Foi Cesário Verde quem o disse e eu sempre concordei, desde os tempos de
menina e moça, embora outras peças do seu reportório me deixassem sempre
abismada de sedução e espanto, de que “O
Sentimento de um Ocidental” constituiu a tal “Sinfonia em quatro andamentos” a merecer um “Óscar” de perfeição poética
absoluta. É certo que também Camões se queixou
da indiferença da gente “surda e endurecida”
para quem cantou as armas e os barões da sua epopeia-chave. Ter
consciência do seu próprio engenho é natural, embora seja convencionalmente
erróneo o afirmá-lo. Há pouco li uma entrevista com Miguel Esteves Cardoso que igualmente reivindicou para si
qualidades que não se inibiu de apontar, sem falsa modéstia: “Sou extremamente inteligente, tenho um
grande sentido de humor e escrevo muito bem”. Mas neste caso, julgo que se
sujeitou à gozação pública que o “Público”
favoreceu, ingratamente, - (pois que MEC é
seu colaborador) - ao expor tal opinião em letras garrafais. Opinião,
certamente mais ingénua do que arrogante, de influência britânica, por via dos
pretensiosismos elegantes do Mr Darcy, que Jane Austen, torna eficientemente e
deliciosamente sedutores, pela arrogância sem hipocrisia do seu nobre personagem
masculino de "Orgulho e Preconceito".
Tudo isto vem a propósito da autobiografia
de Agustina Bessa-Luís, que li
esta manhã, de uma assentada, não por me sentir encantada, apesar da elegância
conceituosa da sua escrita, mas por ver nela a justificação do mundo ora de
requinte aristocrático ora de revelação dos hábitos e mistérios populares de
que também se alimentou na infância, a par do saber literário de que desde
sempre aproveitou, já em tendências de precocidade bem visíveis ao longo da sua
obra.
Mas o que estranhei, de facto foi a
transcrição seguinte, anteposta ao conto “Um
Inverno Frio”, que finaliza a autobiografia:
“O que melhor eu gosto de fazer é
uma história quase seca e sugerida por uma série de palpites e não pelo
conhecimento da pessoa. Como “Um Inverno
Frio”, um dos melhores contos que escrevi até hoje. Se tudo o resto se
perdesse, como nas cheias de Capibaribe, no Recife, bastava que esse conto
ficasse para me qualificar”.
Segue-se que AB-L, além da consciência do seu mérito desde os tempos de criança
precoce - com, aliás, gratas razões de demonstração, quer em galardão de
prémios e fama que bem cedo recolheria com o romance “A Sibila”, quer numa vida de projecção e de
viagens e contactos ilustres como refere na sua autobiografia, que cedo a
fizeram destacar-se na panorâmica literária portuguesa, bem longe das
ideologias neo-realistas dos escritores seus contemporâneos - tem bem a
perspicácia de uma imutabilidade no tónus geral de uma obra de mística e
mistério e onde ela se passeia controladora de uma acção em volteios que
manipula, indiferente às perturbações que tais artifícios possam causar no leitor menos prático.
É, realmente, um curto conto que a Internet também transcreve,
mas que não analisa, e que a mim, uma vez mais, me põe às aranhas a respeito da
sua interpretação como ficção de circularidade e suspense incomprensível, numa
ausência de justificações que mais aponta, quer para um universo de bruxedo, de vingança por um amor não partilhado, quer para um universo freudiano, de sexualidade fora da norma, cuja referência aos tempos libertos de hoje é feita no início do conto, sem mais quê, quer para qualquer outra coisa ao jeito mediévico, que, na
realidade, nem entendi bem. Um homem – João - que casa com uma mulher – Elisa -
de quem tem filhos, homem pacífico, bom pai, bom construtor de riqueza pessoal.
Um tio que uma vez visita e com quem conversa, na puerilidade da referência a
um fato de cheviote assertoado que o faz deslocar-se ao Porto, uma criada de
meninos “qualificada”, estendida no chão a partir avelãs com o salto do sapato,
um destaque para o olhar desta e para “o
dente incisivo” quebrado, sem indicar qual deles, o retorno a “Bóboda”, com a vida a decorrer tranquila
durante uns meses. De repente, a desgraça em várias frentes, o adultério da
mulher Elisa, o incêndio da casa do tio, provocado por uma criada, a bondade piedosa
de João, o seu jeito de enriquecimento, a música clássica que escuta, sempre
afável e impassível, lendo a necrologia dos jornais. Finalmente, a morte da
mãe, de congestão “enquanto comia uma pêra
de água”. Nesta, João descobre, “de
repente, … na polpa do fruto a marca dum dente incisivo meio quebrado. Pôs-se a
chorar, a chorar. «Meu Deus – disse – meu Deus, Senhor»”.
Não, nada a ver com a maçã envenenada da
madrasta da Branca de Neve. Mas que foi bruxedo, foi, da tal miss bem
produzida, a partir avelãs rodeada dos seus pupilos risonhos, e olhada com
indiferença por João, que nela só topou o dente incisivo ligeiramente quebrado.
Mas o final descritivo do conto, guarda a simbologia sóbria e expressiva e terminando com a
marca da presença da narradora a manipular elegantemente o discurso, ao modo
habitual, em todo o caso um tanto chocarreiro, no “não sei quê” ironizando uma modernidade a quebrar os laços com a
tradição, em que foi protagonista:
«Bóbeda no Inverno é vidrada de
geada; o sol não sobe acima da linha da plantação nova dos vidoeiros. Quem vai
na estrada vê a casa dos Galeões de Bóbeda, que fica num alto. É como um
comboio, com as suas muitas janelas de guilhotina e a chaminé que espalhava
dantes o seu fumo espesso, constelado de fagulhas. Agora usam gás, ou não sei
quê.»
Não, confesso que não entendi bem o
porquê deste conto como marca distintiva da obra de Agustina. E talvez sim,
afinal, pelo que contém de obscuro e tenebroso no conciso de personagens
permanecendo incompreensíveis num enredado universo de simbologia e mistério, de
temporalidade perdendo-se no caos das vidas. Uma espécie de “fecho éclair” rodeando sinteticamente as
preciosidades de uma obra rica de cujo mistério ele é a chave.
Benditos Eça, e Júlio Dinis, e Torga, tão sem pretensões a fugas no
plano das sequências claras de efabulação, escritores a que se retorna – bem como
a tantos outros escritores brilhantes deste nosso mundo de criatividade sem
tanto artifício e com mais equilíbrio e naturalidade expressiva.
Por isso, sem deixar de admirar
Agustina, no que ela representa de originalidade na sem-cerimónia de uma
escrita de “baralhação” de pistas e na riqueza esclarecida do seu discurso humanista,
concordo com a expressiva análise que António
Guerreiro faz da escritora, no texto que segue:
CRÓNICA ACÇÃO PARALELA
Agustina,
a escritora sem literatura
PÚBLICO (IPSILON) 7 de Junho de 2019
Pela
morte
de Agustina Bessa-Luís, elevou-se um coro público de superlativos e
hipérboles, de adjectivos extasiados aproximando-se das visões místicas e do
gozo erótico da espiritualidade barroca. Estava aberta a corrida para o
inefável, e muitos foram os concorrentes. Vejamos alguns exemplos.
Uns
diziam que ela só se pode medir com o absoluto, que não admite níveis e
gradações (“Não se gosta mais ou menos de Agustina, como não se gosta mais
ou menos de Herberto Helder”, Pedro Mexia), outros diziam que ela encarnou o
enigma genial da literatura e ganhou o direito à eternidade (“Se há génio,
é Agustina. Se há mistério literário, é Agustina. Se há alguém que não morre, é
Agustina”, Hélia Correia; acrescente-se que a garantia da imortalidade foi
assinada por mais depoentes). Outros, “curvando-se” perante o seu génio que só
na esfera da teologia encontra explicação, veneraram a “criadora” e
atribuíram-lhe o poder de uma comunhão mística (“retrato da força telúrica
de um povo”, Presidente da República).
Era
o momento de erguer a cabeça e olhar para as alturas do sublime. Não havia
limites para o entusiasmo lutuoso e ninguém se lembrou das virtudes da
sobriedade romântica que se opõe à desmesura do pathos sagrado dos
gregos. António Lobo Antunes
mediu a grandeza de Agustina pelo padrão da sua auto-reconhecida grandeza, que
não é coisa pouca e tem força suficiente para elevar a escritora aos píncaros
do panteão, onde ele estabeleceu morada por sua conta e risco e onde recebe os
seus raros convidados. Ao mesmo tempo “revelou” alguns ditos de espírito de
Agustina que ele, em privilégio exclusivo, teria tido a felicidade de ter
escutado (como aquele em que ela diz que forma com o seu marido um casal tão
perfeito que deve ser chamado “casal Garcia”), mas afinal todos esses ditos
circulam por toda a cidade desde há muito tempo e não há, no meio literário,
quem não os conheça. Uma decepção, estas revelações do candidato a Garcia. Em
suma: a temperatura das palavras aqueceu muito e ergueu-se um entusiasmo
descontrolado.
Agustina
Bessa-Luís merece esta adjectivação exasperada que esvazia o seu
objecto e nos faz prestar atenção a quem a profere? Não merece: não por estar
aquém, mas porque tudo o que escreveu lança um riso crítico, soberano e
perverso sobre estes tipos de discurso.
Ao
que há aqui em excesso, responde a quase ausência que se faz notar noutro lado,
em artigos e depoimentos que nos digam o que quer que seja sobre a obra de
Agustina, que responda à exigência de leitura dos livros, que faça uso da
citação. A literatura foi quase completamente evacuada no momento em que se
exalta com tanta veemência a pessoa da autora (sejamos justos, encontrei
três excepções: um
artigo de Mário Santos no PÚBLICO, outro de Diogo Vaz Pinto no jornal i e algumas palavras do depoimento de Gonçalo M.
Tavares, o qual, apesar de cair no mesmo excesso, chamando a Agustina “um
extraterrestre”, diz depois algumas palavras pertinentes sobre a sua escrita).
Alguém
que nunca tenha lido nada da escritora, e ela cultivou muitos géneros por onde
escolher, sai derrotado por esta parafernália laudatória. Para além dos títulos
de alguns livros, pouco mais nos faz aceder à obra da autora. Se calhar,
Gonçalo M. Tavares tem razão: é mesmo uma extraterrrestre. Esta
escritora sem escrita, este génio que nesta ocasião se vê espoliada da obra que
engendrou, é o produto mais extremo da condição clandestina da literatura e da
crítica. Agustina é um génio, mas os seus livros são um empecilho e uma
chatice, o melhor é fazer de conta que nem existem.
É
interessante ver que pessoas do meio literário que certamente têm uma enorme
lucidez e vêem com um olhar muito crítico esta situação, que é uma forma de
obscurantismo, caem nas armadilhas que denunciam quando estão de fora. Se
quiséssemos fazer uma etologia da vida literária como ela merece, do gregarismo
e da vacuidade que a animam, tínhamos nestas mobilizações circunstanciais dos
entusiasmos sem nenhum conteúdo, apenas fascinados por si mesmos, embora
pareçam voltados para um objecto preciso, material muito fecundo de pesquisa.
COMENTÁRIOS:
Helena
Maria Vilhena Barroso, 122,
11.06.2019 : Agustina: uma escritora que gostava de se ouvir
escrever.
Gastão Clemente, Custóias 08.06.2019: Excelente artigo!
Carlos Félix, Oeiras / Beja 07.06.2019:
Os livros que nos faltam são os que não
pudemos ou quisemos escrever (e ler?). Para desanuviar: O “mundo rural” na
impossibilidade de ser idílico passou a ser lugar de idílios.
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