Leituras para desemburrar. De um Homem
fiel aos valores da hombridade intelectual e moral. Leituras para elevar um
povo e despertar ousadias de "barões", fosse isso ainda possível.
POLÍTICA: O paradoxal
itinerário político de Alberto Franco Nogueira e a chamada “crise da direita”
PÚBLICO, 3/7/2019
A
sua passagem do patriotismo liberal ao nacionalismo realista em função da
própria evolução da questão nacional pode servir de tema de reflexão e caminho
de esclarecimento no momento actual político.
Falar hoje de Franco Nogueira e do seu
pensamento político e itinerário intelectual pode trazer-nos pistas para
percebermos melhor a chamada crise da direita portuguesa e da sua representação
política.
Franco
Nogueira começa por nos trazer um paradoxo: o que é que faz com que o
crítico literário com claras simpatias culturais de esquerda republicana e
liberal, o diplomata profissional, sensível aos imperativos da Realpolitik e
distante da ortodoxia do Estado Novo, venha depois a transformar-se numa
espécie de guia e consciência crítica da direita pós-salazarista nos últimos
anos do anterior regime?
O
facto é que o paradoxal itinerário político de Franco Nogueira acaba por dar um
sentido coerente àquilo que vai definir o pensamento da direita nacional e
social portuguesa no século XX. Não só à sua afirmação e propostas mas também
às suas dúvidas e contradições. É nessa medida que o seu caminho intelectual e
o seu ideário político são tão interessantes e importantes para o panorama da
direita e das direitas portuguesas na segunda metade do século XX.
Em Portugal, nos últimos cinquenta
anos, é a esquerda que tem contado a História e estabelecido os conceitos, em
termos de opinião pública e publicada. E não só depois do 25 de Abril, porque
já era dominante nos tempos em que o poder político era monopólio da direita do
Estado Novo. Isto é, Portugal viveu na prática a teoria gramsciana: também aqui
o domínio cultural (da esquerda) precedeu o seu triunfo político.
Salazar: ortodoxia e pragmatismo
A
direita – e as direitas – exerceram o governo de Portugal num modelo
autoritário, apoiado pelas Forças Armadas, durante o quase meio século que vai
de 1926 a 1974. O conteúdo ideológico desses governos foi um nacionalismo
conservador, simbolizado por uma trilogia também conservadora – Deus, Pátria e
Família. Depois do período da ditadura militar, as várias direitas foram
institucionalmente integradas por Salazar numa organização: a União Nacional.
Essa organização não tinha, entretanto, qualquer voz activa na definição da
política do país: Salazar dominava o pensamento político, definindo uma espécie
de ortodoxia nacional-corporativa que se ficaria mais pela letra que pela
prática; e, como quase todas as personalidades dominantes e dominadoras, secou
a concorrência no seu próprio campo.
Salazar era um homem de convicções e princípios
sólidos mas estava pronto a adaptações. Fora do seu núcleo de convicções e
princípios essenciais – a defesa da independência nacional, o catolicismo
solidarista dos chamados “Papas Sociais” e um autoritarismo e decisionismo
realistas inspirados no maurrasismo – era pragmático quanto a métodos e
caminhos.
A esquerda, dominando hoje a História
e o jornalismo de divulgação, ao contar a História e as “histórias da
História”, adoptou, por estratégia interessada nuns casos e por ignorância
noutros, a técnica da amálgama. Álvaro Cunhal, um leninista inteligente e que não
hesitava em pôr a verdade factual ao serviço da Grande Verdade metapolítica do
fim da História e da realização do Comunismo, seguiu sempre essa técnica,
tentando reconduzir o Estado Novo à odiosa matriz nazi-fascista.
Ora, tal estava longe da realidade: foi também com pragmatismo que Salazar olhou, por
exemplo, o fascismo italiano, identificando-se com ele numa perspectiva de
combate comum contra o “perigo comunista”, em relação ao qual não via
capacidade de resistência nas oligarquias constitucionais dos países do Sul
europeu. Assim, aproximou-se do fascismo no anticomunismo e nalgum léxico
político-insitucional “corporativo”, recusando também as pretensões das duas
famílias políticas que o tinham apoiado, os monárquicos e os católicos, dizendo
não à restauração dos Bragança e não à reversão da Lei da Separação.
Sobre
este tema multiplicaram-se os escritos, sobretudo depois do 25 de Abril,
tentando aproximar e comparar – para incluir – o que era dificilmente
aproximável e comparável. Isto, mesmo depois de Hanna Arendt, uma pensadora política insuspeita de simpatias
“fascistas” e muito menos nazis, nos
ter vindo trazer uma distinção vital entre democracia, autoritarismo e
totalitarismo, incorrendo no “pecado mortal” de aproximar o nacional-socialismo
e o comunismo soviético na eliminação dos inimigos de raça ou de classe. Fosse como fosse, a propaganda conseguiu equiparar ao
terrível modelo nazi, em termos teóricos e políticos, regimes como o
salazarismo, o franquismo e o fascismo mussoliniano, regimes que, não sendo nem
pretendendo ser democráticos, não eram
totalitários, deixando espaço a
alguma liberdade, nomeadamente na religião e na economia.
O
Estado Novo de Salazar não foi fascista, até porque o fascismo é também um
movimento revolucionário, populista, que tem um projecto de mudança de
sociedade, um movimento que é também utópico, voltado para o futuro. O Estado
Novo foi, sim, um nacionalismo autoritário e conservador, em que o poder político
tinha por objectivo manter a sociedade como estava e conduzir controladamente e
autoritariamente a nação e a sociedade por caminhos de que o desenvolvimento
económico e o progresso social não estavam excluídos mas em que não eram os
objectivos principais.
A resposta às ameaças
Estes
objectivos principais eram a conservação da integridade do
território, da independência e do poder nacional e da ordem social. A
“ideologia” do salazarismo vai assim, pragmaticamente, moldar-se em função das
circunstâncias e das ameaças. Daí o seu lado realista, pouco ou quase nada
“ideológico”.
Saído de um período de perseguição
republicana e democrática aos católicos e aos monárquicos – a Primeira
República –, ameaçado pelo contágio da esquerda revolucionária espanhola e
europeia e pelo “perigo comunista”, o Regime defendeu-se duramente nas ruas e
através da propaganda e da repressão. E aliou-se aos fascismos em Espanha; mas,
prezando sempre a independência nacional, manteve-se neutro na Segunda Guerra
Mundial e passou, a partir de 1943, à neutralidade colaborante com os Aliados e
futuros vencedores.
Entre 1946 e 1949, defendeu-se da
ofensiva oposicionista unida e, a partir de 1954, estava já a pensar nas
consequências para a unidade do Império Português das políticas
descolonizadoras inscritas na nova ordem bipolar e nos seus textos
fundamentais. Em 1958 foi o choque Humberto Delgado e em 1961 a intentona
Botelho Moniz.
Salazar
constata – com alguma pena, mas sem aparente surpresa – que os grupos base do
regime, os monárquicos e os católicos, já então marchavam por outros caminhos.
E verifica, a partir do Inverno de 1960-61, que os ventos da mudança sobre a
Índia e Angola ameaçam o que era para ele mais importante – a unidade
territorial do Império que, aceleradamente, tenta integrar. E aproveitando o choque
na opinião nacional e popular causado pelos massacres da UPA no Norte de Angola
consolida uma nova base político-social de apoio e renova, de certo modo e do
modo certo, a sustentação do regime, que atingira o seu ponto mais baixo nas
eleições de 1958.
É
nesta conjuntura de 1961 que
muita gente – adversária, indiferente e até inimiga – vai passar, por
imperativo patriótico, a apoiar o regime. E Salazar, com sentido político, vai
abandonar a agora caduca clivagem entre o conservadorismo político-social
ordeiro e o progressismo democrático para se aplicar na invenção ou reinvenção
de um patriotismo ultramarinista, em que possam caber tanto partidários como
opositores. E é então apoiado por um sector “republicano histórico”, nostálgico
da Primeira República, colonial e imperial.
Franco Nogueira – um percurso
singular
É neste quadro que Franco Nogueira vai
aceitar responsabilidades políticas no Governo. Não é nem nunca vai ser da
União Nacional, nem ninguém lhe pede que o seja, e está ainda mais longe de ter
qualquer espécie de simpatia e de identidade com linhas nostálgicas
fascistizantes ou de nacionalismo radical e populista.
