terça-feira, 2 de julho de 2019

Mundo da fraternidade universal?



Teresa de Sousa e os seus sábios comentadores debruçam-se sobre um mundo europeu às aranhas, em busca de apoios, retrato dos indivíduos em particular, que ora se interapoiam ora se interexcluem, deixando o amargo da dúvida sobre o "Que Sera, Sera" da Doris Day, dos tempos áureos da mocidade, que sabíamos de cor. 1956, leio na Internet, foi a data do seu aparecimento, como eterna pergunta pessoal sobre o inflexível devir humano, mas hoje é de política que se trata, política global, de possíveis alianças, num mundo conjugado, todavia, em termos económicos, pois que as ambições de conquista territorial já dos tempos macedónicos, sempre com fiéis seguidores, não parecem exequíveis hoje, mas não sei bem.
COMENTÁRIO   OPINIÃO
II -O “campo de jogos” europeu
“Campo de jogos” ou jogador da primeira liga? Sobra pouco tempo para a Europa escolher.
PÚBLICO, 30 de Junho de 2019
1- Depois de evocar Sagres e os Descobrimentos, o momento que marca a descoberta do mundo pela Europa e depois de lembrar que, nesse mesmo momento, a China, a grande potência marítima da altura, resolvia fechar-se ao mundo, Carl Bildt iniciou a síntese dos trabalhos de dois dias da Conferência Anual do European Council on Foreign Relations (ECFR), que decorreu em Lisboa, na Gulbenkian, com esta frase: “Em Bruxelas decorrem os jogos sobre pessoas, no mundo jogam-se os jogos do poder.” Foi um resumo quase perfeito dos debates que mobilizaram uma grande variedade de especialistas europeus e norte-americanos sob o tema geral da “soberania estratégica” da Europa ou, como também se diz, da sua “autonomia estratégica”. Que obviamente não existe. O que Bildt disse a seguir resume igualmente a escolha fundamental que a Europa tem pela frente. Pode tornar-se apenas no “campo de jogos” onde as grandes potências mundiais praticam os seus jogos de poder ou decide ser, também ela, um “jogador global”.
O ponto de partida não é animador. Nos últimos cinco anos, a Europa foi “menos relevante, menos activa e menos unida”, ao mesmo tempo que a China se tornava mais “assertiva”, a Rússia se afirmava como potência revisionista e os EUA se transformavam numa força disruptiva da ordem internacional. Pode compreender-se a paralisia. A União Europeia, como lembrou o antigo primeiro-ministro sueco e co-presidente do ECFR, “não foi criada para este mundo”. A integração da Europa Ocidental foi a resposta à guerra, estimulada pela nova ameaça soviética. Depois da queda do Muro, cumpriu a sua missão fundamental: alargar-se o mais possível à dimensão do continente. Nas duas primeiras fases da sua existência, pôde contar com os EUA como o garante da sua segurança e da sua unidade.
2- Entretanto, o mundo mudou radicalmente. A profecia de Fukuyama esfumou-se. O multilateralismo, o modelo internacional que melhor servia a Europa, deu lugar a um mundo onde prevalece cada vez mais a relação de forças. O mundo unipolar deu lugar a um mundo multipolar – aquele que hoje se desenha diante dos nossos olhos, em que nem todos os novos e velhos pólos de poder são democracias ou aceitam as regras do sistema internacional. Finalmente, deixou de poder contar com o garante da sua prosperidade e da sua segurança, a partir do momento em que os EUA entraram numa nova fase da sua relação com o mundo, que Trump levou ao extremo e que tem, cada vez menos, a sua centralidade no Atlântico. Voltando a Bildt, nos últimos cinco anos, a Rússia, de parceiro, transformou-se em ameaça, enquanto a China assumia a sua nova ambição ao estatuto de superpotência capaz de desafiar os EUA, fazendo da Europa o seu “desígnio” fundamental para “nivelar” o campo de jogos. E o que fez a Europa nos últimos cinco anos? Todos sabemos a resposta. Envolveu-se numa crise existencial interna, consequência da crise financeira e da crise do euro, da qual ainda não saiu. Cavou as divisões e as feridas deixadas pela crise – entre o Norte e o Sul, o Leste e o Oeste. Perdeu qualquer capacidade de liderança, graças à crescente paralisia alemã, às cada vez mais difíceis relações entre Paris e Berlim e à iminência do “Brexit”. Os seus líderes estarão este domingo em Bruxelas para tentar de novo um entendimento sobre quem vai dirigir as suas principais instituições, que falharam há dez dias, numa triste cimeira em que nem os objectivos de combate às alterações climáticas conseguiram um consenso.
3. Ao longo dos debates, de forma mais ou menos carregada, a realidade dramática com que a Europa se confronta não foi negada por quase ninguém, mesmo que aqui e ali ainda viesse ao de cima a velha concepção que a União tinha de si própria e do seu papel no mundo nos anos que se seguiram à Guerra Fria: liderar pelo exemplo, que o resto do mundo seguiria em direcção a uma ordem pacífica, cooperativa e integrada. O resto do mundo vira-se cada vez mais para quem verdadeiramente mostra ter poder, adere crescentemente ao modelo autoritário dos “homens fortes”, abraça o nacionalismo. É um “milagre” manter-se unida face à Rússia, como alguém disse, talvez porque a ameaça está demasiado próxima das suas fronteiras e reveste a forma militar. Continua dividida perante a China e a sua estratégia de penetração económica em busca de influência politica, que passa necessariamente pela velha fórmula de dividir para reinar. Não sabe o que fazer com os Estados Unidos. Olhar para Trump como um fenómeno passageiro e esperar que regressem os bons velhos tempos? Proclamar a sua “autonomia”, anunciando a “libertação” em relação ao seu protector? A tentação é forte. A realidade desaconselha-a. Como lembrou Augusto Santos Silva, perante as intervenções mais entusiasmadas sobre a “libertação” europeia do mundo anglo-saxónico (incluindo o “Brexit"), o interesse europeu continua centrado no espaço do Atlântico Norte e não em qualquer sonho “continental”. A tentação da Eurásia continua a ser um jogo perigoso em que a Europa, sem os EUA, estaria condenada a claudicar perante a China (é essa a estratégia chinesa), para já não falar da Rússia, ela própria uma potência na defensiva perante o gigante asiático.
4. As vozes americanas que se ouviram não foram animadoras. Para além de ser visível a ideia de que Trump pode fazer um segundo mandato, a análise mais interessante foi sobre as grandes mudanças da própria sociedade americana e da sua relação com o mundo, que vão moldar as próximas presidências, sejam elas democratas ou republicanas. Ou seja, é pura ilusão esperar que Trump passe para que tudo volte ao status quo ante. E aqui os desafios que se colocam à Europa não são menores.
Em primeiro lugar, a transferência inelutável do centro de gravidade dos interesses americanos do Atlântico para o Pacífico. A China é o adversário estratégico da América e isso tem consequências na sua relação com o resto do mundo, incluindo os velhos aliados europeus. Foi Obama quem iniciou o “shift” para o Pacífico, foi Obama quem tentou o “reset” com a Rússia, foi Obama (e outros antes dele) quem pediu um esforço maior à Europa para garantir a segurança regional. Com uma enorme diferença: o anterior Presidente queria o máximo de aliados possíveis nas duas frentes, europeia e asiática, para conter a China. Privilegiou a Índia. Negociou a Parceria Transpacífica (que o seu sucessor rasgou). Não abandonou a Europa à sua sorte, quando a Rússia resolveu pôr em prática na Ucrânia a sua estratégia revisionista. Quis consolidar a aliança transatlântica reforçando a sua dimensão económica com a negociação (falhada) do TTIP. Trump despreza as alianças e cultiva os “inimigos” com a sua ideia – a única que parece ter – de que os EUA já não estão dispostos a pagar o preço pela segurança e pela prosperidade globais.
Coube, porventura, ao orador do jantar oferecido nas Necessidades aos membros do ECFR, o veterano das relações internacionais John Mearsheimer, o discurso mais duro, assim resumido por alguns dos presentes: o inimigo é a China e a Europa, se quer continuar a manter uma relação transatlântica, tem de se colocar ao lado da América na sua estratégia de contenção da China – militar, comercial e tecnológica. E vai ter de perceber, mais tarde ou mais cedo, que a Rússia faz parte desta estratégia como aliado e não como adversário. Como alguns americanos presentes na Gulbenkian, mais subtis do que o professor de Chicago, lembraram, ninguém deve esperar mudanças de fundo neste domínio fundamental com um Presidente democrata. Os democratas são maioritariamente favoráveis à estratégia comercial de Trump face à China e a opinião pública alimenta o mesmo sentimento.
É nesta dimensão que também ficam expostas as fragilidades europeias. A Europa já percebeu que a China é um “competidor” e não um “aliado”. Não ignora a sua ambição de disputar a hegemonia mundial aos Estados Unidos mas ainda não conseguiu sair de cima do muro. Quer a NATO para se proteger mas ainda quer a China para fazer negócios. Sonha com uma “autonomia” comercial, dissociando-a da geopolítica mundial na sua dimensão de segurança. Está, mais uma vez, profundamente dividida. “Campo de jogos” ou jogador da primeira liga? Sobra pouco tempo. 
COMENTÁRIOS
rafael.guerra.www. www 30.06.2019: Campo de jogo para quem? Falar de Brexit e dos avanços da extrema direita europeia sem ter uma palavrinha de apreço sobre o trabalho de dinamitagem de Steve Bannon e da Cambridge Analytica, de media tais que a RT e de todas as forças externas que procuram dividir e fragilizar a UE, é puro jornalismo de fim de semana. A UE ainda é um exemplo de saber viver, apesar dos ataques bárbaros, incluindo os dos EUA.
mpro, Ovar 30.06.2019 : A minha pergunta é esta: Por que razão a China tem que ser o inimigo da Europa? Será que os USA, têm protegido alguém, Europa incluída, sem ser para defender os seus interesses económicos, militares, geopolíticos, de donos do mundo? Os valores que dizem defender, com centenas de milhões de mortos por todo o mundo justificam a preferência relativamente à China, ou Rússia? A Europa há-de ser aquilo que os seus cidadãos forem capazes de exigir aos seus representantes que a cada momento ocuparem os destinos da UE. O tempo é escasso apenas para uma coisa, desmistificar o conceito da irreversibilidade. O maniqueísmo sempre foi a arma dos avençados, sejam eles jornalistas, ou políticos.
Manuel Caetano, Faro 30.06.2019: Nação cujas elites políticas não conseguem entender-se na identificação do seu inimigo principal não consegue definir correctamente as prioridades da sua política externa e está condenada à irrelevância estratégica e ao fracasso. Os EUA, desde o final do primeiro mandato de Obama, encontram-se numa encruzilhada deste tipo (parte das elites identificam como inimigo principal a Rússia, outra parte a China e uma terceira ambas). Das três a mais irrealista e perigosa para os EUA e para o Mundo é a terceira (apesar de todo o seu poder, que ainda é significativo, a "américa" já não está em condições de enfrentar estes dois países em simultâneo). Por agora a UE deve definir como prioridade absoluta a sua soberania estratégica e assumir uma função pacificadora e de diálogo no multilateralismo.
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira Alta30.06.2019: Isto de dividir o mundo em amigos e inimigos nunca foi boa ideia. A resenha de TdS sobre o encontro é excelente, e por isso estamos agradecidos, mesmo que repita alguns estetiotipos estafados. A imensa patranha de "a Europa liderar com o seu exemplo" ignora o facto de o mundo ter os olhos abertos para a forma como sacrificou o contrato social que era de facto um exemplo, e sugeitou os direitos políticos dos povos europeus ao dictatum ideológico do ordo-liberalismo. Chamar-lhe "mercados" e "regras" para o atropelo de referendos, alimentação de clientelismos corruptos, supressão da autodeterminação, e instrumentalização da demografia, percebemos bem as palavras da luso-descendente Emma Lazarus "Keep, ancient lands, your storied pomp!".
Joao, Portugal 30.06.2019: Ah Ah nessa o caro Jonas tem razão, a visão colonialista e a exploração colonialista nunca saíram das mentes dos roliços por cá, nas capitais imperiais europeias. É ver agora as movimentações do sedutor Macron, ou relembrar as acções do idolatrado Churchill. Desde a Venezuela à China tudo é encarado como um pasto ou uma coutada, claro que actualizando as "licenças" ou os "contratos" de exploração de acordo ao que vai sendo definido como politicamente correcto.
Já quanto à sua visão das políticas externas americanas já discordo do caro Jonas. O caro relata uma sociedade esclarecida e activa que prima pelo respeito das outras sociedades, e com poder de influência sobre os poderes constituídos. Eu duvido e muito que haja influência sobre os poderes, adivinho e estou convicto que é como noutras paragens, os poderes na senda dos seus interesses e claro que avalanches imensas de propagandas para moldar a opinião pública e levá-la a aceitar o que já determinaram os poderes.
TP, Leiria 30.06.2019: Obrigado Teresa pelo resumo da conferência. Apesar de não partilhar inteiramente esse pro US. A UE devia definitavamente demarcar-se da América de Trump e construir ela própria o seu caminho. E se o UK quiser sair muito bem. Uma Europa Continental, democrática, federalista e forte.
Joao, Portugal 30.06.2019: Mais uma acção de propaganda patrocinado por um dos “think tanks” pagos pelas empresas petrolíferas ou de armamento, e claro pelos governos com o dinheiro dos contribuintes. E lá vão distribuindo uns croquetes, umas prebendas, uns chouriços, e claro umas narrativas que sustentem o seu engordar e acumular, sem olhar a meios.
Mas só um ou dois reparos. Não “É um “milagre” manter-se unida face à Rússia”, a Europa, é uma ordem americana, é um objectivo estratégico americano manter as fronteiras russas sempre sob conflitos desgastantes, é uma obrigação imposta pelo Obama que ficou bem clara quando a Merkel e o Hollande lá foram falar com ele para resolver o conflito da Ucrânia e vieram de lá com o recado que é assim e acabou-se. Curioso que quando o Trump anunciou publicamente o desejo de minorizar o conflito com os russos, foi logo bombardeado com a maior campanha difamatória de que há história, até pelos mesmos que antes tinham querido fazer o mesmo mas agora, por maneirismo amaneirado e por já estarem engajados nesse conflito.
Também me lembro como em Davos os chineses foram aclamados como garante da liberdade e multiculturalismo, e o Trump demonizado, o Trump que tinha anunciado de modo claro logo no início que encarava a China como maior ameaça à hegemonia americana.
Bom, e agora, depois de todos estes roliços e serviçais sebentos de Bruxelas andarem anos e anos com eventos amaneirados, com teatros e faz de conta propagandeados pelos media de serviço, vêm agora os gurus dizer que afinal … “o inimigo é a China”?o que o Trump disse e foi gozado por causa disso? E até vêm dizer agora o que o Trump disse e foi gozado e vilipendiado, que a Europa “vai ter de perceber, mais tarde ou mais cedo, que a Rússia faz parte desta estratégia como aliado e não como adversário”? E andaram e andam entretidos todos estes anos em narrativas sebentas, em guerras criminosas, em teatros e representações hipócritas?
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira Alta 30.06.2019: Como nota João, aliás essa é uma pergunta que já me fizeram mais do que uma vez aqui: explique lá essa de para os europeus os russos serem o inimigo - primeiro salvaram-vos dos nazis e depois foram nossos adversários, não vossos. Agora que a guerra fria está enterrada querem desenterrar mais um espaço vital na Ucrânia? Nisso, Trump interpreta fielmente a opinião pública americana - a Rússia não é o inimigo, muito pelo contrário. Alguns começam a perguntar-se mesmo em que livro terão lido sobre conflitos que opõem o continente europeu à Rússia, UK e aos EUA ... hum ... –D.

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