Texto enviado por email, do blog A
BIGORNA de DAVID MARTELO. Um discurso de extraordinária força oratória,
demonstrativo de que, apesar dos progressos científicos e teóricos, a
capacidade dialéctica dos humanos pouco parece ter evoluído, como, de resto, informa
David Martelo, de tão extrema argúcia argumentativa se revela este discurso de
Cléon.
«DISCURSO DE CLÉON (Sobre a
revolta de Mitilene, na ilha de Lesbos) – Por Tucídides
Esta passagem da obra História da
Guerra do Peloponeso, de Tucídides, apresenta-nos a figura de Cléon e os seus inegáveis dotes oratórios. Rival
de Péricles, a dureza das suas posições políticas adaptar-se-iam bem ao
discurso dos “homens fortes” contemporâneos. A sua frase inicial é bem
significativa: “Já há muito tempo que estou convencido de que a democracia é
incompatível com a ideia de império...»
DISCURSO DE CLÉON SOBRE A REVOLTA DE
MITILENE (ILHA DE LESBOS), - Tucídides
Em 428 a.C., a ilha de Lesbos, que
fora durante meio século um dos mais fiéis aliados de Atenas, fez defecção da
Liga de Delos. Tal defecção podia alastrar a outras cidades e minar o domínio
ático na Ásia Menor. Lesbos, pela sua estratégica posição na região dos
estreitos do norte do mar Egeu, foi admitida na Liga do Peloponeso, embora os
peloponésios não lhe emprestassem uma eficaz ajuda. Os atenienses enviaram à
ilha o estratego Páccies no comando de 1 000 hoplitas, com 250 trirremes, do
que resultaria a submissão da cidade e a captura de muitos prisioneiros. Cléon,
adversário político de Péricles, tornara-se, após a sua morte, em 429 a.C., na
principal figura de Atenas. Após a chegada dos prisioneiros, os Atenienses
imediatamente executaram Sáleto, embora se tivesse oferecido, entre outras
coisas, para tentar obter a retirada dos Peloponésios de Plateias, que ainda se
encontrava cercada. Depois de deliberarem sobre o destino a dar ao prisioneiro,
decidiram, na fúria do momento, condenar à morte não só os prisioneiros
presentes em Atenas, mas toda a população adulta de Mitilene, do sexo
masculino, fazendo escravos as mulheres e as crianças. Foi sublinhado que Mitilene
se havia revoltado sem que, como nos outros casos, pertencesse ao império. Mas
o que, acima de tudo, fez aumentar a raiva dos Atenienses foi o facto de a
armada peloponésia se ter atrevido a ir até à Jónia em seu apoio, facto esse no
qual viam o resultado de uma rebelião longamente premeditada. Consequentemente,
enviaram um navio para comunicar a Páccies os termos do decreto,
recomendando-lhe que, sem mais demora, executasse os Mitileneus. O dia seguinte
trouxe com ele o arrependimento e a reflexão sobre a horrível crueldade do
decreto, o qual condenava uma cidade inteira à pena merecida apenas pelos
culpados. Logo que os embaixadores mitileneus em Atenas e os seus apoiantes
atenienses se aperceberam destes sentimentos, instaram com as autoridades no
sentido de submeter o caso novamente a votação, autorização que, facilmente,
obtiveram, dado que tinham a plena consciência de que a maioria dos cidadãos
desejava que o assunto fosse objecto de reconsideração. Foi, então,
prontamente, convocada uma assembleia, e, depois de ambos os lados terem
expressado as suas opiniões, Cléon, filho de Cleeneto, o mesmo que apresentara
a anterior moção que condenava os Mitileneus à morte e era considerado o homem
mais violento de Atenas e aquele que, de longe, maior poder detinha sobre o
povo, pediu a palavra e assim falou:
“Já
há muito tempo que estou convencido de que a democracia é incompatível com a
ideia de império, e nunca tanto como agora, perante a vossa mudança de opinião
no caso de Mitilene. Desconhecendo o receio de conspirações nas relações que,
no dia-a-dia, tendes uns com os outros, sois levados a pensar o mesmo
relativamente aos vossos aliados, não reflectindo em que os erros a que podeis
ser conduzidos ao ouvirdes os seus apelos ou dando curso à vossa compaixão
estão plenos de perigos para vós próprios e não vos trazem nenhuma gratidão da
parte dos mesmos aliados. Esqueceis, completamente, que o vosso império é um
despotismo e os vossos súbditos são conspiradores desafectos, cuja obediência é
assegurada não pelas vossas concessões suicidas, mas pela superioridade que vos
é dada pela vossa própria força e não pela lealdade deles. O que é acima de tudo alarmante neste caso é a constante
mudança de decisões de que parecemos padecer, como se desconhecêssemos o facto
de serem as más leis que nunca mudam muito mais benéficas para uma cidade do
que as boas leis despidas de autoridade, que uma lealdade insciente é mais útil
do que uma insubordinação de fina gente, e, por fim, que os homens comuns lidam
melhor com os assuntos públicos do que os seus concidadãos mais
intelectualmente prendados. Estes últimos querem parecer sempre mais
avisados dos que as próprias leis e dispostos a recusar qualquer proposta
apresentada, porque sabem que não conseguem mostrar a sua esperteza em matérias
de maior importância. Com este comportamento, frequentemente levam o país à
ruína. Em contrapartida, os que desconfiam da sua própria inteligência,
satisfazem-se com ser menos doutos do que as leis e menos habilidosos a
descobrir falhas no discurso de um bom orador. E, sendo mais apurados juízes do
que atletas rivais, são, geralmente, bem-sucedidos na condução dos negócios de
estado. São estes que devemos imitar, em vez de sermos levados, por
rivalidades de talentos e toleimas intelectuais, a aconselhar o povo contra as
nossas reais opiniões. “Por mim, mantenho o meu ponto de vista anterior e
admiro-me com aqueles que propuseram a reabertura do caso dos Mitileneus, sendo,
assim, responsáveis por uma demora que apenas beneficia os culpados, fazendo
com que a vítima proceda contra o agressor com o gume da sua raiva embotado. Isto,
sabendo-se que onde a vingança segue mais de perto a ofensa melhor a iguala e
mais adequadamente a retribui. Também me interrogo quem será o homem que
defenderá a posição contrária e pretenderá demonstrar que os crimes dos
Mitileneus nos são úteis e as nossas adversidades injuriosas para os aliados.
Um tal homem deve ter uma confiança desmedida na sua retórica, a ponto de se
aventurar a fazer prova de que aquilo que foi por todos decidido está, ainda,
por decidir, ou ter sido corrompido para tentar ludibriar-nos com elaborados
sofismas. Em controvérsias deste género, o estado dá os prémios a outros e
fica com os riscos para si próprio. Quem merece censura sois vós: por
serdes tão imprudentes, ao ponto de haverdes consentido nestas disputas; por
verdes um discurso como quem presencia um espectáculo, tirando conclusões por
ouvir dizer, julgando da praticabilidade de um projecto pela inteligência dos
seus defensores e confiando na versão de acontecimentos passados, não por
aquilo que os vossos olhos viram, mas pelas habilidosas considerações que
haveis escutado; por vos deixardes levar por qualquer novidade oratória,
recusando seguir uma opinião já aprovada; por vos deixardes escravizar por cada
novo paradoxo, desprezando os lugares-comuns; por terdes como primeiro
objectivo fazer o vosso próprio discurso, e, não conseguindo fazê-lo, ter como
melhor alternativa o parecer que, relativamente ao que dizem os outros, estais
em perfeita consonância, aplaudindo cada tirada quase antes de ser proferida e
sendo tão rápidos a entender um argumento como sois lentos em prever as suas
consequências; por pedirdes, se é que posso dizer assim, alguma coisa diferente
das condições em que vivemos, mesmo que compreendais inadequadamente essas
mesmas condições; por serdes escravos do prazer de ouvir e por vos comportardes
mais como a plateia de um retórico do que como representantes de uma cidade.
“Para vos livrar desta situação, vou prosseguir
demonstrando que nenhum estado alguma vez vos ofendeu tanto como fizeram os
Mitileneus. Posso ser
tolerante para com aqueles que se revoltam porque não podem suportar o nosso
império ou porque a isso foram forçados pelo inimigo. Mas para aqueles que
possuíam uma ilha com fortificações, que podiam recear os nossos inimigos
apenas através do mar e que dispunham da sua própria marinha para lhes dar
protecção, que eram independentes e tidos por vós na mais elevada consideração,
agir como fizeram, isso não leva o nome de revolta – porque revolta implica
opressão. Trata-se é de uma agressão gratuita, uma tentativa para nos
arruinar mediante o conluio com os nossos piores inimigos, uma ofensa pior do
que uma guerra que fizessem por sua conta para aquisição de poder. O destino
daqueles dos seus vizinhos que já se tinham rebelado e logo subjugados não
constituiu lição para eles. A sua própria prosperidade não podia
dissuadi-los de afrontar o perigo. Cegamente confiantes no futuro e prenhes
de esperanças bem acima das suas possibilidades, embora aquém da sua ambição,
declararam guerra e tomaram a decisão de preferir a força à razão, sendo o seu
ataque determinado não por qualquer provocação, mas sim pelo momento que lhes
pareceu propício. A verdade é que uma grande e boa fortuna, súbita e
inesperadamente conseguida, tende a tornar um povo insolente. Na maior parte
dos casos, é preferível para a humanidade ter sucesso com razão do que fora
dela, e é mais fácil, poderá dizer-se, escapar à adversidade do que preservar a
prosperidade. O nosso erro
foi termos distinguido os Mitileneus do modo que fizemos. Tivéssemos
nós, desde há muito tempo, tratado com eles como com os outros, e não se teriam
esquecido de quem eram, porque a natureza humana tão seguramente se torna
arrogante através da consideração como é reverente através da firmeza. Deixai, portanto, que sejam punidos consoante o seu
crime requer, e não queiram absolver o povo ao mesmo tempo que condenam a
aristocracia. O certo é que todos eles vos atacaram, sem distinção, embora
pudessem ter-nos pedido ajuda, caso em que estariam, agora, de novo na posse da
sua cidade. Mas não! Acharam que era mais seguro dar o seu apoio à aristocracia
e juntar-se à rebelião. Considerai, portanto, o seguinte: se sujeitais
ao mesmo castigo o aliado que se vê forçado a rebelar-se pelo inimigo e aquele
que o faz por sua livre vontade, qual deles, digam lá, é que se não rebelará
baseado no mínimo pretexto, quando a recompensa do sucesso é a liberdade e a
penalização do falhanço não é assim tão terrível? Nós, entretanto, teremos
que arriscar o nosso dinheiro e as nossas vidas contra um estado após outro, e,
se tivermos sucesso, receber uma cidade arruinada, donde deixámos de poder
tirar as receitas de que depende o nosso poderio, e, se formos vencidos,
ficamos com mais um inimigo e vamos ter de perder tempo, que podia ser empregue
a combater os nossos inimigos já existentes, a guerrear os nossos próprios
aliados. “Consequentemente, nenhuma esperança da clemência devida à fraqueza
humana, que a retórica possa instilar ou o dinheiro comprar, deve ser concedida
aos Mitileneus. A ofensa cometida não o foi de forma involuntária, mas
sim com malícia e de modo deliberado, e a compaixão só é devida aos que ofendem
inconscientemente. Por isso, antes como agora, me declaro contra a alteração da
vossa primeira decisão ou o dar ensejo aos três erros mais perniciosos para um
império – piedade, sentimento e indulgência. A compaixão é devida àqueles que são capazes de
retribuir o sentimento, não aos que em nenhuma circunstância se apiedarão de
nós, porque são nossos inimigos por natureza. Os oradores que nos querem
cativar pelo sentimento podem procurar outras arenas menos importantes para a
exibição dos seus talentos, em vez desta, onde a cidade pode ter de pagar uma
elevada penalização pelos seus levianos aprazimentos, enquanto eles recebem um
refinado reconhecimento pelas suas frases brilhantes. A indulgência deve ser
manifestada para com aqueles que serão nossos amigos no futuro, não para com
homens que hão-de ser sempre o que são agora, isto é, tão nossos inimigos como
dantes. Para resumir,
digo que, se seguirdes o meu conselho, fareis o que é justo com os Mitileneus
e, ao mesmo tempo, aquilo que é vantajoso, enquanto mediante uma outra decisão
não tereis da sua parte nada de tão certo como tendes passada uma sentença
contra vós próprios. Porque se fosse justa a sua rebelião queria dizer que
não o era a vossa dominação. No entanto, se, certos ou errados, estais
determinados a dominar, tendes de levar por diante os vossos princípios e
punir os Mitileneus conforme o vosso interesse requer, ou, então, desistir da
ideia do império e cultivar a honestidade isenta de perigos. Convencei-vos,
portanto, de que deveis dar-lhes o tratamento que eles vos dariam. Não
deixeis as vítimas que escaparam à conspiração ser mais insensíveis do que os
conspiradores que a produziram. Lembrai-vos, antes, do que eles vos teriam
feito se, acaso, saíssem vitoriosos, especialmente na sua condição de
agressores. Foram eles que atacaram os seus vizinhos sem motivo para tal,
que perseguiram as suas vítimas até à morte, tendo em conta o perigo que
previam poder advir se os deixassem sobreviver, uma vez que o que é vítima de
um erro gratuito é mais perigoso, se conseguir escapar, do que um inimigo leal
que não pode queixar-se de nada desse género. Não sejais, portanto,
traidores de vós próprios. Recordai, com o maior rigor possível, o momento de
sofrimento e a suprema importância que então atribuístes à sua derrota, e,
agora, pagai-lhes na mesma moeda, sem vos deixardes comover pela sua presente
fragilidade ou esquecendo o perigo que há bem pouco tempo impendeu sobre vós.
Castigai-os conforme merecem e dizei aos vossos outros aliados, através de um
exemplo expressivo, que a pena para a rebelião é a morte. Deixai-os
entender, de uma vez por todas, esta realidade, e, não tereis, com tanta
frequência, de deixar de prestar atenção aos vossos inimigos para lutardes com
os vossos próprios confederados.”
Tucídides – Guerra do Peloponeso – Capítulo IX Tradução de David Martelo
NOTAS:
Origem: Wikipédia, a enciclopédia
livre.
1
- Tucídides(Atenas, 460 a.C – Atenas, 400 a. C)
Escreveu
a História da Guerra do Peloponeso,
da qual foi testemunha e participante, em que, em oito volumes, conta a guerra
entre Esparta
e Atenas ocorrida
no século V a.C. Preocupado com a imparcialidade,
ele relata os factos com concisão e procura explicar-lhes as causas. Tucídides
escreveu essa obra pois pensava a Guerra do Peloponeso como um acontecimento de
grande relevância para a história da Grécia, mais do que qualquer outra
guerra anterior. Esta sua obra é vista no mundo inteiro como um
clássico, e representa a primeira obra do seu estilo. A obra de Tucídides foi
revalorizada no ocidente devido à tradução da História da Guerra do Peloponeso para
o inglês, por Thomas Hobbes.
Tucídides também foi um dos primeiros
a notar que as pessoas que sobreviviam às epidemias de peste em Atenas eram
poupadas durante os surtos posteriores da mesma doença, conhecimento importante
que num futuro remoto seria a base da vacinação. Portanto, considera-se que por conta de sua
imparcialidade analítica, Tucídides foi um dos pais da ciência histórica. A
sua imparcialidade levou-o a negar a influência de deuses nas suas análises, o
que gerou o seu exílio de Atenas. Pelo foco no problema da guerra e devido à
análise dos conflitos entre as Pólis da Grécia
Antiga, a corrente de pensamento teórico realista das Relações Internacionais, no século XX,
passou a considerar Tucídides como o "avô" do próprio realismo.
Notas: Desde o início da guerra do
Peloponeso recolheu dados para escrever sobre o assunto, que então agitava toda
a Grécia. Viveu a maior parte de sua vida na Trácia, relatando os factos da guerra e viajando algumas vezes
para se documentar com mais segurança.
2 –Cléon
(Anfípolis,
422 a.C.) foi um demagogo, político e
estratego
(general) ateniense, protagonista da Guerra do Peloponeso. Foi o primeiro
representante dos comerciantes na política ateniense, embora fosse um
aristocrata. Foi adversário de Péricles
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