Tem,
de resto, um conhecimento amplo do panorama literário da sua geração, marcado
pelo Neorrealismo, crítico do Regime e da sociedade tradicional
portuguesa. Os elementos do tradicionalismo direitista português – a
Igreja, a Monarquia, o Integralismo Lusitano (onde aponta, em António
Sardinha, condenáveis tendências iberistas) também não lhe são muito
simpáticos. As suas afinidades literárias de esquerda são constantes e
conhecidas e no seu Jornal de Crítica Literária há mais admiração por
escritores como Gide, Malraux e Aragon do que pelos seus congéneres
conservadores.
Mas
a partir da sua entrada no Ministério dos Negócios Estrangeiros vê-se, nos
relatórios coligidos por Fernando Castro Brandão, uma propensão para o
realismo e para a Realpolitik com um imanente desprezo pela ideologia; atribui
aos Estados uma espécie de instinto de sobrevivência ditado pelo interesse
nacional, um “egoísmo” que faz com que as ideologias não mudem muito o fundo
das coisas: assim, com Bismark, Stressman, Hitler ou Adenauer a Alemanha é
sempre a Alemanha. Não bem a mesma, mas com alguma continuidade. Do mesmo modo,
a Rússia, a eterna Rússia, continua de Ivan o Terrível a Pedro o Grande, de
Lenine a Estaline. O que, em minha opinião, e com toda a amizade, respeito e
admiração que sempre tive e tenho por Franco Nogueira, não será exactamente
assim.
Nos
anos cinquenta, Franco Nogueira passa a ter, com os ministros Paulo Cunha e
Marcelo Mathias, um papel mais activo na política do MNE, na Repartição dos
Negócios Políticos, cuja direcção-geral vai chefiar, a partir de Janeiro de
1959, por nomeação de Mathias.
Da
presença nas frentes diplomáticas – em Nova Iorque e em Washington, como nas
capitais europeias e em Lisboa – subirá para o Governo, depois do fracasso da
intentona Botelho Moniz, em Abril de 1961. Toma posse em 4 de Maio.
A
prática de uma política em que há uma nota de intransigência de princípio
levará Franco Nogueira a aproximar-se progressivamente de outras bases e raízes
ideológicas – as do nacionalismo conservador do Estado Novo. É
naturalmente realista e, logo, propenso a ser sensível e até obediente ao
imperialismo dos factos contra o idealismo das vontades.
A
sua inserção no Regime e aceitação pela nomenklatura não foram fáceis. Alguns,
mais vigilantes ou zelosos, não deixaram de se sentir incomodados pela chegada
daquele republicano histórico e pragmático, quase “do Reviralho”. E a suspeita
nunca passou: lembro-me que a participação de Franco Nogueira, quando Ministro,
em reuniões do famoso grupo Bildeberg foi vista como um sinistro sinal de
pertença ao colectivo secreto mundialista.
Mas a fronteira amigo-inimigo, para
usar a terminologia schmittiana, já não era então direita maurrasiana
tradicional ou do Estado Novo versus republicanismo partidário e maçónico da
Primeira República; a grande dicotomia era então definida pela questão
África-Europa, ou seja, ultramarinistas versus europeístas. Ainda que o ultramarinismo de Salazar e Franco
Nogueira fosse menos um sentimento de pertença física, identitária, apaixonada
(semelhante ao dos “Africanos” das campanhas de ocupação ou da Primeira
República) e mais a convicção de que a perca de África, do Ultramar, traria a
prazo riscos para a independência do país, diminuindo o poder nacional
português em relação a Espanha e à Europa; ou seja, a ideia de que, sem as
massas críticas africanas, o desequilíbrio peninsular poderia levar a uma
progressiva integração no bloco ibérico. E
mais, quer o chefe do Governo, quer o seu Ministro, tinham a convicção de que
Portugal, privado de uma soberania político-militar assente nos tambores e nas
bandeiras, não tinha capacidade de conservar a influência económico-cultural
nos então territórios ultramarinos.
À
luz do que veio a acontecer, talvez fosse um exagero e um erro. Mas foi este sentimento que levou o patriota
constitucional e liberal Franco Nogueira a tornar-se, como defensor
intransigente da unidade e integração nacional, um adversário da liberalizante
evolução na continuidade de Marcelo Caetano. E, reflexamente, a tornar-se um
anti-liberal, um anti-abertura e, a seu modo, um pós-salazarista, atrás do qual
se concentravam os “ortodoxos” e radicais da direita. Se os havia…
Rectificações ideológicas
O que é que isto tem que ver com a
situação que se vive hoje? Como entronca na suposta “crise das direitas
partidárias nacionais”, assinalada pelo Presidente da República e ponto de
partida de debate e discussão?
