-se-me com o estaleiro da obra da ponte e como não voltei a passar por ali, fiquei-me pela impressão que trazia da outra margem: região pobre e com muito trabalho à espera dela.
Terra dos landins… «Landins» é como nós, portugueses, chamávamos a todos os povos a sul do rio Save. Ainda não estudei a etimologia da expressão mas talvez um dia investigue como ela nasceu. Agora, tenho mais que fazer pelo que, se um leitor me quiser ajudar, esteja à sua vontade.
Lembram-se os Caros Leitores do temor infligido pelas «tropas landins» nas partes do nosso Oriente, nomeadamente na Índia e em Macau? É que estes povos daqui têm uma estatura relativamente alta e quando se sentem espezinhados por pequenotes, são danados para a chapada. Eis por que nós os recrutávamos como tropas de elite e os enviávamos para Goa, etc. Também por isso mesmo, o aparecimento de etnias muito escuras naquelas paragens orientais onde o habitual é mais pardo que preto. Mas, pelos vistos, os landins não se fizeram rogados e tanto indostânicas como cataias se deixaram embevecer por estes grandalhões.
E agora, com outros tantos quilómetros pela frente até à Maxixe quantos os já feitos hoje, que fazemos? Vamos até Vilanculos e lá dormimos. São só mais 141 quilómetros, um saltinho.
Amanhã há mais.
Julho de 2019
Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS
Adriano Lima, 24.07.2019: Pelos vistos, a massa de casca de árvore a tapar o buraco do cárter do motor do Fiat está para durar, se calhar em condições até de dispensar uma intervenção mecânica supostamente mais definitiva. Sim, os landins deixaram fama, exactamente pelas características físicas aqui referidas. Mas julgo que tinham outro predicado que os predispunha para o serviço militar: adaptavam-se bem à disciplina e ordem militar. Puxando pela memória, não me recordo se entre os 50 soldados moçambicanos que reforçaram a minha companhia no Niassa - Grupo de Intervenção 105 - havia algum landim. Eles eram de várias regiões de Moçambique, sobretudo do Centro e do Sul.
Henrique Salles da Fonseca 24.07.2019: Sempre agradável leitura. Um abraço. José Montalvão
Henrique Salles da Fonseca, 24.07.2019: Helena Salazar Antunes Morais gosta disto.
Henrique Salles da Fonseca, 24.07.2019: Acabei agora de pôr em dia os três «por essa picada além...» que me faltavam. Estou a gostar bastante de acompanhar esta crónica! Tomás Bernardo


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