Quando tudo estiver resolvido, e as
consequências – creio que negativas - se façam sentir ainda mais. O certo é que
a abertura das fronteiras não deixou de criar graves problemas por toda a
parte, sem travar as guerras da nossa sensibilidade à distância. Mas os
comentadores ainda baralham mais, e alguns acusam Teresa de Sousa, sem se
perceber porquê. O pensamento dela parece justo, no fundo, também às aranhas,
como todos, até ver.
Rir-se de Boris não é uma estratégia
A única estratégia possível é
facilitar a vida ao Reino Unido, garantindo que as perdas para os europeus
serão as menores possíveis. Haverá este discernimento em Bruxelas e nas
principais capitais europeias?
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 28 de
Julho de 2019
1. Na
quinta-feira, Michel Barnier, o negociador chefe da União Europeia para
o “Brexit”, e Jean-Claude Juncker, o presidente da Comissão, resolveram
emitir as primeiras
reacções públicas à entrada de Boris Johnson no n.º 10 de Downing Street.
O primeiro enviou uma carta aos governos na qual recomendava que deveriam
começar a preparar-se para uma saída do Reino Unido sem acordo,
considerando que as afirmações do primeiro-ministro britânico na sua primeira
declaração pública e as respostas às 129 questões que lhe foram colocadas
durante duas horas e meia em Westminster são “inaceitáveis” e “não estão no
mandato do Conselho Europeu”. O segundo telefonou a Boris para lhe dizer que “o
actual acordo é o melhor e o único acordo possível”.
Já aqui
escrevi que a União Europeia teve como principal objectivo para
as negociações do “Brexit” manter uma “frente unida” inquebrantável dos
restantes 27 Estados-membros. A ideia central era provar duas coisas:
que a União negociaria sempre numa posição de força e que sair era tão difícil
e, eventualmente, tão penoso, que o “Brexit” funcionaria como um poderoso
dissuasor para outro país que sonhasse seguir o exemplo do Reino Unido. O risco e os limites desta estratégia
estão hoje à vista. Levadas às suas últimas consequências, estas duas tomadas
de posição de Barnier e de Juncker só podem querer dizer uma coisa: que o novo
Governo de Londres deve apresentar o mesmo “inegociável” acordo em Westminster.
Não se terão dado conta que foram três chumbos consecutivos do acordo que
levaram Theresa May à demissão?
Depois
desses três chumbos e de dois adiamentos da data de saída, o Reino Unido
mudou de primeiro-ministro e, consequentemente, de governo, mesmo
que se mantenha nas mãos do mesmo Partido Conservador. Também não vale a pena
questionar a
legitimidade do novo Gabinete, porque ela é total à luz das regras
do sistema político britânico. Não de
hoje, mas de há muito tempo. John Major substituiu Margaret Thatcher em 1991
exactamente pelo mesmo processo, para recordar um caso recente. Gordon Brown
substituiu Tony Blair graças a um acordo privado entre ambos. Boris
Johnson tem toda a legitimidade para renegociar o acordo com Bruxelas. Bruxelas
só muito dificilmente poderá argumentar que aquele que assinou com May está
escrito na pedra e não pode ser revisto. Repetir que é o único possível até
pode vir a ser uma decisão legitimada pelo Conselho Europeu. Mas não é a única
decisão possível, nem a responsabilidade pertence apenas ao outro lado.
2. A que se
deve esta irredutibilidade? Bruxelas e os
governos europeus temem que a frente unida abra brechas? Esse não é certamente
o problema de Londres e haver uma discussão política no Conselho sobre o que
fazer a partir de agora também não parece ser um crime de lesa pátria. A
nova presidente da Comissão, a alemã Ursula von der Leyen, já se mostrou
disponível para prolongar o prazo para lá de 31 de Outubro. É uma forma
de adiar o problema, mas não de o resolver. Primeiro, porque Boris tem
razão quando diz que não vai levar o mesmo acordo a um Parlamento que já o
chumbou três vezes. Quem de perfeito juízo o faria? Segundo, porque nestas
circunstâncias adiar significaria apenas protelar uma saída sem acordo. O
que não é do interesse nem do Reino Unido nem da União Europeia.
3. Compreende-se
que haja nas capitais europeias um cansaço crescente com o “Brexit” que,
dizem alguns, mantém refém a agenda da União, com muitos outros problemas para
resolver. Pode ser. Há mesmo quem ainda admita em Bruxelas que, no fim do dia,
não vai haver “Brexit”, o que é uma aposta cada vez menos vencedora. Os
sectores que defendem o Remain não se conseguiram entender ao ponto
de forçar um novo referendo. Não é agora, com um governo liderado por
convictos defensores do “Brexit”, que essa hipótese se pode tornar mais fácil,
a não ser perante um fracasso total desse mesmo governo.
A
tentação de apostar neste cenário é grande – incluindo no próprio Reino Unido.
Se uma renegociação do acordo se revelar impossível e se o Parlamento
britânico conseguir garantir que não pode haver saída sem acordo, é possível
que a única solução para Boris Johnson seja convocar eleições que poderiam até
funcionar como uma espécie de segundo referendo. As
sondagens não são animadoras. Os conservadores ganhariam, mesmo que com um
fraco resultado, seguidos de perto pelos liberais-democratas, que são o partido
mais claramente pró-europeu do espectro político britânico, mas o Labour faria
uma triste figura e, num sistema uninominal a uma volta, não se vê como seria
possível formar um governo muito diferente do actual.
O
Labour teve a sua grande oportunidade para virar o jogo, mas perdeu-a graças a
uma liderança que é a favor da saída e que teve de apostar na ambiguidade para
manter o partido e o eleitorado unidos.
Fracassou rotundamente. Foi quase penoso ver como Boris “desfez” Jeremy
Corbyn no Parlamento, tirando partido das suas contradições e da sua crescente
fraqueza política. Não é possível esperar eternamente por uma recomposição
da paisagem política britânica que dê novo sentido à vontade dos britânicos,
seja para saírem, seja para ficarem. Mas também não é possível esquecer que
metade dos britânicos, sobretudo os mais jovens a quem pertence o futuro, são
naturalmente pró-europeus porque se habituaram a viver na Europa e gostaram da
experiência. Para um Governo que quer “unir a nação” e provar que pode
voltar a ser “grande”, não é um bom ponto de partida. Mas esse não é o problema
de Bruxelas. É o problema dos britânicos.
4. Finalmente,
a ideia de que é possível abandonar a União tem de ser aceite como uma
realidade. As sucessivas crises que a Europa viveu ultimamente puseram fim
à ideia de que a integração era irreversível, que prevaleceu durante as
primeiras décadas de vida da União. A crise do euro colocou em cima da mesa,
pela primeira vez, o cenário até aí impensável da sua fragmentação. É daqui que
é preciso partir. A única estratégia possível é facilitar a vida ao Reino
Unido, garantindo que as perdas para os europeus, sejam eles continentais ou
britânicos, serão as menores possíveis. Haverá este discernimento em Bruxelas e
nas principais capitais europeias?
Ninguém
nega que a questão da fronteira entre as Irlandas não é fácil. A dificuldade em resolvê-la decorre das profundas
divisões entre unionistas e republicanos,
que se confrontaram com violência durante décadas, até Tony Blair conseguir
negociar um acordo de paz, que tinha as suas fragilidades e que contava com os
dividendos da pacificação para se consolidar. Dublin, como parte das
negociações de paz, tem uma palavra a dizer e a União não pode abandoná-la.
Mas, também aqui, o único caminho é tentar encontrar um compromisso.
5. A
Europa precisa de um resultado que garanta o máximo de cooperação em
praticamente todos os domínios – da defesa à política externa,
passando pelo comércio ou pela ciência. O
Reino Unido também precisa desse grau de cooperação, desde que não o impeça de
negociar outros acordos com outros países. Não é assim tão difícil de
perceber a ideia dos que defendem uma saída mais radical da União Europeia: o
Reino Unido precisa do máximo de liberdade para seguir o seu caminho. Mesmo
que o bom senso nos diga todos os dias que teria, porventura, maior margem de
manobra para defender os seus interesses dentro do que fora. Com a
total incerteza que hoje paira sobre o mundo, com os desafios gigantescos que a
Europa tem pela frente, com o embate com a realidade que mais tarde ou mais
cedo os britânicos vão sofrer, uma separação sem acordo seria a pior das
notícias para as duas partes e tornaria muito mais difícil a negociação de um
futuro acordo de associação.
A
primeira coisa a fazer é mudar rapidamente a linguagem de Bruxelas. Porque
esperar que Boris Johnson se “espalhe” na primeira curva ou rir-se das
características particulares do novo primeiro-ministro britânico não é
estratégia nenhuma.
Teresa de Sousa interrompe a sua coluna nas próximas semanas. O “Sem
Fronteiras” regressa a este espaço a 25 de Agosto
COMENTÁRIOS
Manuel Cabral, 28.07.2019: Porque não? Comparados, Johnson é pior que Trump: não
tem a desculpa da falta de educação e de experiência política. Como deixar de
rir de um indivíduo que promete que «a Inglaterra voltará por que razão lhe
daria a UE o que não deu a Theresa May? Não deve dar nem mais nem menos: a
Inglaterra, que teve de pedir duas vezes para entrar na futura UE, tem agora a
escolha entre ficar, sair conforme acordou ou sair por sua conta e risco. Será
mau para todos mas pior para a Inglaterra, a qual despreza a vontade das outras
nações do Reino des-Unido! A UE perderia a face perante os seus membros se
facilitasse a saída a um bando de reaccionários arrogantes que não é certo
terem a maioria dos votos no actual parlamento! Teresa de Sousa teve sempre uma
«embirração» contra o euro e a federalização...
Ricardo, Lisboa 28.07.2019: A saída do RU da UE cria um problema na Irlanda para o
qual o número de soluções conhecidas é exactamente zero. Apesar disso, os
Brexiters e as Teresas de Sousa afirmam que com flexbilidade há-de haver
solução. A UE foi flexivel e pagou para ver: o acordo de saída prevê que
havendo uma solução seja implementada mas que até lá, como recurso, o RU ou
pelo menos a Irlanda do Norte ficam sujeitas às regras da UE. Os deputados do
RU rejeitaram esse acordo porque receiam que não haja solução e a solução de
recurso se torne permanente. E o RU continua sem propor outra solução. A UE não
está a ser intransigente. O RU é que criou um problema impossível.
A
autora continua a ser incapaz de integrar no seu raciocínio um facto simples: a
UE é o único caso no planeta em que um grupo de países acordou eliminar os
controlos alfandegários ao ponto de os postos fronteiriços serem
desnecessários. Mesmo na fronteira com Suíça ou Noruega esses controlos
existem. Se o RU vai sair da UE é óbvio que os postos fronteiriços têm de
voltar incluindo na Irlanda. Contudo não só a Irlanda é intransigente como no
próprio RU ninguém defende publica e frontalmente isso. Um acordo de saída que
não garante a ausência de postos de controlos na Irlanda é um acordo que não só
será bloqueado pela Irlanda como é um acordo que dificilmente passará no Parlamento
do RU. Os apelos à flexibilidade da UE são, na verdade, apelos vagos a uma solução
que não existe.
manuel.m2, 28.07.2019: “… Johnson poderia reclamar alguma legitimidade se
seguisse as promessas contidas no Manifesto Eleitoral com que o seu Partido se
apresentou às eleições de 2017, mas o que faz agora é exactamente o contrário: O
Manifesto prometia “uma saída da UE suave e ordeira” e uma “profunda e especial
relação com os nossos amigos e aliados Europeus”. Foi exactamente o que Theresa
May, com todos os seus defeitos, se esforçou por conseguir. Mas o que Johnson
ameaça é um “No Deal Brexit” caótico e cheio de rancor que irá envenenar as
nossas relações com o resto da Europa por uma geração e para o qual não tem
mandato. Ao eleitorado, a quem foi prometida uma saída da UE rápida e sem dor
no referendo de 2016, nunca foi perguntado se queria esse resultado, porque se
o tivesse isso seria rejeitado.
Teresa
de Sousa não explica qual será a razão pela qual a UE teria de dar a Boris o
que recusou a Theresa May.
Não explica também o que significaria rasgar o acordo de saída firmado entre o
Governo Britânico e a UE, não só eliminando o chamado "Back Stop",
garantia fundamental para manter a paz na Irlanda, mas também a totalidade
desse Acordo, como agora exige Boris, sem que seja posta em causa a UE como
projecto político, tornando-a apenas numa área de livre comércio. Terá
Teresa de Sousa alguma complacência que a leva a não comentar a composição do
presente Governo Britânico onde pontua Jacob Rees-Mogg, agora líder da Câmara
dos Comuns, o maior reaccionário a ter assento no Governo de SM de que há
memória, uma presença insólita mesmo se considerarmos a composição do resto do
Gabinete ?
Fernando Costa, Lisboa 28.07.2019: Bom e sensato texto, longe das baboseiras pedantes
que têm enchido a nossa imprensa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário