segunda-feira, 22 de julho de 2019

Sei quem vai reviver com gosto



A nossa amiga, é claro, e só tenho pena de não colocar nestes textos as fotos ou os mapas que enriquecem o “A BEM DA NAÇÃO”, entre os quais a vista da cidade de Quelimane. Mas a imagem que perdura será sempre a leveza e vivacidade do “traçado” escrito, para além dos dados geográficos e a narrativa histórica de quem amou as coisas pátrias e de quem viveu os tempos históricos de que se falava nos meus tempos de trabalho, na terra onde nasci e vivi. Recordo, por exemplo, do que se dizia sobre a guerra do Vietnam, de que era ela que estava a suster a deflagração do terrorismo nas nossas colónias, que o comunismo apoiava em força. Quando acabasse aquela, cabia-nos a vez a nós, coisa em que eu, anjinha, nunca acreditei, julgo que a nossa amiga também não, na sua Zambézia que costuma evocar com saudosismo sempre. Também me lembro da questão do açúcar, que era cultivado lá e as ramas enviadas para as fábricas de cá, para ser reexportado para lá, empacotado, por política manhosa de Salazar, protectora da Metrópole, que não permitia a construção de fábricas nas suas “províncias ultramarinas”, às quais convinha um desenvolvimento mediano, que não possibilitasse ideias separatistas inoportunas. Só mesmo já no fim da “picada” é que se construiu na Manhiça uma açucareira, para ajudar, pela doçura, à manutenção dos portugueses por ali. Pelo que leio na Internet, as fábricas açucareiras aumentaram, já após a saída dos portugueses, o que constituirá, sem dúvida, um bem a considerar no desenvolvimento industrial moçambicano, por obra e graça, talvez, dos chineses, os novos avassaladores do universo, como por aqui também se vê, e sempre em jeitos de “doçura”, por enquanto, sem quebras e com a eficácia sinuosa e silenciosa qb:
«Investimentos dão a volta a um dos sectores mais afectados pela crise militar»:  Os investimentos feitos nos últimos cinco anos na reactivação da indústria açucareira moçambicana, avaliados em cerca de 800 milhões de dólares, fizeram disparar a produção do sector, de 90 mil para 450 mil toneladas/ano na actualidade….»

