Serão felizes os habitantes de um país com
um dos mais altos PIB per capita do mundo?
Um belo passeio, uma bonita história nos nossos dias. Contada por Sousa Ribeiro. Ficamos gratos ao PÚBLICO.
Liechtenstein, o pequeno país das grandes caminhadas
Com menos de 25 quilómetros de comprimento, o país que se atravessa de
carro em menos de meia hora tem agora um trilho que, como uma serpente, abraça,
ao longo de 25 quilómetros, os 11 municípios que o integram.
SOUSA RIBEIRO
Fugas PÚBLICO, 6/7/2019
Imagine um país com 12,4 quilómetros de largura e 24,8 de
comprimento. Um país que, de carro, se cruza em pouco mais do
que 20 minutos e que, mesmo a pé, caminhando sem pressas, percorrendo um
quilómetro em 15 minutos, levará pouco mais de seis horas a ser atravessado.
Esse país é o Liechtenstein, com uma
área de apenas 160 km2 e não mais do que 78 quilómetros de fronteiras
(41,2 com a Suíça e 36, 7 com a Áustria) que abrigam cerca de 38 mil
habitantes que, todos os anos, a 15 de Agosto, dia nacional deste
micro-estado, são convidados pelo príncipe Hans-Adam II (na verdade é o
filho mais velho, Alois Philipp Maria, quem gere, desde 2004, os destinos do
Principado) para beber uma cerveja ou um copo de vinho no castelo de Vaduz,
sentinela da minúscula capital e residência oficial do monarca.
Conhecido por muitos apenas por alguns
clichés e visitado anualmente por uns
70 mil turistas, o
Liechtenstein tem, desde o passado dia 27 de Maio, um novo atractivo que
está a despertar, mais do que nunca, o interesse dos viandantes, muitos deles
influenciados por publicações como a Lonely Planet, que incluiu o principado
(sexto país mais pequeno do mundo, depois de São Marino, Tuvalu, Nauru, Mónaco
e Vaticano) entre os dez países da Europa a visitar em 2019.
É o Trilho do Liechtenstein, um percurso pedestre que se estende por 75
quilómetros, atravessando os 11 munícipios do país e a
sua história, num total de 21 horas que podem (e devem) ser repartidas ao longo
de alguns dias, tudo dependendo da condição física de cada um – e a cada um
cabe a decisão de escolher por onde começar.
Balzers, no Sul, é uma
opção a ter em conta. Mas é muito provável que antes ainda de iniciar a
caminhada sinta alguma dificuldade em desprender o olhar do imponente
castelo que domina a vila, recortado pelas montanhas ainda
mais magnificentes e vigiando, desde o topo da colina já habitada no Neolítico,
as vinhas que, em socalcos, de um dos lados, se debruçam sobre o
vale.
Situado, na vertical, 70 metros acima de
Balzers e Mäls, o castelo Gutenberg foi
erguido durante a Alta Idade Média e no local foram feitas, em anos mais
recentes, algumas descobertas arqueológicas de grande significado histórico,
entre elas uma pequena figura com apenas 12cm, conhecida como Mars von
Gutenberg e em exposição no Museu Nacional do Liechtenstein. …
Desde o castelo, palco de inúmeros
eventos culturais nos meses de Verão (acolhe inclusive casamentos), a
panorâmica é soberba, convida a respirar as fragrâncias que uma brisa suave
transporta, aquele ar puro que impele o viajante a percorrer trilhos onde na
maior parte das vezes é acompanhado apenas pela solidão.
De Balzers a Triesen
Ao fundo avisto
de novo Balzers e Mäls, os telhados das casas, tudo envolto em
quietude a despeito da industrialização que caracteriza a primeira, com uma
população que não ultrapassa os cinco mil habitantes.
O trilho começa por rasgar o município de
Balzers, onde ainda no século passado, em diferentes anos, foram encontrados
importantes vestígios romanos. Sem demoras, os ruídos vão ficando para trás e é
ao longo de uma antiga estrada romana que o percurso prossegue, muitas vezes
num silêncio que deixa escutar o marulho produzido pelo Reno, sempre à minha
esquerda, umas vezes mais distante, umas vezes mais próximo, até chegar a
Triesen, com uma altitude semelhante à de Balzers, ligeiramente acima dos
500 metros em relação ao nível das águas do mar.
