A nossa amiga, é claro, e só tenho pena
de não colocar nestes textos as fotos ou os mapas que enriquecem o “A BEM DA NAÇÃO”, entre os quais a vista
da cidade de Quelimane. Mas a imagem
que perdura será sempre a leveza e vivacidade do “traçado” escrito, para além
dos dados geográficos e a narrativa histórica de quem amou as coisas pátrias e
de quem viveu os tempos históricos de que se falava nos meus tempos de trabalho,
na terra onde nasci e vivi. Recordo, por exemplo, do que se dizia sobre a
guerra do Vietnam, de que era ela que
estava a suster a deflagração do terrorismo nas nossas colónias, que o
comunismo apoiava em força. Quando acabasse aquela, cabia-nos a vez a nós,
coisa em que eu, anjinha, nunca acreditei, julgo que a nossa amiga também não,
na sua Zambézia que costuma evocar com saudosismo sempre. Também me lembro da questão do
açúcar, que era cultivado lá e as ramas enviadas para as fábricas de cá, para
ser reexportado para lá, empacotado, por política manhosa de Salazar,
protectora da Metrópole, que não permitia a construção de fábricas nas suas “províncias
ultramarinas”, às quais convinha um desenvolvimento mediano, que não possibilitasse
ideias separatistas inoportunas. Só mesmo já no fim da “picada” é que se
construiu na Manhiça uma açucareira,
para ajudar, pela doçura, à manutenção dos portugueses por ali. Pelo que leio
na Internet, as fábricas açucareiras
aumentaram, já após a saída dos portugueses, o que constituirá, sem dúvida, um
bem a considerar no desenvolvimento industrial moçambicano, por obra e graça,
talvez, dos chineses, os novos avassaladores do universo, como por aqui também se vê,
e sempre em jeitos de “doçura”, por enquanto, sem quebras e com a eficácia sinuosa e
silenciosa qb:
«Investimentos dão a volta a um dos sectores mais afectados pela
crise militar»: “Os investimentos feitos nos últimos cinco anos na
reactivação da indústria açucareira moçambicana, avaliados em cerca de 800
milhões de dólares, fizeram disparar a produção do sector, de 90 mil para 450
mil toneladas/ano na actualidade….»
HENRIQUE SALLES DA
FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 20.07.19
Saídos
do Molocué, o nosso destino era o Hotel
do Chuabo, na avenida marginal de
Quelimane. Cerca de 300 quilómetros, nada que assustasse carro valente e
gente pertinaz. Tudo dependeria da qualidade das estradas já que sabíamos de
antemão que alcatrão seria coisa que não encontraríamos. Mas como sabíamos
também que uma parte significativa do algodão chegava ao porto de Quelimane
por caminho de ferro, admitimos duas hipóteses: ou as estradas eram
irrelevantes para a economia do algodão e estariam ao abandono ou o comboio não
ia àquela zona da Zambézia e as estradas estariam esburacadas por causa do
excesso de camiões. Ah! Gente incrédula nas virtudes dos governantes! As
estradas estavam perfeitamente utilizáveis e fizemos um passeio transzambeziano
de cariz turístico, nada a ver com stressantes guias de marcha militares.
Lembro-me
– apesar do empilhamento dos calendários já gastos – que parámos numa cantina
para o almoço em vez de comermos em andamento até porque eu sempre gostei
de ter o nosso «herói» bem atestado e ali havia uma bomba de gasolina.
Lembro-me que o «herói» almoçou gasolina mas do nosso almoço já não me lembro.
O mais certo é ter sido o famoso «frango à cafreal» mas os meus companheiros de
viagem que confirmem ou corrijam. O Xicuembo não é aqui chamado a depor,
ele não almoçou.
Pelo
que eu não esperava era pela continuação dos cajueiros. Não tenho dúvidas
de que aquela gente não dependia apenas do trabalho nas plantações de
algodão, tinha também de seu. E essa condição de proprietário dá uma
dignidade à pessoa que se topa à distância. E lá pensei eu novamente que no
futuro – fosse ele quando fosse, tinha então acabado a Guerra do Vietname e
tudo indicava que os próximos alvos mundiais a abater seríamos nós – os
comunistas teriam problemas por ali. E, passada a tal dezena de anos que
já referi à saída de Nampula, repetiram-se aqui os ditos problemas com a RENAMO
a «passar a perna» à FRELIMO.
E
à medida que fomos descendo, fui-me lembrando dos «prazos» e das concessões
às companhias majestáticas que por ali tinham existido, lembrei-me dos jesuítas
que ali fizeram guerra aos «donos» dessas majestades todas à semelhança do que
o Padre António Vieira fizera no Nordeste brasileiro contra os «coronéis». E
lembrei-me do Padre (Diogo?) Furtado de Mendonça, jesuíta ele também, que no
séc. XVIII (?) fez um dicionário sena-português e fixou a gramática dessa
língua local, lembrei-me da guerra que os ingleses do açúcar («Sena Sugar» e
que tais) fizeram a essa política de dignificação das gentes locais conseguindo
que a Companhia de Jesus fosse então expulsa de Moçambique. Mais me
lembrei de que foram os franciscanos que, combinados com as populações,
esconderam os jesuítas renitentes na saída até que, ameaçados de serem também
eles expulsos, se renderam à evidência de que havia negócios diplomáticos mais
poderosos do que os «cordelinhos» que eles conseguiam mexer. Um dos últimos
jesuítas a ser posto no cais de embarque terá sido precisamente o P. Furtado
de Mendonça que embarcou num navio francês com destino ao Egipto para
daí passar a pé ao Mediterrâneo e daí a Lisboa. Mas ao largo da Somália o Padre
caiu à cana com o paludismo que trazia, ninguém lhe conseguiu valer e morreu.
Diz quem estudou o assunto (a própria Companhia de Jesus) que do diário de
bordo desse navio consta que o mar estava encapelado, que a cerimónia de
entrega do corpo defunto ao mar se fez na presença de inúmeros passageiros e
que no momento em que o corpo entro nas águas, o mar se acalmou de modo
inexplicável. Sim, de tudo isso me fui lembrando à medida que íamos descendo
a Zambézia…
Passámos
ao largo de Mocuba, de Nicoadala apenas vimos as placas indicativas de
direcção nos entroncamentos com a nossa estrada e entrámos na região baixa, a
dos palmares. Esta, uma zona de serenidade como quem por ali anda a ouvir os
côcos a crescer. Não sei quando é a faina da apanha dos côcos mas, havendo-a,
não era naquela época.
E
assim foi que numa penada passámos da economia do algodão para a do açúcar e
finalmente para a da copra; as duas primeiras com os povos a fazerem pé de meia
com o caju e na terceira com as pedras semipreciosas do aluvião que a todos por
ali viu nascer.
Foi,
pois, com toda a serenidade que entrámos em Quelimane e nos encaminhámos ao
Hotel.
Continuemos…
amanhã há mais.
Julho
de 2019
Henrique
Salles da Fonseca
COMENTÁRIO:
Adriano Lima 20.07.2019: Mais uma crónica carregada de interesse pelas
evocações que o narrador vai fazendo enquanto vence as distâncias ao volante do
heróico Fiat. E deixa saudoso de África quem o lê e andou pelo continente.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 21.07.19
Feito
o check
in no hotel e feitas as abluções típicas de um final de viagem por
estradas com algum pó, eis-nos a caminho da sala de jantar, no último piso do
hotel. E qual não foi o meu espanto quando vi que a dita sala de jantar
estava apinhada e que, pelo sotaque, se tratava de americanos. Já não eram
crianças nenhumas, lembro-me bem. Ao estilo de gente já reformada mas com
saúde. Disse-me o sena que nos serviu que se tratava de um grupo de
caçadores. Se aquela gente se pusesse toda aos tiros, duvido que
restasse algum elefante ou búfalo que pudesse ir prevenir os sobrevivos das
respectivas espécies de que o bicho homem ensandecera por completo. Não gostei
de saber que a caça se organizava para grupos tão grandes e, passados estes 47
anos, temo que a mortandade não tenha cessado – só que, agora, clandestinamente
e às mãos do comércio de marfim e da farmácia chinesa.
Com
pensamentos algo plúmbeos devido ao tiroteio por diversão, limitei-me a
olhar para fora enquanto jantávamos e tentei desviar as ideias para outros
temas. E olhei para o «Rio dos Bons Sinais», ali mesmo por baixo do meu
nariz. Foi Vasco da Gama que em 1498 assim chamou ao rio que então poderia
estar (ou não) numa daquelas fases em que mais não é do que um braço do delta
do «Zambeze». Quando a ligação ao grande rio se fecha (por assoreamento,
creio), este rio menor junta-se ao «Lua-Lua» e formam o «Quá-Quá» mas o nome
dado por Vasco da Gama mantém-se em qualquer situação. Não imaginava eu que
dentro de cerca de 2 anos alguém me encarregaria de coordenar o projecto de
redinamização do Porto de Quelimane. Missão essa nas vésperas do 25 de Abril de
1974, tudo ficou em «águas de bacalhau». Quem diria que bacalhau teve águas em
Quelimane.
E,
realmente, a actividade portuária estava reduzida em relação ao que eu dela
esperava. Perguntado, o mesmo sena que
nos servia informou que o rio estava cheio de matope (não disse assoreado,
lembro-me) e que só barcos pequenos ali chegavam. - E vão até onde entregar a mercadoria aos barcos
grandes? Não sabia, fez um gesto largo com a mão em direcção ao mar… Fiquei
sem saber como era escoado o algodão e o melaço do açúcar (ou seria ainda só a
cana?) mas, na verdade, por ali não havia actividade fluvial correspondente à
economia que víramos no interior. Que estradas nos esperariam dali até à Beira?
E
aí, o nosso «expert» em geografia, o Miguel, falou:
-
Temos que sair muito cedo para apanharmos o primeiro batelão que sai de Mopeia.
Caso contrário, arriscamo-nos a ficar numa bicha (ainda não se dizia «fila») de
camiões e só conseguirmos atravessar o Zambeze ao fim do dia.
-
E a que é que chamas «muito cedo»?
-
Temos que nos levantar às 3 da manhã para começarmos a andar pelas 4 e
chegarmos a Mopeia não muito depois das 6, se não apanharmos muito trânsito de
camiões à nossa frente.
Lembro-me
perfeitamente das expressões «protocolares» que o Tó e eu proferimos. Fique o
Leitor tranquilo pois não as repetirei aqui.
Do
mal, o menos: o nosso «herói» tinha comido e bebido à chegada a Quelimane para
não ir para a cama com fome; na madrugada seguinte já não demoraríamos a
satisfazer-lhe as precisões.
Às
4 da manhã rodei a chave da ignição e o «herói» despertou com a sua habitual
boa disposição. Dos cerca de 200 quilómetros que nos separavam do destino, o
cais fluvial de Mopeia, fizemos quase metade em noite de breu mas a luz começou
pelas 5 e tal da manhã e às 6 e picos estávamos na pequena fila de candidatos à
primeira viagem diária do batelão. À nossa frente, dois ou três carros
ligeiros e apenas um camião. Sobrava espaço pois o batelão era um
«cacilheiro» dos grandes. Chamavam-lhe batelão certamente que por
tradição e porque entrávamos por uma ponta e saíamos pela outra.
E
com esta «mania» de acordar antes das galinhas, fiquei sem ver o que nos rodeava
em grande parte do percurso. Mas presumo que não fosse muito diferente do que
vi, luz alta: estrada construída em aterro ao estilo «dique», terrenos
circundantes que dariam para arrozais se as enchentes não fossem tão fortes,
gado em pastoreio extensivo, nada mais que condutor atilado conseguisse ver sem
correr o risco de pôr o carro a pique do lado de fora da estrada.
Entrados
no batelão, foi o mesmo preenchido com mais carga ligeira e só o tal único
camião que nos antecedia.
-
Então, Miguel, onde está a tal bicha de camiões?
-
Não sei, mas antes assim do que com mais outros que desequilibrassem a carga
do batelão.
E
a travessia fez-se com todo o equilíbrio, sem sustos nem nada de especial para
contar. O Zambeze estava benigno, o Xicuembo não tinha ficado no cais de
Mopeia, viera connosco até à margem sul, a Chupanga.
A
ver…
Amanhã
há mais.
Julho
de 2019
Henrique
Salles da Fonseca
COMENTÁRIO:
Adriano Lima 21.07.2019: Divertido, muito divertido, Dr. Salles. Acabei agora
mesmo de ler e fiquei mais rico com estas informações que prestou sobre a
geografia física e humana daqueles lugares. Penso que deve ter escrito um
diário durante a sua experiência moçambicana, dada a precisão e ordem com que
narra estas peripécias
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