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 20.07.19
Saídos do Molocué, o nosso destino era o Hotel do Chuabo, na avenida marginal de Quelimane. Cerca de 300 quilómetros, nada que assustasse carro valente e gente pertinaz. Tudo dependeria da qualidade das estradas já que sabíamos de antemão que alcatrão seria coisa que não encontraríamos. Mas como sabíamos também que uma parte significativa do algodão chegava ao porto de Quelimane por caminho de ferro, admitimos duas hipóteses: ou as estradas eram irrelevantes para a economia do algodão e estariam ao abandono ou o comboio não ia àquela zona da Zambézia e as estradas estariam esburacadas por causa do excesso de camiões. Ah! Gente incrédula nas virtudes dos governantes! As estradas estavam perfeitamente utilizáveis e fizemos um passeio transzambeziano de cariz turístico, nada a ver com stressantes guias de marcha militares.
Lembro-me – apesar do empilhamento dos calendários já gastos – que parámos numa cantina para o almoço em vez de comermos em andamento até porque eu sempre gostei de ter o nosso «herói» bem atestado e ali havia uma bomba de gasolina. Lembro-me que o «herói» almoçou gasolina mas do nosso almoço já não me lembro. O mais certo é ter sido o famoso «frango à cafreal» mas os meus companheiros de viagem que confirmem ou corrijam. O Xicuembo não é aqui chamado a depor, ele não almoçou.
Pelo que eu não esperava era pela continuação dos cajueiros. Não tenho dúvidas de que aquela gente não dependia apenas do trabalho nas plantações de algodão, tinha também de seu. E essa condição de proprietário dá uma dignidade à pessoa que se topa à distância. E lá pensei eu novamente que no futuro – fosse ele quando fosse, tinha então acabado a Guerra do Vietname e tudo indicava que os próximos alvos mundiais a abater seríamos nós – os comunistas teriam problemas por ali. E, passada a tal dezena de anos que já referi à saída de Nampula, repetiram-se aqui os ditos problemas com a RENAMO a «passar a perna» à FRELIMO.
E à medida que fomos descendo, fui-me lembrando dos «prazos» e das concessões às companhias majestáticas que por ali tinham existido, lembrei-me dos jesuítas que ali fizeram guerra aos «donos» dessas majestades todas à semelhança do que o Padre António Vieira fizera no Nordeste brasileiro contra os «coronéis». E lembrei-me do Padre (Diogo?) Furtado de Mendonça, jesuíta ele também, que no séc. XVIII (?) fez um dicionário sena-português e fixou a gramática dessa língua local, lembrei-me da guerra que os ingleses do açúcar («Sena Sugar» e que tais) fizeram a essa política de dignificação das gentes locais conseguindo que a Companhia de Jesus fosse então expulsa de Moçambique. Mais me lembrei de que foram os franciscanos que, combinados com as populações, esconderam os jesuítas renitentes na saída até que, ameaçados de serem também eles expulsos, se renderam à evidência de que havia negócios diplomáticos mais poderosos do que os «cordelinhos» que eles conseguiam mexer. Um dos últimos jesuítas a ser posto no cais de embarque terá sido precisamente o P. Furtado de Mendonça que embarcou num navio francês com destino ao Egipto para daí passar a pé ao Mediterrâneo e daí a Lisboa. Mas ao largo da Somália o Padre caiu à cana com o paludismo que trazia, ninguém lhe conseguiu valer e morreu. Diz quem estudou o assunto (a própria Companhia de Jesus) que do diário de bordo desse navio consta que o mar estava encapelado, que a cerimónia de entrega do corpo defunto ao mar se fez na presença de inúmeros passageiros e que no momento em que o corpo entro nas águas, o mar se acalmou de modo inexplicável. Sim, de tudo isso me fui lembrando à medida que íamos descendo a Zambézia…
Passámos ao largo de Mocuba, de Nicoadala apenas vimos as placas indicativas de direcção nos entroncamentos com a nossa estrada e entrámos na região baixa, a dos palmares. Esta, uma zona de serenidade como quem por ali anda a ouvir os côcos a crescer. Não sei quando é a faina da apanha dos côcos mas, havendo-a, não era naquela época.
E assim foi que numa penada passámos da economia do algodão para a do açúcar e finalmente para a da copra; as duas primeiras com os povos a fazerem pé de meia com o caju e na terceira com as pedras semipreciosas do aluvião que a todos por ali viu nascer.
Foi, pois, com toda a serenidade que entrámos em Quelimane e nos encaminhámos ao Hotel.
Continuemos… amanhã há mais.
Julho de 2019
Henrique Salles da Fonseca

COMENTÁRIO:
Adriano Lima 20.07.2019: Mais uma crónica carregada de interesse pelas evocações que o narrador vai fazendo enquanto vence as distâncias ao volante do heróico Fiat. E deixa saudoso de África quem o lê e andou pelo continente.

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 21.07.19
Feito o check in no hotel e feitas as abluções típicas de um final de viagem por estradas com algum pó, eis-nos a caminho da sala de jantar, no último piso do hotel. E qual não foi o meu espanto quando vi que a dita sala de jantar estava apinhada e que, pelo sotaque, se tratava de americanos. Já não eram crianças nenhumas, lembro-me bem. Ao estilo de gente já reformada mas com saúde. Disse-me o sena que nos serviu que se tratava de um grupo de caçadores. Se aquela gente se pusesse toda aos tiros, duvido que restasse algum elefante ou búfalo que pudesse ir prevenir os sobrevivos das respectivas espécies de que o bicho homem ensandecera por completo. Não gostei de saber que a caça se organizava para grupos tão grandes e, passados estes 47 anos, temo que a mortandade não tenha cessado – só que, agora, clandestinamente e às mãos do comércio de marfim e da farmácia chinesa.
Com pensamentos algo plúmbeos devido ao tiroteio por diversão, limitei-me a olhar para fora enquanto jantávamos e tentei desviar as ideias para outros temas. E olhei para o «Rio dos Bons Sinais», ali mesmo por baixo do meu nariz. Foi Vasco da Gama que em 1498 assim chamou ao rio que então poderia estar (ou não) numa daquelas fases em que mais não é do que um braço do delta do «Zambeze». Quando a ligação ao grande rio se fecha (por assoreamento, creio), este rio menor junta-se ao «Lua-Lua» e formam o «Quá-Quá» mas o nome dado por Vasco da Gama mantém-se em qualquer situação. Não imaginava eu que dentro de cerca de 2 anos alguém me encarregaria de coordenar o projecto de redinamização do Porto de Quelimane. Missão essa nas vésperas do 25 de Abril de 1974, tudo ficou em «águas de bacalhau». Quem diria que bacalhau teve águas em Quelimane.
E, realmente, a actividade portuária estava reduzida em relação ao que eu dela esperava. Perguntado, o mesmo sena que nos servia informou que o rio estava cheio de matope (não disse assoreado, lembro-me) e que só barcos pequenos ali chegavam. - E vão até onde entregar a mercadoria aos barcos grandes? Não sabia, fez um gesto largo com a mão em direcção ao mar… Fiquei sem saber como era escoado o algodão e o melaço do açúcar (ou seria ainda só a cana?) mas, na verdade, por ali não havia actividade fluvial correspondente à economia que víramos no interior. Que estradas nos esperariam dali até à Beira?
E aí, o nosso «expert» em geografia, o Miguel, falou:
- Temos que sair muito cedo para apanharmos o primeiro batelão que sai de Mopeia. Caso contrário, arriscamo-nos a ficar numa bicha (ainda não se dizia «fila») de camiões e só conseguirmos atravessar o Zambeze ao fim do dia.
- E a que é que chamas «muito cedo»?
- Temos que nos levantar às 3 da manhã para começarmos a andar pelas 4 e chegarmos a Mopeia não muito depois das 6, se não apanharmos muito trânsito de camiões à nossa frente.
Lembro-me perfeitamente das expressões «protocolares» que o Tó e eu proferimos. Fique o Leitor tranquilo pois não as repetirei aqui.
Do mal, o menos: o nosso «herói» tinha comido e bebido à chegada a Quelimane para não ir para a cama com fome; na madrugada seguinte já não demoraríamos a satisfazer-lhe as precisões.
Às 4 da manhã rodei a chave da ignição e o «herói» despertou com a sua habitual boa disposição. Dos cerca de 200 quilómetros que nos separavam do destino, o cais fluvial de Mopeia, fizemos quase metade em noite de breu mas a luz começou pelas 5 e tal da manhã e às 6 e picos estávamos na pequena fila de candidatos à primeira viagem diária do batelão. À nossa frente, dois ou três carros ligeiros e apenas um camião. Sobrava espaço pois o batelão era um «cacilheiro» dos grandes. Chamavam-lhe batelão certamente que por tradição e porque entrávamos por uma ponta e saíamos pela outra.
E com esta «mania» de acordar antes das galinhas, fiquei sem ver o que nos rodeava em grande parte do percurso. Mas presumo que não fosse muito diferente do que vi, luz alta: estrada construída em aterro ao estilo «dique», terrenos circundantes que dariam para arrozais se as enchentes não fossem tão fortes, gado em pastoreio extensivo, nada mais que condutor atilado conseguisse ver sem correr o risco de pôr o carro a pique do lado de fora da estrada.
Entrados no batelão, foi o mesmo preenchido com mais carga ligeira e só o tal único camião que nos antecedia.
- Então, Miguel, onde está a tal bicha de camiões?
- Não sei, mas antes assim do que com mais outros que desequilibrassem a carga do batelão.
E a travessia fez-se com todo o equilíbrio, sem sustos nem nada de especial para contar. O Zambeze estava benigno, o Xicuembo não tinha ficado no cais de Mopeia, viera connosco até à margem sul, a Chupanga.
A ver…
Amanhã há mais.
Julho de 2019
Henrique Salles da Fonseca

COMENTÁRIO:
Adriano Lima 21.07.2019: Divertido, muito divertido, Dr. Salles. Acabei agora mesmo de ler e fiquei mais rico com estas informações que prestou sobre a geografia física e humana daqueles lugares. Penso que deve ter escrito um diário durante a sua experiência moçambicana, dada a precisão e ordem com que narra estas peripécias

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