sábado, 6 de julho de 2019

Vox clamans



Salles da Fonseca trata primeiramente da ambição de cada um de nós, mortais banais, e afasta-se redondamente da parceria no caso das promoções pessoais mais centradas na habitual aspiração a locupletação em termos de cabedais, coisa que, aliás, é exemplificada diariamente, pelo menos por cá, que até dos dinheiros da generosidade alheia, para reconstrução de lares ardidos, nos servimos para outros lares não considerados no cômputo realizado, ainda hoje ouvi. Mas a maioria limita-se, nesse objectivo, aos jogos aleatórios, sobretudo a mísera raspadinha, mais de acordo com a nossa realidade económica estreitinha.

As ambições de Salles da Fonseca centram-se em leituras, também enriquecedoras, é certo, e as suas aspirações são, naturalmente, mais louváveis do que aquilo por que nos debatemos, nós os “amigos das cifras”, seja por necessidade, seja por desmesura gananciosa – o meu caso. Caso perdido, como o da maioria, hélas! Mas foi por conta da sua ambição de leituras volumosas, por vezes incompatíveis com a disponibilidade temporal, que Salles da Fonseca conseguiu um resumo do que procurava num livro em dois tomos, de Karl Popper - e que transcreve, a respeito da falsidade da “profecia”, como algo que contraria a realidade social, e por consequência a individual, de diligência e saber práticos para dirigirmos os nossos próprios destinos, sem sujeição a dogmas míticos… ou místicos, já vindos dos tempos bíblicos. Adriano Lima faz também a sua resenha do assunto, com natural elegância e saber, e expõe igualmente sobre esse pormenor profético bíblico tão assinalado, e ao que parece, com tantos resquícios de veracidade que até contém o ventre de um peixão para um tal Jonas profetizar em Nínive a destruição desta, caso não houvesse arrependimento das maldades tamanhas do povo assírio. Mas houve, e Jeová perdoou – de momento - os habitantes de Nínive, convertidos, contrariamente às profecias, o que muito desgostou Jonas, que se zangou com Jeová e preferiu morrer a ver-se humilhado, ainda mais depois da viagem indecorosa a Nínive, no ventre do bicho marinho. O certo é que Nínive veio a ser destruída, os ingleses guardaram os restos dos seus palácios sumptuosos e os terroristas do Estado Islâmico destruíram o resto, há poucos anos, no actual Iraque. Com profecias ou sem elas, assim passamos, “como o rio”.
Mas é bom que haja pessoas bem vivas e não tão sugestionáveis como os leitores dos “profetas” do determinismo histórico marxista. Pessoas como Salles da Fonseca e os seus amigos, que têm os pés e a cabeça bem assentes e artilhados. E leiamo-los com emoção e conversão idênticas às que safaram os habitantes de Nínive, naquele tempo.
Quanto ao determinismo histórico, procurei na Internet um pequeno texto para melhor favorecer o entendimento das exigências políticas de Salles da Fonseca, e no meio de extenso texto, fixei-me no seguinte, de origem brasileira, que não corresponde bem à temática requerida, mas que ajuda a descodificar as intenções do autor deste, de resto, bastante claro nas suas observações de simplicidade e objectividade, complementadas com os esclarecimentos de Adriano Lima:


NOTAS:
HISTORICISMO
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
O novo historicismo rejeita o carácter inalterável dos processos históricos, acreditando na agência do indivíduo sobre eles, e se detém sobre os limites dessa actuação individual. Para o novo historicismo, interferências que parecem ser únicas podem ser múltiplas a partir do poder de associação das acções individuais sobre a energia colectiva e social.  Em segundo lugar, o novo historicismo é contrário à ideia de que o historiador deve negar todos os juízos de valor ao analisar outras épocas. Em sua perspectiva, a análise histórica, seja por analogia ou causalidade, não está isenta de juízos de valor, assim como a neutralidade também assume um carácter político. Por fim, os críticos ligados ao novo historicismo mostram-se mais interessados em conflitos e contradições geralmente associadas às margens da história, tais como festas populares, sonhos, relatórios sobre doenças, relatos sobre a insanidade, diários e autobiografias, entre outros problemas. Desta forma, é sobre as fronteiras da compreensão histórica e a ressonância do objecto histórico que o novo historicismo se atém, procurando, assim, entender a rede de circunstâncias que o envolvem.
O termo novo historicismo possui algumas poucas referências presentes nas discussões do historicismo europeu, que se restringem à gerência do individuo frente às estruturas sociais, económicas ou culturais, ao optimismo no futuro e à especificidade histórica e cultural das ideias.

CRÓNICA:
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 05.07.19

Todos queremos mais do que temos e eu, entre outras queixas, tenho a de que na minha putativa longevidade não conseguirei encaixar tudo o que gostaria de estudar - por exemplo, aquela obra em dois tomos de Karl Popper “A sociedade aberta e os seus inimigos”. Já estive com ela várias vezes na mão mas são dois tomos e… afasto-me do escaparate às arrecuas.
Contudo, de forma totalmente inesperada, foi Raymond Aron que a págs. 116 da edição portuguesa das suas “Memórias” me facilitou a vida transcrevendo uma passagem do dito livro, logo da terceira página do primeiro tomo, em que Popper resume o que se propõe fazer com a dita obra: “Este livro tenta mostrar que a sabedoria profética é nociva, que a metafísica da História obsta à aplicação do método científico, elemento por elemento, aos problemas das reformas sociais. E esforça-se também por mostrar como podemos tornar-nos fazedores do nosso destino quando pararmos de nos arrogar o papel de profetas.
Pela informação de Aron se fica a saber que Popper se referia com erudição ao falhanço já então previsível da profecia a que há quem chame o determinismo histórico marxista e nós, testemunhas da queda do muro de Berlim e do colapso da URSS, sem erudição, podemos afirmar que Marx foi, afinal, um adivinho que não acertou.
Julho de 2019, Henrique Salles da Fonseca

COMENTÁRIOS:
Anónimo 05.07.2019: Profecias? Ainda hoje não sei bem o que isso é. Só desconfio!
Adriano Lima 05.07.2019: Estou de acordo com a extrapolação que se retira desta excelente síntese feita pelo Dr. Salles. É como se joeirasse a extensa e dura matéria desses dois tomos da obra de Karl Popper para simplesmente nos deixar a essência. De facto, creio que cada vez mais se acumulam razões para banirmos definitivamente os profetas do nosso convívio intelectual. E para olhar com desconfiança os que para isso se candidatem, porque os haverá sempre enquanto a mente humana continuar a abrigar espaço para o mito e a fantasia. Os profetas bíblicos ousaram interpretações sobre o homem e o mundo com base naquilo que se inscrevia no pouco espaço geográfico à sua volta e nas dispersas tribos que o habitavam. Como pouco tinham à sua mercê para fundamentar os seus juízos, deixavam que o espírito abrisse as asas da imaginação. Tudo bem. O problema é que a literatura profética que nos deixaram (aos judeus e cristãos, principalmente) continua nos dia de hoje a ser citada com credulidade e temor reverencial, mesmo por gente que convive com a ciência.
Sim, Dr. Salles, Marx foi também um profeta porque, embora dispondo de um mundo bem mais vasto para o seu olhar analítico do que os da Bíblia, a sua interpretação materialista da história e a sua visão dialéctica da transformação social reduziram o tempo e o espaço da história humana à visão particular que o século XIX lhe oferecia. Assim, também ele deixou que o espírito lhe soltasse as rédeas da imaginação, ofuscando-lhe um olhar necessariamente mais prospectivo e aprofundado da realidade. Lenine não tardaria a trocar-lhe as voltas ao estabelecer que a transformação social só seria possível com uma vanguarda revolucionária, a ditadura do proletariado. E o resultado é o que se sabe.

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