Primeira
reflexão e conclusão: para mim, a chamada direita partidária ainda é a direita
desenhada e permitida pela esquerda triunfante em 1974-75. Sintomaticamente, os
seus líderes, por acomodação ou convicção ideológica, continuam a não admitir
sequer o rótulo de “direita”, proclamando-se de centro-direita e até de
centro-esquerda. Foi este “centro” que perdeu, este o centro que está em crise,
até porque as suas bandeiras não conseguiram mobilizar o eleitorado que não
votou na esquerda.
Daqui a dúvida de que estes partidos –
mesmo se coligados em nome de uma frente anti-esquerda, evocando o fenómeno histórico e perfeitamente localizado da AD de Sá Carneiro – tenham compreendido a circunstância euroamericana ou as necessidades
sistémicas de uma força à direita. Também por isso fraquejam.
A
dicotomia direita-esquerda hoje, numa Europa marcada pelo esvaziamento do
centro, pela fragmentação dos partidos e pela volatilidade dos eleitorados, tem
menos que ver com questões relacionadas com a economia e com a propriedade do
que questões de identidade colectiva: nacionalistas versus globalizadores, ou
Europa das Nações versus Nação Europa. E
tem também que ver com um combate ao progressismo civilizacional, com as
políticas anti-vida, as micro-causas
das minorias, a
ideologia de género e o policiamento da linguagem em nome de um léxico de características
orwellianas. Combate que os tais partidos da tal suposta direita que está em
crise não partilham ou sequer referem.
No seu tempo, há 50 anos, Franco
Nogueira, ao deixar de ser ministro dos Negócios Estrangeiros de Marcelo
Caetano, escolheu a ruptura ideológica e as suas consequências. Mesmo não querendo ou não tendo sido capaz de
organizar um partido ou movimento político que corporizasse uma alternativa,
teve a capacidade de assumir, em nome do que entendia ser o bem público e o
imperativo nacional, uma carga ideológica conservadora, e até aparentemente
tradicionalista, que não estava na sua formação. Deu assim o salto ideológico
da coerência.
Nesse
sentido, depois da falência e do colapso do centro, talvez seja tempo de, a
partir de dicotomias mais realistas, se definirem novas contradições e novas
sínteses, capazes de configurar o que verdadeiramente está hoje em jogo na
definição do território ideológico e doutrinário.
É
por isso que digo que a evolução do pensamento político de Franco Nogueira, a sua passagem do patriotismo liberal ao
nacionalismo realista em função da própria evolução da questão nacional, pode
servir de tema de reflexão e de caminho de esclarecimento para o momento
político actual.
Nota
Final: Escrevi
o texto que aqui adapto para a sessão de apresentação do livro “Tóquio”, de
Alberto Franco Nogueira, que teve lugar no Instituto Diplomático do MNE a 24 de
Junho. A apresentação do livro, propriamente dita, foi feita pelo Embaixador
Freitas Ferraz.
Vale
a pena ler “Tóquio”
(Lisboa, Tinta da China, 2019), uma
espécie de Diário de um ano, o ano de 1946, de um observador atento e fascinado
que procura disfarçar, por pudor, essa atenção e esse fascínio. É um belo
testemunho histórico numa escrita corrida, limpa, de guião de cinema, uma
excelente crónica de um tempo pós-apocalíptico que dá à profunda humilhação dos
vencidos convencidos um sentido de renascimento e ressurreição. Não nos podemos esquecer que os filmes americanos da
Segunda Guerra, até “Tora, Tora, Tora”, trataram os soldados e os cidadãos do
Império do sol-nascente como arqui-malvados: “evil yellow monkeys” merecedores
do fogo dos lança-chamas dos Marines e da “humanitária” bomba atómica. E ainda
que o nosso olhar acabe sempre por ser escravo do tempo e do lugar, ou por ficar,
de alguma forma, “perdido na tradução”, Franco Nogueira consegue nunca tratar
como cenário ou como figurantes as cenas e as figuras que em Tóquio nos vai
dando a conhecer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário