terça-feira, 2 de julho de 2019

Uma página de Tucídides



Texto enviado por email, do blog A BIGORNA de DAVID MARTELO. Um discurso de extraordinária força oratória, demonstrativo de que, apesar dos progressos científicos e teóricos, a capacidade dialéctica dos humanos pouco parece ter evoluído, como, de resto, informa David Martelo, de tão extrema argúcia argumentativa se revela este discurso de Cléon.

«DISCURSO DE CLÉON (Sobre a revolta de Mitilene, na ilha de Lesbos) – Por Tucídides
Esta passagem da obra História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, apresenta-nos a figura de Cléon e os seus inegáveis dotes oratórios. Rival de Péricles, a dureza das suas posições políticas adaptar-se-iam bem ao discurso dos “homens fortes” contemporâneos. A sua frase inicial é bem significativa: “Já há muito tempo que estou convencido de que a democracia é incompatível com a ideia de império...»

DISCURSO DE CLÉON SOBRE A REVOLTA DE MITILENE (ILHA DE LESBOS), - Tucídides
Em 428 a.C., a ilha de Lesbos, que fora durante meio século um dos mais fiéis aliados de Atenas, fez defecção da Liga de Delos. Tal defecção podia alastrar a outras cidades e minar o domínio ático na Ásia Menor. Lesbos, pela sua estratégica posição na região dos estreitos do norte do mar Egeu, foi admitida na Liga do Peloponeso, embora os peloponésios não lhe emprestassem uma eficaz ajuda. Os atenienses enviaram à ilha o estratego Páccies no comando de 1 000 hoplitas, com 250 trirremes, do que resultaria a submissão da cidade e a captura de muitos prisioneiros. Cléon, adversário político de Péricles, tornara-se, após a sua morte, em 429 a.C., na principal figura de Atenas. Após a chegada dos prisioneiros, os Atenienses imediatamente executaram Sáleto, embora se tivesse oferecido, entre outras coisas, para tentar obter a retirada dos Peloponésios de Plateias, que ainda se encontrava cercada. Depois de deliberarem sobre o destino a dar ao prisioneiro, decidiram, na fúria do momento, condenar à morte não só os prisioneiros presentes em Atenas, mas toda a população adulta de Mitilene, do sexo masculino, fazendo escravos as mulheres e as crianças. Foi sublinhado que Mitilene se havia revoltado sem que, como nos outros casos, pertencesse ao império. Mas o que, acima de tudo, fez aumentar a raiva dos Atenienses foi o facto de a armada peloponésia se ter atrevido a ir até à Jónia em seu apoio, facto esse no qual viam o resultado de uma rebelião longamente premeditada. Consequentemente, enviaram um navio para comunicar a Páccies os termos do decreto, recomendando-lhe que, sem mais demora, executasse os Mitileneus. O dia seguinte trouxe com ele o arrependimento e a reflexão sobre a horrível crueldade do decreto, o qual condenava uma cidade inteira à pena merecida apenas pelos culpados. Logo que os embaixadores mitileneus em Atenas e os seus apoiantes atenienses se aperceberam destes sentimentos, instaram com as autoridades no sentido de submeter o caso novamente a votação, autorização que, facilmente, obtiveram, dado que tinham a plena consciência de que a maioria dos cidadãos desejava que o assunto fosse objecto de reconsideração. Foi, então, prontamente, convocada uma assembleia, e, depois de ambos os lados terem expressado as suas opiniões, Cléon, filho de Cleeneto, o mesmo que apresentara a anterior moção que condenava os Mitileneus à morte e era considerado o homem mais violento de Atenas e aquele que, de longe, maior poder detinha sobre o povo, pediu a palavra e assim falou:

“Já há muito tempo que estou convencido de que a democracia é incompatível com a ideia de império, e nunca tanto como agora, perante a vossa mudança de opinião no caso de Mitilene. Desconhecendo o receio de conspirações nas relações que, no dia-a-dia, tendes uns com os outros, sois levados a pensar o mesmo relativamente aos vossos aliados, não reflectindo em que os erros a que podeis ser conduzidos ao ouvirdes os seus apelos ou dando curso à vossa compaixão estão plenos de perigos para vós próprios e não vos trazem nenhuma gratidão da parte dos mesmos aliados. Esqueceis, completamente, que o vosso império é um despotismo e os vossos súbditos são conspiradores desafectos, cuja obediência é assegurada não pelas vossas concessões suicidas, mas pela superioridade que vos é dada pela vossa própria força e não pela lealdade deles. O que é acima de tudo alarmante neste caso é a constante mudança de decisões de que parecemos padecer, como se desconhecêssemos o facto de serem as más leis que nunca mudam muito mais benéficas para uma cidade do que as boas leis despidas de autoridade, que uma lealdade insciente é mais útil do que uma insubordinação de fina gente, e, por fim, que os homens comuns lidam melhor com os assuntos públicos do que os seus concidadãos mais intelectualmente prendados. Estes últimos querem parecer sempre mais avisados dos que as próprias leis e dispostos a recusar qualquer proposta apresentada, porque sabem que não conseguem mostrar a sua esperteza em matérias de maior importância. Com este comportamento, frequentemente levam o país à ruína. Em contrapartida, os que desconfiam da sua própria inteligência, satisfazem-se com ser menos doutos do que as leis e menos habilidosos a descobrir falhas no discurso de um bom orador. E, sendo mais apurados juízes do que atletas rivais, são, geralmente, bem-sucedidos na condução dos negócios de estado. São estes que devemos imitar, em vez de sermos levados, por rivalidades de talentos e toleimas intelectuais, a aconselhar o povo contra as nossas reais opiniões. “Por mim, mantenho o meu ponto de vista anterior e admiro-me com aqueles que propuseram a reabertura do caso dos Mitileneus, sendo, assim, responsáveis por uma demora que apenas beneficia os culpados, fazendo com que a vítima proceda contra o agressor com o gume da sua raiva embotado. Isto, sabendo-se que onde a vingança segue mais de perto a ofensa melhor a iguala e mais adequadamente a retribui. Também me interrogo quem será o homem que defenderá a posição contrária e pretenderá demonstrar que os crimes dos Mitileneus nos são úteis e as nossas adversidades injuriosas para os aliados. Um tal homem deve ter uma confiança desmedida na sua retórica, a ponto de se aventurar a fazer prova de que aquilo que foi por todos decidido está, ainda, por decidir, ou ter sido corrompido para tentar ludibriar-nos com elaborados sofismas. Em controvérsias deste género, o estado dá os prémios a outros e fica com os riscos para si próprio. Quem merece censura sois vós: por serdes tão imprudentes, ao ponto de haverdes consentido nestas disputas; por verdes um discurso como quem presencia um espectáculo, tirando conclusões por ouvir dizer, julgando da praticabilidade de um projecto pela inteligência dos seus defensores e confiando na versão de acontecimentos passados, não por aquilo que os vossos olhos viram, mas pelas habilidosas considerações que haveis escutado; por vos deixardes levar por qualquer novidade oratória, recusando seguir uma opinião já aprovada; por vos deixardes escravizar por cada novo paradoxo, desprezando os lugares-comuns; por terdes como primeiro objectivo fazer o vosso próprio discurso, e, não conseguindo fazê-lo, ter como melhor alternativa o parecer que, relativamente ao que dizem os outros, estais em perfeita consonância, aplaudindo cada tirada quase antes de ser proferida e sendo tão rápidos a entender um argumento como sois lentos em prever as suas consequências; por pedirdes, se é que posso dizer assim, alguma coisa diferente das condições em que vivemos, mesmo que compreendais inadequadamente essas mesmas condições; por serdes escravos do prazer de ouvir e por vos comportardes mais como a plateia de um retórico do que como representantes de uma cidade.Para vos livrar desta situação, vou prosseguir demonstrando que nenhum estado alguma vez vos ofendeu tanto como fizeram os Mitileneus. Posso ser tolerante para com aqueles que se revoltam porque não podem suportar o nosso império ou porque a isso foram forçados pelo inimigo. Mas para aqueles que possuíam uma ilha com fortificações, que podiam recear os nossos inimigos apenas através do mar e que dispunham da sua própria marinha para lhes dar protecção, que eram independentes e tidos por vós na mais elevada consideração, agir como fizeram, isso não leva o nome de revolta – porque revolta implica opressão. Trata-se é de uma agressão gratuita, uma tentativa para nos arruinar mediante o conluio com os nossos piores inimigos, uma ofensa pior do que uma guerra que fizessem por sua conta para aquisição de poder. O destino daqueles dos seus vizinhos que já se tinham rebelado e logo subjugados não constituiu lição para eles. A sua própria prosperidade não podia dissuadi-los de afrontar o perigo. Cegamente confiantes no futuro e prenhes de esperanças bem acima das suas possibilidades, embora aquém da sua ambição, declararam guerra e tomaram a decisão de preferir a força à razão, sendo o seu ataque determinado não por qualquer provocação, mas sim pelo momento que lhes pareceu propício. A verdade é que uma grande e boa fortuna, súbita e inesperadamente conseguida, tende a tornar um povo insolente. Na maior parte dos casos, é preferível para a humanidade ter sucesso com razão do que fora dela, e é mais fácil, poderá dizer-se, escapar à adversidade do que preservar a prosperidade. O nosso erro foi termos distinguido os Mitileneus do modo que fizemos. Tivéssemos nós, desde há muito tempo, tratado com eles como com os outros, e não se teriam esquecido de quem eram, porque a natureza humana tão seguramente se torna arrogante através da consideração como é reverente através da firmeza. Deixai, portanto, que sejam punidos consoante o seu crime requer, e não queiram absolver o povo ao mesmo tempo que condenam a aristocracia. O certo é que todos eles vos atacaram, sem distinção, embora pudessem ter-nos pedido ajuda, caso em que estariam, agora, de novo na posse da sua cidade. Mas não! Acharam que era mais seguro dar o seu apoio à aristocracia e juntar-se à rebelião. Considerai, portanto, o seguinte: se sujeitais ao mesmo castigo o aliado que se vê forçado a rebelar-se pelo inimigo e aquele que o faz por sua livre vontade, qual deles, digam lá, é que se não rebelará baseado no mínimo pretexto, quando a recompensa do sucesso é a liberdade e a penalização do falhanço não é assim tão terrível? Nós, entretanto, teremos que arriscar o nosso dinheiro e as nossas vidas contra um estado após outro, e, se tivermos sucesso, receber uma cidade arruinada, donde deixámos de poder tirar as receitas de que depende o nosso poderio, e, se formos vencidos, ficamos com mais um inimigo e vamos ter de perder tempo, que podia ser empregue a combater os nossos inimigos já existentes, a guerrear os nossos próprios aliados. “Consequentemente, nenhuma esperança da clemência devida à fraqueza humana, que a retórica possa instilar ou o dinheiro comprar, deve ser concedida aos Mitileneus. A ofensa cometida não o foi de forma involuntária, mas sim com malícia e de modo deliberado, e a compaixão só é devida aos que ofendem inconscientemente. Por isso, antes como agora, me declaro contra a alteração da vossa primeira decisão ou o dar ensejo aos três erros mais perniciosos para um império – piedade, sentimento e indulgência. A compaixão é devida àqueles que são capazes de retribuir o sentimento, não aos que em nenhuma circunstância se apiedarão de nós, porque são nossos inimigos por natureza. Os oradores que nos querem cativar pelo sentimento podem procurar outras arenas menos importantes para a exibição dos seus talentos, em vez desta, onde a cidade pode ter de pagar uma elevada penalização pelos seus levianos aprazimentos, enquanto eles recebem um refinado reconhecimento pelas suas frases brilhantes. A indulgência deve ser manifestada para com aqueles que serão nossos amigos no futuro, não para com homens que hão-de ser sempre o que são agora, isto é, tão nossos inimigos como dantes. Para resumir, digo que, se seguirdes o meu conselho, fareis o que é justo com os Mitileneus e, ao mesmo tempo, aquilo que é vantajoso, enquanto mediante uma outra decisão não tereis da sua parte nada de tão certo como tendes passada uma sentença contra vós próprios. Porque se fosse justa a sua rebelião queria dizer que não o era a vossa dominação. No entanto, se, certos ou errados, estais determinados a dominar, tendes de levar por diante os vossos princípios e punir os Mitileneus conforme o vosso interesse requer, ou, então, desistir da ideia do império e cultivar a honestidade isenta de perigos. Convencei-vos, portanto, de que deveis dar-lhes o tratamento que eles vos dariam. Não deixeis as vítimas que escaparam à conspiração ser mais insensíveis do que os conspiradores que a produziram. Lembrai-vos, antes, do que eles vos teriam feito se, acaso, saíssem vitoriosos, especialmente na sua condição de agressores. Foram eles que atacaram os seus vizinhos sem motivo para tal, que perseguiram as suas vítimas até à morte, tendo em conta o perigo que previam poder advir se os deixassem sobreviver, uma vez que o que é vítima de um erro gratuito é mais perigoso, se conseguir escapar, do que um inimigo leal que não pode queixar-se de nada desse género. Não sejais, portanto, traidores de vós próprios. Recordai, com o maior rigor possível, o momento de sofrimento e a suprema importância que então atribuístes à sua derrota, e, agora, pagai-lhes na mesma moeda, sem vos deixardes comover pela sua presente fragilidade ou esquecendo o perigo que há bem pouco tempo impendeu sobre vós. Castigai-os conforme merecem e dizei aos vossos outros aliados, através de um exemplo expressivo, que a pena para a rebelião é a morte. Deixai-os entender, de uma vez por todas, esta realidade, e, não tereis, com tanta frequência, de deixar de prestar atenção aos vossos inimigos para lutardes com os vossos próprios confederados.” Tucídides – Guerra do Peloponeso – Capítulo IX Tradução de David Martelo
NOTAS:
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
1 - Tucídides(Atenas, 460 a.C – Atenas, 400 a. C)
Escreveu a História da Guerra do Peloponeso, da qual foi testemunha e participante, em que, em oito volumes, conta a guerra entre Esparta e Atenas ocorrida no século V a.C. Preocupado com a imparcialidade, ele relata os factos com concisão e procura explicar-lhes as causas. Tucídides escreveu essa obra pois pensava a Guerra do Peloponeso como um acontecimento de grande relevância para a história da Grécia, mais do que qualquer outra guerra anterior. Esta sua obra é vista no mundo inteiro como um clássico, e representa a primeira obra do seu estilo. A obra de Tucídides foi revalorizada no ocidente devido à tradução da História da Guerra do Peloponeso para o inglês, por Thomas Hobbes.
Tucídides também foi um dos primeiros a notar que as pessoas que sobreviviam às epidemias de peste em Atenas eram poupadas durante os surtos posteriores da mesma doença, conhecimento importante que num futuro remoto seria a base da vacinação. Portanto, considera-se que por conta de sua imparcialidade analítica, Tucídides foi um dos pais da ciência histórica. A sua imparcialidade levou-o a negar a influência de deuses nas suas análises, o que gerou o seu exílio de Atenas. Pelo foco no problema da guerra e devido à análise dos conflitos entre as Pólis da Grécia Antiga, a corrente de pensamento teórico realista das Relações Internacionais, no século XX, passou a considerar Tucídides como o "avô" do próprio realismo.
Notas: Desde o início da guerra do Peloponeso recolheu dados para escrever sobre o assunto, que então agitava toda a Grécia. Viveu a maior parte de sua vida na Trácia, relatando os factos da guerra e viajando algumas vezes para se documentar com mais segurança.
2 Cléon (Anfípolis, 422 a.C.) foi um demagogo, político e estratego (general) ateniense, protagonista da Guerra do Peloponeso. Foi o primeiro representante dos comerciantes na política ateniense, embora fosse um aristocrata. Foi adversário de Péricles

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