quarta-feira, 24 de julho de 2019

Não que eu lá tenha ido

Mas a nossa amiga foi. À Gorongosa. Também a nostalgia pressentida no texto de S.F, talvez dos tempos de juventude que não ficou presa de rotinas e ousou aventurar-se pelos caminhos mal desbravados, para conhecer melhor a terra citada nos mapas e na nossa História - fez-me pensar na “Sodade” de Cesária Évora, a diva fruto de uma época propícia, que se impôs com o seu pé descalço, e com a sua voz e presença graves, que o mundo pós Revolução reconheceu. Por isso transponho a sua “morna”, bem segura do que afirma da saudade “pa São Tomé”, Nicolau e as demais ilhas caboverdianas sendo desabitadas, quando os portugueses ali chegaram.
Quem mostra bo es caminho longe?
Quem mostra bo es caminho longe?
Es caminho pa São Tomé
Sodade
Sodade
Sodade
Des nha terra, São Nicolau
Si bo screve m',
M' ta screve bo
Si bo squece m'
M' ta squece bo
Até dia qui bo volta
Sodade
Sodade
Sodade
Des nha terra, São Nicolau
HENRIQUE SALLES DA FONSECA     A BEM DA NAÇÃO, 23.07.19
GORONGOSA
Quer o Leitor acreditar no que tenho para lhe dizer? Se sim, tudo bem, continue a ler; se não, passe para a linha que se segue aos asteriscos (* * *). Então, se aqui está, fique sabendo que há 47 anos não havia telemóveis nem sequer máquinas fotográficas de bolso como hoje as temos para já não falar na qualidade tão razoável das fotos feitas com os próprios telemóveis. Pois é, naqueles idos nada disso existia e a frequência fotográfica era diminuta. Havia uns quantos carolas que eram apontados a dedo como os «maluquinhos das fotografias» mas a generalidade das pessoas não tinha sequer uma máquina fotográfica. Eu, por exemplo, não tinha uma máquina fotográfica mas tinha, isso sim, uma câmara de filmar. Só que tudo dava tanto trabalho que era mais fácil registar na memória e contar aos netos de seguida. Mas um dos meus companheiros devia ter uma máquina fotográfica pois não haveria outro modo de aparecer uma foto do nosso «herói» na floresta de Inhaminga com a porta traseira esquerda aberta à espera que Mrs. Livingston entrasse ou saísse. E onde será que guardei esse exemplar único? Na memória. E só. Portanto, venho aqui apresentar-me como «documento coevo» desta viagem e pedir perdão pelos lapsos de memória. Ao mesmo tempo, garanto que não farei como Fernão Lopes quando não se lembrava de coisas que se tivessem passado 47 anos antes de quando escrevia: ele, de certeza, inventava; eu floreio, admito, mas não invento.
Mas se aparecer por aí uma ou outra foto, Companheiros não hesitem em mandar-me publicá-las. Mas para não incorrer no problema de Fernão Lopes, o melhor é porem legendas.
Seguem-se os asteriscos que separam os crédulos dos incrédulos.
* * *
- Então, Miguel, a que horas é o despertar amanhã?
- Ora, se da Beira à Gorongosa são cerca de 150 quilómetros (viemos a saber que eram 136, não errou quase nada) e lá queremos estar à abertura do portão que é as 6, convém sairmos às 5 e levantarmo-nos às 4.
- Por mim, tudo bem. Que te parece, Tó? O Tó passava pelas brasas mas abriu um olho e disse que sim. Ainda hoje o Miguel e eu não temos a certeza sobre se o Tó sabia do que nós estávamos a falar. Mas a palavra estava dada e ele, sabendo ou não do que se tratava, honrou-a. É assim a vida de um Cavalheiro.
- Mas, oh Miguel! Não achas perigoso corrermos o risco de ir acordar a bicharada entregue aos sonos profundos da floresta? E se eles têm mau acordar? É que assim como há gente com mau feitio antes de tomar o pequeno-almoço, o mesmo pode acontecer com os leões e eles acharem que nós lhes servimos de pequeno-almoço. Isto era eu a tentar ganhar mais algum tempo de sono… mas não tive sorte nenhuma. Parece que ao pequeno-almoço os leões não são carnívoros… As coisas que estamos sempre a aprender. É como as avestruzes mamarem até ao ano de idade para não deixarem a mãe voltar a procriar… Como o Miguel queria, estivemos uns bons minutos à espera que o portão da Gorongosa abrisse. E foi nesta espera que fizemos o ponto laboral da situação. À falta de guerra, o Tó foi o único de nós os três no completo desemprego; o Miguel trabalhou bem como «mestre cronógrafo» que é como quem diz «o despertador» e eu não fiz outra coisa se não trabalhar para eles, agarrado ao volante.
- Nós estamos de férias – disse um deles – e tu estás em missão de soberania. Trabalha para salvares a Pátria e não refiles porque, senão, dizemos ao Kaulza e vais preso.
E com esta lógica assassina, resignei-me e continuei agarrado ao volante como o homem do leme do Mostrengo que está no fim do mundo e que com três urros se pôs a chorar.
- A chorar? Que disparate! A chiar!!!
- E o homem do leme disse o quê?
- Disse para pores o carro a trabalhar que o guarda já abriu o portão.
Ultrapassado o ataque de non sense e ultrapassado o portão, entrámos na Gorongosa, o reino da bicharada. Seguindo as indicações que ladeavam a estrada, dirigimo-nos ao «Acampamento Central» para, a partir daí, decidirmos como seria a visita. Mas uma decisão foi logo tomada: não dormiríamos na Gorongosa que devia ser sono pesado em Escudos; passaríamos o dia a vaguear pelo Parque e à hora do fecho iríamos a Gondola ou a Vila Machado procurar poiso para a noite.
(continua no próximo número que é já daqui a pouco, depois de breve intervalo pois a Gorongosa merece um número só para ela)
Julho de 2019    Henrique Salles da Fonseca
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 23.07.19
Eis-nos no «Acampamento Central» do Parque Nacional da Gorongosa, centro de Moçambique.
Por louvável iniciativa do nosso «desempregado», entrámos na posse de um mapa do Parque com as estradas recomendadas para observação das várias espécies; o Miguel e eu deambulámos por ali a esmo mais a observar rodesianas do que postais ilustrados com outras espécies. Naqueles tempos, as rodesianas eram inglesas tropicais. Naqueles tempos também, a Rodésia estava unilateralmente independente pois a Velha queria entregá-la aos movimentos controlados por Moscovo tais como o ZANU e o ZAPU. Aliás, nem sei mesmo se naqueles tempos esses movimentos não eram só um e o spin off do ZANU não terá sido depois. Talvez. Mas agora não vou estudar isso porque está ali um macaco a espreitar para dentro do carro. Naquele dia, àquela hora matinal, nós éramos os únicos turistas portugueses denotando que os nossos já sabiam o suficiente de macacadas. Ou então, que os portugueses não gostavam de se levantar tão cedo. Portanto, ou por falta de interesse (pecha grave) ou por mândria (pecha gravíssima), nós éramos a excepção que confirmava a regra de que a Gorongosa era para o proveito de estrangeiros.
[Num saltinho ao futuro, sabemos agora, 47 anos depois, que assim continua a ser: o turismo de portugueses na Gorongosa é diminuto a provar que continuamos a ter de macacadas o suficiente]
Com o Tó de mapa na mão, lá fomos ver a bicharada… e eu fui-me lembrando de que nós, portugueses, estávamos a ter uma importância capital na salvaguarda da «fronteira» do Ocidente naquela região de África. Enquanto nós por ali mandássemos, Moscovo não meteria o dente. Por nós e pela ajuda que estávamos a dar aos rodesianos. E lembrei-me do tabaco rodesiano que chegava aos mercados internacionais como se fosse português assim driblando o boicote que a ONU impusera a todo o comércio internacional da Rodésia. E lembrei-me do oleoduto Beira-Umtali que deveria passar não muito longe daquele sítio em que nos encontrávamos naquele preciso momento. E lembrei-me da «teoria» que dizia que se a África do Norte era árabe, por que é que a África do Sul não haveria de ser branca? Que os brancos estavam naquela região há mais tempo que os pretos… e outras deturpações da História que ignoravam o Império do Monomotapa, as ruínas do Zimbabwe, o Império Zulu, o próprio Shaka dito e tantas outras realidades que naquele momento não me ocorreramO que, pelo nosso lado, estava em causa não era saber se os regimes futuros eram brancos, pretos ou rosés, o que interessava era que fossem ocidentalizados, não comunas. E lastimei para com os meus botões que nós, portugueses, tivéssemos sido tão desleixados com o desenvolvimento integrado de Moçambique em que só naquela altura estávamos a construir uma grande estrada longitudinal pois até então só havia comunicações transversais por imposição inglesa relativamente ao Transvaal (caminho de ferro de Lourenço Marques) e relativamente à Rodésia (comboios da Beira). E o prolongamento da linha férrea de Nacala até Vila Cabral (Lixinga, hoje), tinha sido muito recente. Uma vergonha tão vergonhosa como termos chegado ao 5 de Outubro de 1910 com 90% de analfabetos adultos. Agora, era uma corrida contra o tempo, a ver se conseguíamos em meia dúzia de anos fazer o que os nossos antepassados não tinham feito em séculos. E seria que os «ultras» de Américo Tomás deixariam esta corrida pelo desenvolvimento ser feita sustentadamente? Como é que eu, economista, poderia ajudar neste processo? Para já, cumprindo na íntegra a comissão de serviço militar e depois logo se haveria de ver… mas não se me daria qualquer cuidado voltar para Moçambique depois de passar à disponibilidade e trabalhar durante meia dúzia de anos a ajudar a puxar este processo de desenvolvimento para a frente. E o tempo perdido com o ensino superior. Por que é que a Beira e mesmo Nampula não tinham polos da Universidade de Lourenço Marques? Caramba, eram tantos os temas de desenvolvimento que me ocorriam que até já nem me lembrava da macacada. Mas, afinal, só me lembrava de temas relacionados com o investimento público. E os privados, por que não chamá-los para a corrida? Até que dei por mim a passar pela terceira vez frente à «casa dos leões» e a constatar que eles deviam ter ido encomendar o jantar algures, lá para as bandas em que pastam as gazelas. E foi nesse caminho que vimos um hipopótamo em seco a trotar na savana ao nosso lado à mesma velocidade que o «herói». Felizmente, ao desviar a rota, fê-lo para o lado de fora e não contra nós. Um pouco à frente, já em terreno arborizado, um elefante (viemos a saber que se tratava da matriarca daquela manada), a bloquear-nos o caminho. Parei de imediato e engatei a marcha-a-trás mas deixei-me ficar o mais silencioso que era possível. Foi então que o resto da manada começou a cruzar a estrada com as outras fêmeas a protegerem a criançada. A matriarca só baixou a sua guarda quando a última «senhora» passou. Deixei que todas desaparecessem no mato e só então avancei. Sem dramas, a história acaba aqui. E quanto aos leões, nem vê-los.
Estava na hora de sairmos do Parque. Dirigimo-nos ao portão da saída (não me lembro se era o mesmo da entrada) e fomos até ao Inchope, a terra mais próxima e que era donde partia a estrada em vias de construção até Vila Franca do Save, 311 quilómetros lá para baixo.
Mas isso fica para amanhã.  Julho de 2019
COMENTÁRIO:
Adriano Lima 23.07.2019  20:18 Vale a pena ler estes “diários de bordo”, desta vez não sobre as águas do Golfo Pérsico, como foi há poucos meses, mas a bordo de um valente Fiat, percorrendo terras que eram outrora promissoras mas cujo progresso regrediu consideravelmente. As causas estão bem analisadas pelo Dr. Salles, que o faz indo ao fundo das questões, deixando-nos belas lições sobre geografia humana, economia e política. Mas fica-se com a ideia de que Moçambique tem muitas potencialidades exploráveis, haja esclarecimento político e boas lideranças na condução do processo de desenvolvimento. Moçambique merece, e além disso adorei conhecer o território e as suas gentes. Não me esqueço de 50 praças naturais da terra que reforçavam a minha companhia no Niassa. Era o Grupo de Integração 105. Bons rapazes, que nunca me deram qualquer problema. Adorei ler e espero pela continuação. 
NOTA
Vida selvagem
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre: “Parque Nacional da Gorongosa)
A Gorongosa é habitada por uma impressionante diversidade de animais e plantas – alguns dos quais não se encontram em mais lado nenhum no mundo, como a nova espécie de musaranho recentemente descoberta, a Myosorex meesteri. A riqueza da biodiversidade cria um mundo complexo onde animais, plantas e pessoas interagem. Dos mais pequenos insectos ao mamíferos maiores, cada um desempenha um papel importante no ecossistema da Gorongosa.  Apesar de muita da vasta população herbívora do parque ter sido dizimada durante os anos de guerra e de caça furtiva, quase todas as espécies naturalmente características da região, incluindo mais de 400 tipos de aves, acabaram por sobreviver. Com uma gestão efectiva e reintrodução de espécies-chave, as populações de vida selvagem voltarão a contar-se segundo valores naturais e ajudarão a restaurar o equilíbrio ecológico do parque.

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