Não, não vou comparar os mundos – íntimo
o de Pessoa e os seus heterónimos,
nas suas temáticas de extraordinárias análises da sua realidade subjectiva, embora
de inspiração vivencial; mais objectivas e debruçadas sobre a realidade que
geralmente contesta, as temáticas de Alberto
Gonçalves, na graça constante da sua mordacidade. Contudo, desta vez AG deixou-se
embalar na ternura não dos quarenta mas dos seus cinquenta, e criou um texto de
referência ao seu aniversário, desta vez revelando uma sensibilidade diferente,
de quem sente a velocidade crescente da passagem do tempo, à medida que os anos
se acrescentam e que conta mais – ou é igualmente indiferente - o tempo que
passou do que aquele que se espera que passe, não dando muitas vezes ocasião a que
se tome em mãos experiências ou leituras adiadas, para um amanhã que muitas
vezes não vai chegar, os desvios sendo correntes, na floresta de novidades e
mesmo de prazeres ou de banalidades que prendem os mais velhos ao sofá dos seus
encantos visuais e auditivos.
Não, Alberto Gonçalves não se identifica, certamente, com as fontes de
inspiração a que recorre Fernando
Pessoa, mas porque lhe reconhecemos uma inteligência crítica de excepcional
brilho, que nos orgulha, envolvemos os seus anos - além de 5 dos 168
comentários (nem todos, aliás, merecedores da designação) - em dois poemas de homenagem,
que o são também para Fernando Pessoa, sempre: no sentimento de vazio, inutilidade e angústia que acorrenta tantas vezes a
existência humana e que aquele tão magistralmente analisa, seguido, aliás, com
escorregadia angústia, por AG.
1- Ricardo
Reis
Antes de nós
nos mesmos arvoredos
Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.
Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.
Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.
Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.
Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga.
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo? (8-10-1914. ODES de RICARDO REIS)
O que fazer quando se fazem 50 anos /premium
OBSERVADOR, 27/7/2019
Se o que importa é o que fazemos com
os anos, a verdade é que, nestes 50, fiz o que quis, o que pude, o que soube e
principalmente o que calhou. Amanhã, faço 50 anos. E depois de amanhã, faço o
quê?
A
Apolo 11? Crescemos juntos. Amanhã, 28 de Julho, também faço 50 anos. Excepto
manter-me vivo, não fiz muito por isso: os anos foram aparecendo feitos, pé
ante pé, todos alinhadinhos e sempre mais furtivos e ligeiros. É impressionante
que a crescente rapidez dos aniversários contraste com a progressiva lentidão
do aniversariante. A rapidez, aliás, não é apenas impressão. À medida que se
acumulam, os sacanas dos anos tornam-se de facto fugazes, e curtos, dado que
cada um representa uma porção cada vez menor da nossa existência. Devagarinho,
chega-se aos 20. Para os 30 é um salto. Num instante, chega-se aos 40. Aos 50
nem se chega: chegam eles, de repente e sem pedir licença. Minto. Os 50 anos
não se limitaram a ser feitos: fizeram-se anunciar com a persistência das
sombras. Aos 40 já sentimos os 50 a caminho. Aos 45 já sentimos a ameaça dos
50. Aos 49 já nos sentimos com 50. Aos 50? Não sei, só os completo amanhã. Dá
azar celebrar os anos antes do tempo.
De
resto, celebrar o quê? Percebo que a época vigente é fértil em exercícios de
auto-satisfação. Não percebo porquê. Uma simples espreitadela às “redes
sociais” descobre resmas de indivíduos encantadíssimos com as próprias virtudes
e conquistas. Pessoas aborrecidas como a morrinha afirmam-se, sem gota de
ironia ou dúvida, felizes, frontais, generosas, realizadas, decididas,
destemidas, lúcidas, “resolvidas” (santa paciência) “empoderadas” (Deus nos
acuda) e “pró-activas” (desisto). Recentemente, deparei na internet com uma
senhora que se considera “guerreira”, casada com um “marido guerreiro” e mãe de
dois “filhos guerreiros” – pelo menos a batalha da palermice está ganha. Em
suma, trata-se da versão alargada do fresco renascentista “Pés à Beira da
Piscina”, em que X deseja exibir à humanidade a alegria dos seus dias, a
sensatez das suas escolhas, o arranjo cósmico que fintou biliões de
probabilidades com o solitário objectivo de colocar X naquela exacta estância
balnear, a suscitar a inveja dos outros. Por sorte, os outros, aos 20, aos 30,
aos 40, aos 50, aos 110 anos mostram-se igualmente impecáveis e a incitar
raivas alheias. Eu não.
Nunca,
salvo em momentos assaz específicos e justificáveis, estive desgraçadamente
mal. Nunca, salvo em momentos breves e curiosos, me ocorreu que não podia estar
melhor. Nunca, até por desconhecimento das consequências das alternativas, me
congratulei pelas decisões que tomei ou me arrependi das decisões que não
tomei. Nunca me tive em grande ou pequena conta: procuro não me ter em conta.
