quinta-feira, 11 de julho de 2019

Ainda há histórias de encantar que são reais



Serão felizes os habitantes de um país com um dos mais altos PIB per capita do mundo? Um belo passeio, uma bonita história nos nossos dias. Contada por Sousa Ribeiro. Ficamos gratos ao PÚBLICO.
Liechtenstein, o pequeno país das grandes caminhadas
Com menos de 25 quilómetros de comprimento, o país que se atravessa de carro em menos de meia hora tem agora um trilho que, como uma serpente, abraça, ao longo de 25 quilómetros, os 11 municípios que o integram.
SOUSA RIBEIRO
Fugas PÚBLICO, 6/7/2019
Imagine um país com 12,4 quilómetros de largura e 24,8 de comprimento. Um país que, de carro, se cruza em pouco mais do que 20 minutos e que, mesmo a pé, caminhando sem pressas, percorrendo um quilómetro em 15 minutos, levará pouco mais de seis horas a ser atravessado.
Esse país é o Liechtenstein, com uma área de apenas 160 km2 e não mais do que 78 quilómetros de fronteiras (41,2 com a Suíça e 36, 7 com a Áustria) que abrigam cerca de 38 mil habitantes que, todos os anos, a 15 de Agosto, dia nacional deste micro-estado, são convidados pelo príncipe Hans-Adam II (na verdade é o filho mais velho, Alois Philipp Maria, quem gere, desde 2004, os destinos do Principado) para beber uma cerveja ou um copo de vinho no castelo de Vaduz, sentinela da minúscula capital e residência oficial do monarca.
Conhecido por muitos apenas por alguns clichés e visitado anualmente por uns 70 mil turistaso Liechtenstein tem, desde o passado dia 27 de Maio, um novo atractivo que está a despertar, mais do que nunca, o interesse dos viandantes, muitos deles influenciados por publicações como a Lonely Planet, que incluiu o principado (sexto país mais pequeno do mundo, depois de São Marino, Tuvalu, Nauru, Mónaco e Vaticano) entre os dez países da Europa a visitar em 2019.  
É o Trilho do Liechtenstein, um percurso pedestre que se estende por 75 quilómetros, atravessando os 11 munícipios do país e a sua história, num total de 21 horas que podem (e devem) ser repartidas ao longo de alguns dias, tudo dependendo da condição física de cada um – e a cada um cabe a decisão de escolher por onde começar.
 Balzers, no Sul, é uma opção a ter em conta. Mas é muito provável que antes ainda de iniciar a caminhada sinta alguma dificuldade em desprender o olhar do imponente castelo que domina a vila, recortado pelas montanhas ainda mais magnificentes e vigiando, desde o topo da colina já habitada no Neolítico, as vinhas que, em socalcos, de um dos lados, se debruçam sobre o vale.
Situado, na vertical, 70 metros acima de Balzers e Mäls, o castelo Gutenberg foi erguido durante a Alta Idade Média e no local foram feitas, em anos mais recentes, algumas descobertas arqueológicas de grande significado histórico, entre elas uma pequena figura com apenas 12cm, conhecida como Mars von Gutenberg e em exposição no Museu Nacional do Liechtenstein. …
Desde o castelo, palco de inúmeros eventos culturais nos meses de Verão (acolhe inclusive casamentos), a panorâmica é soberba, convida a respirar as fragrâncias que uma brisa suave transporta, aquele ar puro que impele o viajante a percorrer trilhos onde na maior parte das vezes é acompanhado apenas pela solidão.
De Balzers a Triesen
Ao fundo avisto de novo Balzers e Mäls, os telhados das casas, tudo envolto em quietude a despeito da industrialização que caracteriza a primeira, com uma população que não ultrapassa os cinco mil habitantes
O trilho começa por rasgar o município de Balzers, onde ainda no século passado, em diferentes anos, foram encontrados importantes vestígios romanos. Sem demoras, os ruídos vão ficando para trás e é ao longo de uma antiga estrada romana que o percurso prossegue, muitas vezes num silêncio que deixa escutar o marulho produzido pelo Reno, sempre à minha esquerda, umas vezes mais distante, umas vezes mais próximo, até chegar a Triesen, com uma altitude semelhante à de Balzers, ligeiramente acima dos 500 metros em relação ao nível das águas do mar. 
Triesen, tão do agrado dos nobres durante a Idade Média, seduzidos pela natureza que se lhes oferecia à contemplação para construírem as suas casas nas colinas, no meio dos bosques e das florestas, convida a permanecer por ali por uns instantes, antes que a caminhada se torne mais árdua, com tempo para fazer comparações entre a parte alta e a parte baixa da aldeia. É na primeira, por vezes com vistas imperdíveis sobre o vale e o Reno, tantas vezes vítima, num passado remoto, de inundações, deslizamento de terras e incêndios, que se concentram as atracções que prendem o olhar dos turistas, como a igreja de St. Gallus, renovada ao longo do século passado mas mantendo o campanário projectado pelo arquitecto Georg Wingelmüller.
Muitos turistas nem se apercebem mas a igreja destaca-se mais por outros motivos e não tanta pela sua beleza estética ou peso histórico: abriga, na verdade, e já desde 1940, uma larga comunidade de morcegos-de-orelhas-de-rato, a quem foram concedidas medidas de protecção (com sucesso) durante as grandes obras de restauro que a igreja conheceu entre 1991 e 1994, agora sob a responsabilidade do arquitecto suíço Walter Bosshart.
Triesen parece envolta num olhar doce, cativa nos detalhes, nos pequenos recantos, na sua história. Um total de 14 quilómetros no primeiro dia ao longo do trilho do Liechtenstein pode completar-se em pouco mais ou menos quatro horas. A parte que se segue é a mais crítica mas o tempo dá tempo para que se aprecie essa calma, quase maternal, que a aldeia exala. Triesen desenvolveu-se muito à custa dos aproveitamentos hidroeléctricos, motivando o aparecimento de um conjunto de actividades que impulsionou definitivamente o comércio – havia trabalho nas serrações, entre os ferreiros, nos moinhos, a água corria pelo meio da aldeia.
Tudo se perdeu, até a força da corrente que agora se arrasta à minha frente por entre muros de pedra, tendo as montanhas como fundo, tão inacessíveis.
Àquela hora já havia passado por antigas casas de ferreiros, por outras onde os agricultores entregavam o leite, pela praça tão tranquila, pela fonte que remete para o trágico fim de Trisun, a velha Triesen, destruída após um deslizamento de terras, pela Marienkapelle.
A cultura walser
…Há quem admita que as suas origens remontam ao século IX ou X, verdade ou não St. Marmeta é o monumento que mais olhares atrai em Triesen – olhares que, perante a panorâmica, logo se perdem também no vale, na força da natureza, na aldeia que vive na sua serenidade lá em baixo. A partir daqui, o trilho sobe, tudo se torna mais silencioso, os prados são verdes, lamas e alpacas contribuem para sentir que não estamos sozinhos no mundo, por entre as árvores despontam por vezes os telhados de Balzers e de Triesen, a visão dos Alpes Suíços aprisiona.
Até que se chega a Triesenberg, uma aldeia situada 900 metros acima do nível das águas do marnão há outra numa posição tão elevada no país e não há outra, no Liechtenstein, que tanto preserve a herança walser, esse povo que se adaptou às duras condições de vida nas montanhas, não só no Principado como também em Itália, na Suíça e na Áustria.
Os mais antigos documentos que fazem referência à presença dos walsers em Triesenberg remontam a 1355 e ainda hoje, quase 700 anos depois, os descendentes dessa cultura tão ancestral conservam muitas das tradições e um dialecto próprio e nem sempre fácil de entender. Um trilho permite conhecer esse passado, as lendas e as histórias, a cada passo o viajante cruza-se com figuras bizarras e, sem demoras, identifica-se com os lugares onde os walsers  terão começado por estabelecer-se, como em Masescha, antes ainda de se espalharem pelos vales e de fundarem o lugarejo de Triesenberg. É em Masescha, mais perto do céu, que se encontra uma das testemunhas dessa existência tão singular, materializada numa capela que honra o santo Theodul, um lugar sagrado para os walsers desde tempos imemoriais. Frequentes são os encontros das diferentes comunidades de walsers espalhadas pelas zonas alpinas, com os seus trajes típicos, o seu folclore, um legado que também pode ser apreciado no museu situado no centro da aldeia. …
A pacata Vaduz
O trilho deixa para trás Triesenberg, não tarda mostra um enorme rochedo (com uns cinco metros de comprimento e quatro e meio de largura) com 400 milhões de anos e sobe depois até Profatscheng, as vistas sobre o vale por onde corre apressado o Reno prendem a atenção e logo se inicia um percurso a descer, pelo meio da floresta, ao encontro das ruínas do castelo Schalun, construído no século XII.
A natureza exibe agora um delicado mosaico de cores, aqui e ali despontam pequenas quintas, mas o silêncio perdura e a errância faz-se, na maior parte das vezes, numa solidão que contribuiu para um quadro ainda mais harmonioso.
Mais para a frente, já numa zona plana, o castelo de Vaduz começa a insinuar-se e a impor-se no meio da paisagem. Erguido como fortaleza no século XII, o castelo é referido pela primeira vez em documentos em 1322, quase 400 anos antes de ser adquirido pela família real, que dele fez residência oficial entre 1712 e 1732, quando começou a exibir sinais de decadência. É apenas no início do século passado, entre 1905 e 1912, que a estrutura é restaurada e, mais tarde, por decisão do príncipe Franz Josef, aumentado para se transformar, a partir de 1939, na residência oficial desta (rica).
Um trilho estreito leva-me do castelo ao centro de Vaduz, onde seis mil habitantes e alguns turistas não chegam para perturbar uma cidade com uma atmosfera de vila ou aldeia mas onde não faltam motivos para absorver o tempo de quem a visita. Desde logo no Museu de Arte, projectado pelo arquitecto suíço Meinrad Morger, com uma interessante exibição de arte moderna e contemporânea, depois pelo Museu Nacional, para uma melhor identificação com a história do Liechtenstein, mais para a tarde nos Correios e Museu do Selo, que lembra a longa tradição dos serviços postais do país. Inaugurado em 1930, apenas abriu ao público seis anos mais tarde, com uma mostra impressionante de colecções de selos editados no Liechtenstein desde Fevereiro de 1912 – e ainda hoje a filatelia continua a atrair um grande número de coleccionadores ao país.
O dia esgota-se em Vaduz, a apreciar o edifício parlamentar desenhado pelo arquitecto alemão Hansjörg Göritz, a catedral de St. Florin e a Alte Rheinbrücke, a ponte coberta que liga os munícipios de Vaduz a Sevelen. Com um comprimento de 135 metros, é a única estrutura em madeira a cruzar as águas do Reno e já foi por mais do que uma vez reerguida – uma delas na sequência de uma ruptura, em 1927, na barragem de Schaan.
O berço do nascimento
É por Schaan que passa, algum tempo depois, o trilho, não sem antes nos conduzir pela parte antiga de Vaduz, pela Casa Vermelha, propriedade da família Rheinberger desde o início do século XIX (Egon Rheinberger foi um famoso pintor, arquitecto e escultor local) e de onde se obtém uma vista admirável do castelo de Vaduz, prosseguindo depois por uma zona plana, através da floresta e passando pela universidade.
Até que se chega ao centro de Schaan, às ruínas de um forte romano, na certeza de que há tempo para explorar ainda mais, como, após uma subida, o convento de St. Elizabeth, recuperando forças para uma subida íngreme que conduz, seguindo o trilho pelo meio da floresta, a Planken, o mais pequeno dos munícipios do Liechtenstein, de onde se goza de um cenário majestoso, umas vezes com os olhos postos no vale, outras com ele fixo na cadeia montanhosa designada Três Irmãs.
Planken, com as suas casinhas que parecem retiradas de um postal, é a aldeia onde nasceram os esquiadores Hanni e Andreas Wenzel, que conquistaram seis das dez medalhas obtidas pelo Liechtenstein nos Jogos Olímpicos de Inverno entre 1976 e 1984.
É tempo de descer, percorrendo um caminho montanhoso que acaba por desaguar, ao fim de algum tempo, em Nendeln, onde me detenho para espreitar algumas ruínas romanas antes de iniciar o trajecto que leva a Eschen. O trilho, como uma serpente, passa por Güdigen, por Aspen, deixa ver a capela de Rofenberg, entra-se depois numa secção do histórico trilho de Eschnerberg (que permite ao viajante descobrir as origens do Liechtenstein e o leva até aos assentamentos pré-históricos de Lutzengütle e de Malanser) e já se avizinha Bendern, fortemente associada ao nascimento do país. Foi na Schwurplatz que, em 1699, os súbditos de Schellenberg prestaram juramento de lealdade ao novo governador, o príncipe Johann Adam Andreas von Liechtenstein, que acabara de adquirir os direitos de domínio das terras ao condado de Hohenems.
Ao cimo, no topo de uma colina, recorta-se uma elegante igreja em estilo gótico, no mesmo lugar onde já no século VI terá existido outra. As suas paredes estão pintadas de branco, as portadas das janelas de vermelho e branco, num perfeito contraste com a natureza.
O trilho segue agora ao longo da margem do Reno, passa por Gamprin e, desviando-se das águas, continua pelo meio da floresta Kratzera até alcançar Ruggell, o mais setentrional dos munícipios do Liechtenstein e onde se deve espreitar a Küefer-Martis-Huus, uma casa do século XVIII que acolhe o centro cultural. Desde Ruggell são menos de 20 quilómetros até Schaanwald, que marca o fim do trilho. Mas até lá ainda tem muito para mostrar, como a reserva natural de Ruggeller Riet, a anteceder a ascensão até Schellenberg, com as ruínas dos seus dois castelos para atrasarem o passo do caminhante. Está-se agora muito próximo da fronteira com a Áustria, em Hinterschellenberg, de onde é possível ver, assim o tempo o permita, o lago Constança. E a rota serpenteante continua, aproxima-se da aldeia de Mauren, com a sua igreja dedicada a São Pedro e a São Paulo, sobe até Fallsgass e abraça o trilho da árvore de seda (as amoreiras eram em tempos de antanho utilizadas para a produção de seda) antes de cruzar Birka (para a observação de aves) e, finalmente, dar um último suspiro em Schaanwald. 
Parece grande este pequeno país.
Uma história com 300 anos
No dia 23 de Janeiro de 2019, o Liechtenstein viveu um momento único com a celebração do seu 300.º aniversário. Na verdade, como já referido, a história do Principado começa uns anos antes, em 1699, com a aquisição das Terras Baixas (Unterland) a uns nobres alemães à beira da falência e prossegue em 1712, ano em que a família se torna também proprietária do condado de Vaduz, nos dias de hoje as Terras Altas (Oberland). Sete anos mais tarde, em 1719, o Liechtenstein era elevado ao estatuto de Principado pelo imperador Karl VI, ainda que sob as ordens do Sacro Império Romano-Germânico.
A independência chega, finalmente, em 1866 e, já em 1923, o principado assina um acordo aduaneiro com a Suíça (um outro, com a Áustria, foi dissolvido em 1919, provavelmente com receio de sanções económicas no rescaldo da I Guerra Mundial), cuja moeda, o franco suíço, circula oficialmente desde então no Liechtenstein, para muitos uma extensão do vizinho mas que, na verdade, se rege por uma política externa distinta – é membro da ONU desde 1990 e integra, sem a companhia da Suíça, a Área Económica Europeia desde 1995.
Embora donos das terras, os monarcas sempre preferiram o conforto dos palácios vienenses à monotonia do Principado. Com efeito, até à chegada de Franz Josef II ao poder, em 1938 (foi príncipe soberano até à sua morte, em 1989), nenhum dos seus antecessores mostrou qualquer interesse em viver nestas terras. Franz Josef II foi o primeiro monarca a viver no Liechtenstein, juntamente com Gina, a mulher que esteve sempre do seu lado nas decisões que motivaram significativas mudanças na história e no crescimento económico do país: de uma pobre nação, vivendo na sua ruralidade, transformou-se subitamente num rico estado bancário. 
Neutral durante as duas guerras mundiais, o Liechtenstein também aboliu o exército em 1868 e mesmo o efectivo policial é reduzido (80 oficiais e 40 civis) e está mais focado no crime económico, dada a popularidade do país como paraíso fiscal, uma realidade que conheceu uma outra face quando, já em 2000, foram banidos os clientes com contas anónimas nos bancos do Principado.
Maior produtor mundial de dentaduras postiças e com um dos mais altos PIB per capita do mundo, o Liechtenstein é liderado por uma monarquia que não está dependente financeiramente dos contribuintes. A dívida externa foi liquidada com património da família real, o maior banco é propriedade do príncipe e a carga fiscal é baixa, estimulando a presença de 75 mil empresas (o dobro do número de habitantes) no país.
As festas de celebração prosseguem ao longo do ano, com exposições e outros eventos culturais, e o dia 15 de Agosto será mais especial do que nunca – todos estão convidados para beber um copo no castelo de Vaduz ao lado da família real para um brinde a uma história de 300 anos. Mal a noite se imponha, o fogo-de-artifício tratará de colorir os céus da pequena capital. E todos continuam as suas vidas, aparentemente felizes.

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