quarta-feira, 31 de julho de 2019

Um dia, havemos de entender



Quando tudo estiver resolvido, e as consequências – creio que negativas - se façam sentir ainda mais. O certo é que a abertura das fronteiras não deixou de criar graves problemas por toda a parte, sem travar as guerras da nossa sensibilidade à distância. Mas os comentadores ainda baralham mais, e alguns acusam Teresa de Sousa, sem se perceber porquê. O pensamento dela parece justo, no fundo, também às aranhas, como todos, até ver.

Rir-se de Boris não é uma estratégia
A única estratégia possível é facilitar a vida ao Reino Unido, garantindo que as perdas para os europeus serão as menores possíveis. Haverá este discernimento em Bruxelas e nas principais capitais europeias?
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 28 de Julho de 2019
1. Na quinta-feira, Michel Barnier, o negociador chefe da União Europeia para o “Brexit”, e Jean-Claude Juncker, o presidente da Comissão, resolveram emitir as primeiras reacções públicas à entrada de Boris Johnson no n.º 10 de Downing Street. O primeiro enviou uma carta aos governos na qual recomendava que deveriam começar a preparar-se para uma saída do Reino Unido sem acordo, considerando que as afirmações do primeiro-ministro britânico na sua primeira declaração pública e as respostas às 129 questões que lhe foram colocadas durante duas horas e meia em Westminster são “inaceitáveis” e “não estão no mandato do Conselho Europeu”. O segundo telefonou a Boris para lhe dizer que “o actual acordo é o melhor e o único acordo possível”.
Já aqui escrevi que a União Europeia teve como principal objectivo para as negociações do “Brexit” manter uma “frente unida” inquebrantável dos restantes 27 Estados-membros. A ideia central era provar duas coisas: que a União negociaria sempre numa posição de força e que sair era tão difícil e, eventualmente, tão penoso, que o “Brexit” funcionaria como um poderoso dissuasor para outro país que sonhasse seguir o exemplo do Reino Unido. O risco e os limites desta estratégia estão hoje à vista. Levadas às suas últimas consequências, estas duas tomadas de posição de Barnier e de Juncker só podem querer dizer uma coisa: que o novo Governo de Londres deve apresentar o mesmo “inegociável” acordo em Westminster. Não se terão dado conta que foram três chumbos consecutivos do acordo que levaram Theresa May à demissão?
Depois desses três chumbos e de dois adiamentos da data de saída, o Reino Unido mudou de primeiro-ministro e, consequentemente, de governo, mesmo que se mantenha nas mãos do mesmo Partido Conservador. Também não vale a pena questionar a legitimidade do novo Gabinete, porque ela é total à luz das regras do sistema político britânico. Não de hoje, mas de há muito tempo. John Major substituiu Margaret Thatcher em 1991 exactamente pelo mesmo processo, para recordar um caso recente. Gordon Brown substituiu Tony Blair graças a um acordo privado entre ambos. Boris Johnson tem toda a legitimidade para renegociar o acordo com Bruxelas. Bruxelas só muito dificilmente poderá argumentar que aquele que assinou com May está escrito na pedra e não pode ser revisto. Repetir que é o único possível até pode vir a ser uma decisão legitimada pelo Conselho Europeu. Mas não é a única decisão possível, nem a responsabilidade pertence apenas ao outro lado.
2. A que se deve esta irredutibilidade? Bruxelas e os governos europeus temem que a frente unida abra brechas? Esse não é certamente o problema de Londres e haver uma discussão política no Conselho sobre o que fazer a partir de agora também não parece ser um crime de lesa pátria. A nova presidente da Comissão, a alemã Ursula von der Leyen, já se mostrou disponível para prolongar o prazo para lá de 31 de Outubro. É uma forma de adiar o problema, mas não de o resolver. Primeiro, porque Boris tem razão quando diz que não vai levar o mesmo acordo a um Parlamento que já o chumbou três vezes. Quem de perfeito juízo o faria? Segundo, porque nestas circunstâncias adiar significaria apenas protelar uma saída sem acordo. O que não é do interesse nem do Reino Unido nem da União Europeia.
3. Compreende-se que haja nas capitais europeias um cansaço crescente com o “Brexit” que, dizem alguns, mantém refém a agenda da União, com muitos outros problemas para resolver. Pode ser. Há mesmo quem ainda admita em Bruxelas que, no fim do dia, não vai haver “Brexit”, o que é uma aposta cada vez menos vencedora. Os sectores que defendem o Remain não se conseguiram entender ao ponto de forçar um novo referendo. Não é agora, com um governo liderado por convictos defensores do “Brexit”, que essa hipótese se pode tornar mais fácil, a não ser perante um fracasso total desse mesmo governo.
A tentação de apostar neste cenário é grande – incluindo no próprio Reino Unido. Se uma renegociação do acordo se revelar impossível e se o Parlamento britânico conseguir garantir que não pode haver saída sem acordo, é possível que a única solução para Boris Johnson seja convocar eleições que poderiam até funcionar como uma espécie de segundo referendo. As sondagens não são animadoras. Os conservadores ganhariam, mesmo que com um fraco resultado, seguidos de perto pelos liberais-democratas, que são o partido mais claramente pró-europeu do espectro político britânico, mas o Labour faria uma triste figura e, num sistema uninominal a uma volta, não se vê como seria possível formar um governo muito diferente do actual.
O Labour teve a sua grande oportunidade para virar o jogo, mas perdeu-a graças a uma liderança que é a favor da saída e que teve de apostar na ambiguidade para manter o partido e o eleitorado unidos. Fracassou rotundamente. Foi quase penoso ver como Boris “desfez” Jeremy Corbyn no Parlamento, tirando partido das suas contradições e da sua crescente fraqueza política. Não é possível esperar eternamente por uma recomposição da paisagem política britânica que dê novo sentido à vontade dos britânicos, seja para saírem, seja para ficarem. Mas também não é possível esquecer que metade dos britânicos, sobretudo os mais jovens a quem pertence o futuro, são naturalmente pró-europeus porque se habituaram a viver na Europa e gostaram da experiência. Para um Governo que quer “unir a nação” e provar que pode voltar a ser “grande”, não é um bom ponto de partida. Mas esse não é o problema de Bruxelas. É o problema dos britânicos.
4. Finalmente, a ideia de que é possível abandonar a União tem de ser aceite como uma realidade. As sucessivas crises que a Europa viveu ultimamente puseram fim à ideia de que a integração era irreversível, que prevaleceu durante as primeiras décadas de vida da União. A crise do euro colocou em cima da mesa, pela primeira vez, o cenário até aí impensável da sua fragmentação. É daqui que é preciso partir. A única estratégia possível é facilitar a vida ao Reino Unido, garantindo que as perdas para os europeus, sejam eles continentais ou britânicos, serão as menores possíveis. Haverá este discernimento em Bruxelas e nas principais capitais europeias?
Ninguém nega que a questão da fronteira entre as Irlandas não é fácil. A dificuldade em resolvê-la decorre das profundas divisões entre unionistas e republicanos, que se confrontaram com violência durante décadas, até Tony Blair conseguir negociar um acordo de paz, que tinha as suas fragilidades e que contava com os dividendos da pacificação para se consolidar. Dublin, como parte das negociações de paz, tem uma palavra a dizer e a União não pode abandoná-la. Mas, também aqui, o único caminho é tentar encontrar um compromisso. 
5. A Europa precisa de um resultado que garanta o máximo de cooperação em praticamente todos os domínios – da defesa à política externa, passando pelo comércio ou pela ciência. O Reino Unido também precisa desse grau de cooperação, desde que não o impeça de negociar outros acordos com outros países. Não é assim tão difícil de perceber a ideia dos que defendem uma saída mais radical da União Europeia: o Reino Unido precisa do máximo de liberdade para seguir o seu caminho. Mesmo que o bom senso nos diga todos os dias que teria, porventura, maior margem de manobra para defender os seus interesses dentro do que fora. Com a total incerteza que hoje paira sobre o mundo, com os desafios gigantescos que a Europa tem pela frente, com o embate com a realidade que mais tarde ou mais cedo os britânicos vão sofrer, uma separação sem acordo seria a pior das notícias para as duas partes e tornaria muito mais difícil a negociação de um futuro acordo de associação.
A primeira coisa a fazer é mudar rapidamente a linguagem de Bruxelas. Porque esperar que Boris Johnson se “espalhe” na primeira curva ou rir-se das características particulares do novo primeiro-ministro britânico não é estratégia nenhuma.

Teresa de Sousa interrompe a sua coluna nas próximas semanas. O “Sem Fronteiras” regressa a este espaço a 25 de Agosto
COMENTÁRIOS
Manuel Cabral, 28.07.2019: Porque não? Comparados, Johnson é pior que Trump: não tem a desculpa da falta de educação e de experiência política. Como deixar de rir de um indivíduo que promete que «a Inglaterra voltará por que razão lhe daria a UE o que não deu a Theresa May? Não deve dar nem mais nem menos: a Inglaterra, que teve de pedir duas vezes para entrar na futura UE, tem agora a escolha entre ficar, sair conforme acordou ou sair por sua conta e risco. Será mau para todos mas pior para a Inglaterra, a qual despreza a vontade das outras nações do Reino des-Unido! A UE perderia a face perante os seus membros se facilitasse a saída a um bando de reaccionários arrogantes que não é certo terem a maioria dos votos no actual parlamento! Teresa de Sousa teve sempre uma «embirração» contra o euro e a federalização...
Ricardo, Lisboa 28.07.2019: A saída do RU da UE cria um problema na Irlanda para o qual o número de soluções conhecidas é exactamente zero. Apesar disso, os Brexiters e as Teresas de Sousa afirmam que com flexbilidade há-de haver solução. A UE foi flexivel e pagou para ver: o acordo de saída prevê que havendo uma solução seja implementada mas que até lá, como recurso, o RU ou pelo menos a Irlanda do Norte ficam sujeitas às regras da UE. Os deputados do RU rejeitaram esse acordo porque receiam que não haja solução e a solução de recurso se torne permanente. E o RU continua sem propor outra solução. A UE não está a ser intransigente. O RU é que criou um problema impossível.
A autora continua a ser incapaz de integrar no seu raciocínio um facto simples: a UE é o único caso no planeta em que um grupo de países acordou eliminar os controlos alfandegários ao ponto de os postos fronteiriços serem desnecessários. Mesmo na fronteira com Suíça ou Noruega esses controlos existem. Se o RU vai sair da UE é óbvio que os postos fronteiriços têm de voltar incluindo na Irlanda. Contudo não só a Irlanda é intransigente como no próprio RU ninguém defende publica e frontalmente isso. Um acordo de saída que não garante a ausência de postos de controlos na Irlanda é um acordo que não só será bloqueado pela Irlanda como é um acordo que dificilmente passará no Parlamento do RU. Os apelos à flexibilidade da UE são, na verdade, apelos vagos a uma solução que não existe.
manuel.m2, 28.07.2019: “… Johnson poderia reclamar alguma legitimidade se seguisse as promessas contidas no Manifesto Eleitoral com que o seu Partido se apresentou às eleições de 2017, mas o que faz agora é exactamente o contrário: O Manifesto prometia “uma saída da UE suave e ordeira” e uma “profunda e especial relação com os nossos amigos e aliados Europeus”. Foi exactamente o que Theresa May, com todos os seus defeitos, se esforçou por conseguir. Mas o que Johnson ameaça é um “No Deal Brexit” caótico e cheio de rancor que irá envenenar as nossas relações com o resto da Europa por uma geração e para o qual não tem mandato. Ao eleitorado, a quem foi prometida uma saída da UE rápida e sem dor no referendo de 2016, nunca foi perguntado se queria esse resultado, porque se o tivesse isso seria rejeitado.
Teresa de Sousa não explica qual será a razão pela qual a UE teria de dar a Boris o que recusou a Theresa May. Não explica também o que significaria rasgar o acordo de saída firmado entre o Governo Britânico e a UE, não só eliminando o chamado "Back Stop", garantia fundamental para manter a paz na Irlanda, mas também a totalidade desse Acordo, como agora exige Boris, sem que seja posta em causa a UE como projecto político, tornando-a apenas numa área de livre comércio. Terá Teresa de Sousa alguma complacência que a leva a não comentar a composição do presente Governo Britânico onde pontua Jacob Rees-Mogg, agora líder da Câmara dos Comuns, o maior reaccionário a ter assento no Governo de SM de que há memória, uma presença insólita mesmo se considerarmos a composição do resto do Gabinete ?
Fernando Costa, Lisboa 28.07.2019: Bom e sensato texto, longe das baboseiras pedantes que têm enchido a nossa imprensa.



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