Tenho tido, tudo somado, sorte. E, em doses aceitáveis, alguns azares. Nas
pessoas, nos lugares, no trabalho e na saúde, nos ganhos e nas perdas. Não me
posso queixar, embora me queixe com frequência e ocasionalmente com razão. Se
o que importa não é fazer anos, e sim o que fazemos com os anos, a verdade é
que, nestes 50, fiz o que quis, o que pude, o que soube e principalmente o que
calhou. Não fiz planos. Fiz asneiras das grossas. Fiz proezas das finas. Ou
acho que fiz. Se fiz estas e aquelas, raramente fiz caso. Amanhã, faço 50 anos.
E depois de amanhã, faço o quê?
Lidar
com o passado é fácil, com o futuro nem tanto. A história de que a vida começa aos 50 implica regressar à escola ou somente
disponibilidade para acreditar em patranhas? Claro que a frase popular é “A
vida começa aos 40”, mas consta que os 50 são os novos 40, os 40 são os novos
30, os 30 os novos 20, os 20 os novos 10 e os 10 a idade mental de quem engole
semelhantes baboseiras. É aritmética básica: aos 50 anos, a vida começou há
50 anos. O que realmente começa aqui é a suspeita reforçada de que cedo ou
tarde a vida acaba. Dada a minha condição de hipocondríaco, não é uma novidade.
Dada a minha condição de mortal, não é uma extravagância. E não é um drama
(ai). É o que é: a certeza de que não avançamos para um estado de
discernimento superior. Se se avança para algum sítio é para onde doem as cruzes,
os olhos se cansam, o fôlego escasseia e aquele sinal escuro reclama exame
urgente. A sabedoria da velhice? A primeira coisa que precisamos saber é que é
uma treta.
A
segunda coisa é que não há problema, na medida em que não há solução. Há resoluções. A primeira resolução dos 50
anos é não me preocupar. A segunda é reverter a primeira. Apesar da conversa
fiada, e da dieta, e do exercício e das mil e duas promessas de eternidade e
felicidade garantidas por estudos seríssimos, um estudo instantâneo revela que,
estatisticamente, ser jovem é mais saudável do que não ser – e mais
recomendável em geral. Sendo improvável, e algo amalucado, entrar nos 50 a
fingir que voltei aos 30, tenciono, pois, preocupar-me, actividade que aliás
iniciei aos 40. Ou aos 20, não me recordo (é da idade). Recordo-me o suficiente
para concordar com um colega de crónicas, o senhor Montaigne, para quem a vida
fora uma sucessão de terríveis desgraças cuja maioria nunca aconteceu. É uma
vantagem dos pessimistas, olhar para trás e verificar que, perante as
expectativas, o saldo não foi negativo. Amanhã, basta-me olhar em frente,
imaginar uma sucessão de cataclismos e um dia, que espero distante, concluir à
beira do último suspiro que me enganei. Vai ser uma galhofa.
165 COMENTÁRIOS
fernando Fernandes: Um retrato suave de quem cumpriu meio século. Que
não lhe canse o dedo que prime a tecla. Parabéns!
pedro miguel Cardoso: Parabéns Alberto Gonçalves , que
conte muitos mais , que nunca lhe falte a argúcia para continuar a tecer as
suas crónicas que tanto admiro.
Maria José Melo: Quero deixar-lhe os PARABÉNS
para amanhã. Tem razões para gostar de viver apesar da situação em que se
encontra este Portugal. Desejo continuar a ler as suas crónicas por muitos e
bons anos.
Joaquim Moreira: Antes de mais, os meus parabéns
sinceros e leais. Mesmo que o esteja a fazer cedo demais. Mas faço-o com muito
prazer, porque é dos cronistas que gosto mesmo de ler. Agora até de ouvir,
porque é dos poucos que pensa pela sua cabeça e não faz ouvidos moucos. Até
posso, aqui ou ali, discordar, mas não é por isso que deixo de gostar. E se é
verdade, como dizia Martin Luther King: "Para criar inimigos não é
necessário declarar guerra, basta dizer o que pensa", para mim é uma nobre
e escassa qualidade. Num país de carneiros, onde os políticos sem ideias se
põem à frente, é muito bom saber que nem todos são carneiros, como esta triste
gente. E pode crer, faça os 50 anos à vontade, porque ainda tem muito tempo
pela frente. E, confesso, até o desejo por egoísmo, porque sendo um pouco mais
velho, fazem-me falta as crónicas e as opiniões de quem combate os patetas e
idiotas do "anti-fascismo".
André Ondine: Parabéns!
Que seja um bom dia e outro grande ano de textos corajosos e assertivos, pois
bem precisamos. Se o Ministro Cabrita souber do seu aniversário ainda lhe envia
um daqueles kits inflamáveis. Mas, em caso de fogo, não os use. Foram só 70.000
kits de propaganda. Em caso de incêndio, deve olhar-se para os kits e pensar
"quem me dera ter um a sério...". Parabéns. E obrigado pelos seus
textos semanais.
Álvaro de
Campos
ANIVERSÁRIO
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de
há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma
religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por
mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter
esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da
vida.
Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino.
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que
fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim
da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme
através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo
frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de
manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o
que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos
na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto
na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por
minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na
algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
(ÁLVARO DE CAMPOS)
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