Triesen, tão do agrado dos nobres
durante a Idade Média, seduzidos pela natureza que se lhes oferecia à
contemplação para construírem as suas casas nas colinas, no meio dos bosques e
das florestas, convida a permanecer por ali por uns instantes, antes que a
caminhada se torne mais árdua, com tempo para fazer comparações entre a parte
alta e a parte baixa da aldeia. É na primeira, por vezes com vistas
imperdíveis sobre o vale e o Reno, tantas vezes vítima, num passado remoto, de
inundações, deslizamento de terras e incêndios, que se concentram as atracções
que prendem o olhar dos turistas, como a igreja de St. Gallus, renovada ao
longo do século passado mas mantendo o campanário projectado pelo arquitecto
Georg Wingelmüller.
Muitos turistas nem se apercebem mas a
igreja destaca-se mais por outros motivos e não tanta pela sua beleza estética
ou peso histórico: abriga, na verdade, e já desde 1940, uma larga comunidade
de morcegos-de-orelhas-de-rato, a quem foram concedidas medidas de
protecção (com sucesso) durante as grandes obras de restauro que a igreja
conheceu entre 1991 e 1994, agora sob a responsabilidade do arquitecto suíço
Walter Bosshart.
Triesen parece envolta num olhar doce, cativa nos
detalhes, nos pequenos recantos, na sua história. Um total de 14 quilómetros
no primeiro dia ao longo do trilho do Liechtenstein pode completar-se em pouco
mais ou menos quatro horas. A parte que se segue é a mais crítica mas o tempo
dá tempo para que se aprecie essa calma, quase maternal, que a aldeia exala.
Triesen desenvolveu-se muito à custa dos aproveitamentos hidroeléctricos,
motivando o aparecimento de um conjunto de actividades que impulsionou definitivamente
o comércio – havia trabalho nas serrações, entre os ferreiros, nos moinhos, a
água corria pelo meio da aldeia.
Tudo se perdeu, até a força da corrente
que agora se arrasta à minha frente por entre muros de pedra, tendo as
montanhas como fundo, tão inacessíveis.
Àquela hora já havia passado por
antigas casas de ferreiros, por outras onde os agricultores entregavam o leite,
pela praça tão tranquila, pela fonte que remete para o trágico fim de Trisun, a
velha Triesen, destruída após um deslizamento de terras, pela Marienkapelle.
A cultura walser
…Há quem admita que as suas origens
remontam ao século IX ou X, verdade ou não St. Marmeta é o monumento que
mais olhares atrai em Triesen – olhares que, perante a panorâmica, logo se
perdem também no vale, na força da natureza, na aldeia que vive na sua
serenidade lá em baixo. A partir daqui, o trilho sobe, tudo se torna mais
silencioso, os prados são verdes, lamas e alpacas contribuem para sentir
que não estamos sozinhos no mundo, por entre as árvores despontam por vezes os
telhados de Balzers e de Triesen, a visão dos Alpes Suíços aprisiona.
Até que se chega a Triesenberg, uma aldeia situada 900 metros acima do nível
das águas do mar – não há outra numa posição tão elevada no país e
não há outra, no Liechtenstein, que tanto preserve a herança
walser, esse povo que se adaptou às duras condições de vida
nas montanhas, não só no Principado como também em Itália, na Suíça e na
Áustria.
Os mais antigos documentos que fazem
referência à presença dos walsers em Triesenberg remontam a 1355 e ainda hoje,
quase 700 anos depois, os descendentes dessa cultura tão ancestral conservam
muitas das tradições e um dialecto próprio e nem sempre fácil de entender. Um trilho
permite conhecer esse passado, as lendas e as histórias, a cada passo o
viajante cruza-se com figuras bizarras e, sem demoras, identifica-se com os
lugares onde os walsers terão começado por estabelecer-se, como em
Masescha, antes ainda de se espalharem pelos vales e de fundarem o lugarejo de
Triesenberg. É em Masescha, mais perto do céu, que se encontra uma
das testemunhas dessa existência tão singular, materializada numa capela que
honra o santo Theodul, um lugar sagrado para os walsers desde tempos imemoriais.
Frequentes são os encontros das diferentes comunidades de walsers espalhadas
pelas zonas alpinas, com os seus trajes típicos, o seu folclore, um legado
que também pode ser apreciado no museu situado no centro da aldeia. …
A pacata Vaduz
O trilho deixa para trás Triesenberg, não
tarda mostra um enorme rochedo (com
uns cinco metros de comprimento e quatro e meio de largura) com 400 milhões de
anos e sobe depois até Profatscheng, as vistas sobre o vale por onde corre
apressado o Reno prendem a atenção e logo se inicia um percurso a descer, pelo
meio da floresta, ao encontro das ruínas do castelo Schalun, construído no
século XII.
A natureza exibe agora um delicado
mosaico de cores, aqui e ali despontam pequenas quintas, mas o silêncio perdura
e a errância faz-se, na maior parte das vezes, numa solidão que contribuiu para
um quadro ainda mais harmonioso.
Mais para a frente, já numa zona
plana, o
castelo de Vaduz
começa a insinuar-se e a impor-se no meio da paisagem. Erguido
como fortaleza no século XII, o castelo é referido pela primeira vez em
documentos em 1322, quase 400 anos antes de ser adquirido pela família real,
que dele fez residência oficial entre 1712 e 1732, quando começou a exibir
sinais de decadência. É apenas no início do século passado, entre 1905 e
1912, que a estrutura é restaurada e, mais tarde, por decisão do príncipe Franz
Josef, aumentado para se transformar, a partir de 1939, na residência oficial
desta (rica).
Um trilho estreito leva-me do castelo ao
centro de Vaduz, onde seis mil habitantes e alguns turistas não chegam para
perturbar uma cidade com uma atmosfera de vila ou aldeia mas onde não faltam
motivos para absorver o tempo de quem a visita. Desde logo no Museu
de Arte,
projectado pelo arquitecto suíço Meinrad Morger, com uma interessante exibição
de arte moderna e contemporânea, depois pelo Museu Nacional, para uma
melhor identificação com a história do Liechtenstein, mais para a tarde nos Correios
e Museu do Selo, que lembra a longa tradição dos serviços postais do
país. Inaugurado em 1930, apenas abriu ao público seis anos mais tarde, com uma
mostra impressionante de colecções de selos editados no Liechtenstein desde
Fevereiro de 1912 – e ainda hoje a filatelia continua a atrair um grande
número de coleccionadores ao país.
O dia esgota-se em Vaduz, a apreciar o
edifício parlamentar desenhado pelo arquitecto alemão Hansjörg Göritz, a catedral
de St. Florin e a Alte Rheinbrücke, a ponte coberta que liga os munícipios de Vaduz
a Sevelen. Com um comprimento de 135 metros, é a única estrutura em madeira
a cruzar as águas do Reno e já foi por mais do que uma vez reerguida – uma
delas na sequência de uma ruptura, em 1927, na barragem de Schaan.
O berço do nascimento
É por Schaan que passa,
algum tempo depois, o trilho, não sem antes nos conduzir pela parte antiga
de Vaduz, pela Casa Vermelha, propriedade da família Rheinberger desde o
início do século XIX (Egon Rheinberger foi um famoso pintor, arquitecto e
escultor local) e de onde se obtém uma vista admirável do castelo de Vaduz,
prosseguindo depois por uma zona plana, através da floresta e passando pela
universidade.
Até que se chega ao centro
de Schaan, às ruínas
de um forte romano, na certeza de que há tempo para explorar ainda mais, como,
após uma subida, o convento de St. Elizabeth, recuperando forças para uma
subida íngreme que conduz, seguindo o trilho pelo meio da floresta, a Planken,
o mais pequeno dos munícipios do Liechtenstein, de onde se goza de um cenário
majestoso, umas vezes com os olhos postos no vale, outras com ele fixo na
cadeia montanhosa designada Três Irmãs.
Planken, com as suas casinhas que parecem
retiradas de um postal, é a aldeia onde nasceram os esquiadores Hanni e Andreas
Wenzel, que conquistaram seis das dez medalhas obtidas pelo Liechtenstein nos
Jogos Olímpicos de Inverno entre 1976 e 1984.
É tempo de descer, percorrendo um caminho
montanhoso que acaba por desaguar, ao fim de algum tempo, em Nendeln, onde me
detenho para espreitar algumas ruínas romanas antes de iniciar o trajecto que
leva a Eschen. O trilho, como uma serpente, passa por Güdigen, por Aspen, deixa
ver a capela de Rofenberg, entra-se depois numa secção do histórico trilho de
Eschnerberg (que permite ao viajante descobrir as origens do Liechtenstein e o
leva até aos assentamentos pré-históricos de Lutzengütle e de Malanser) e já se
avizinha Bendern, fortemente associada ao nascimento do país. Foi na
Schwurplatz que, em 1699, os súbditos de Schellenberg prestaram juramento de
lealdade ao novo governador, o príncipe Johann Adam Andreas von Liechtenstein,
que acabara de adquirir os direitos de domínio das terras ao condado de
Hohenems.
Ao cimo, no topo de uma colina,
recorta-se uma elegante igreja em estilo gótico, no mesmo lugar onde já no
século VI terá existido outra. As suas paredes estão pintadas de branco, as
portadas das janelas de vermelho e branco, num perfeito contraste com a
natureza.
O trilho segue agora ao longo da margem
do Reno, passa por Gamprin e, desviando-se das águas, continua pelo
meio da floresta Kratzera até alcançar Ruggell, o mais
setentrional dos munícipios do Liechtenstein e onde se deve espreitar a
Küefer-Martis-Huus, uma casa do século XVIII que acolhe o centro cultural.
Desde Ruggell são menos de 20 quilómetros até Schaanwald, que marca o
fim do trilho. Mas até lá ainda tem muito para mostrar, como a reserva natural
de Ruggeller Riet, a anteceder a ascensão até Schellenberg, com as ruínas dos
seus dois castelos para atrasarem o passo do caminhante. Está-se agora muito
próximo da fronteira com a Áustria, em Hinterschellenberg, de onde é possível
ver, assim o tempo o permita, o lago Constança. E a rota serpenteante continua,
aproxima-se da aldeia de Mauren, com a sua igreja dedicada a São Pedro e a São
Paulo, sobe até Fallsgass e abraça o trilho da árvore de seda (as amoreiras
eram em tempos de antanho utilizadas para a produção de seda) antes de cruzar
Birka (para a observação de aves) e, finalmente, dar um último suspiro em
Schaanwald.
Parece grande este pequeno país.
Uma
história com 300 anos
No
dia 23 de Janeiro de 2019, o Liechtenstein viveu um momento único com a
celebração do seu 300.º aniversário. Na verdade, como já referido, a
história do Principado começa uns anos antes, em 1699, com a aquisição das
Terras Baixas (Unterland) a uns nobres alemães à beira da falência e prossegue em 1712, ano em que a família se
torna também proprietária do condado de Vaduz, nos dias de hoje as Terras Altas
(Oberland). Sete anos mais tarde, em 1719, o Liechtenstein era elevado ao
estatuto de Principado pelo imperador Karl VI, ainda que sob as ordens do Sacro
Império Romano-Germânico.
A
independência chega, finalmente, em 1866 e, já em 1923, o principado assina um
acordo aduaneiro com a Suíça (um outro, com a Áustria, foi dissolvido em 1919,
provavelmente com receio de sanções económicas no rescaldo
da I Guerra Mundial), cuja moeda,
o franco suíço, circula
oficialmente desde então no Liechtenstein, para muitos uma extensão do vizinho
mas que, na verdade, se rege por uma política externa distinta – é membro
da ONU desde 1990 e integra, sem a companhia da Suíça, a Área Económica
Europeia desde 1995.
Embora
donos das terras, os monarcas sempre preferiram o conforto dos palácios
vienenses à monotonia do Principado. Com efeito, até à chegada de Franz
Josef II ao poder, em 1938 (foi príncipe soberano até à sua morte, em
1989), nenhum dos seus antecessores mostrou qualquer interesse em viver nestas
terras. Franz
Josef II foi o primeiro monarca a viver no Liechtenstein,
juntamente com Gina, a mulher que esteve sempre do seu lado nas decisões que
motivaram significativas mudanças na história e no crescimento económico do
país: de uma pobre nação, vivendo na sua ruralidade, transformou-se subitamente
num rico estado bancário.
Neutral
durante as duas guerras mundiais, o Liechtenstein também aboliu o
exército em 1868 e mesmo o efectivo policial é reduzido (80 oficiais e 40
civis) e está mais focado no crime económico, dada a popularidade do país como paraíso
fiscal, uma realidade que conheceu uma outra face quando, já
em 2000, foram banidos os clientes com contas anónimas nos bancos do
Principado.
Maior
produtor mundial de dentaduras postiças e com um dos mais altos PIB per
capita do mundo, o Liechtenstein é liderado por uma monarquia que não está
dependente financeiramente dos contribuintes. A dívida externa foi liquidada com património da família real, o
maior banco é propriedade do príncipe e a carga fiscal é baixa, estimulando a
presença de 75 mil empresas (o dobro do número de habitantes) no país.
As
festas de celebração prosseguem ao longo do ano, com exposições e outros
eventos culturais, e o dia 15 de Agosto será mais especial do que nunca – todos
estão convidados para beber um copo no castelo de Vaduz ao lado da família real
para um brinde a uma história de 300 anos. Mal a noite se imponha, o
fogo-de-artifício tratará de colorir os céus da pequena capital. E todos
continuam as suas vidas, aparentemente felizes.
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