sábado, 20 de julho de 2019

O leme



A nossa amiga é que nunca deixa os seus créditos por mãos alheias e ouvindo da odisseica aventura do relato de Salles da Fonseca, por terras que também a sua memória tornou inesquecíveis, achou por bem logo contrapor, em termos de perigo sofrido, a sua história dos elefantes acompanhando a caravana de três carros, num dos quais ela ia, a caminho de uma Gorongosa festiva, elefantes cujas alas, por engano de um guia sobre a estrada a seguir, foram obrigados a atravessar, lívidos de ansiedade e devagarinho, para não acordarem a caravana parada e curiosa, de adamastores de terra, momentaneamente tranquilos e silenciosos, é certo, mas cuja tromba bastaria para desfazer cada um dos carros. Eu ainda contrapus sobre o perigo de se atravessarem quilómetros e quilómetros desérticos e desguarnecidos de sítio que compusesse os estragos de um carro, que poderia ter deixado os três amigos presa de uma selva erma, a esvaírem-se em fome e sede e isolamento perigoso. A nossa amiga reviveu uma vez mais aquele seu episódio elefantino que poderia ter sido fatal, e eram muitas as pessoas que se deslocaram naquela sua aventura à casa de um amigo, num posto de chefia, na Gorongosa, e que os esperava com extrema inquietação.
África minha, África nossa, descobrindo gestos de amizade ou apenas simpatia, no caso dos “tropas” aventureiros e, talvez, estouvadamente corajosos, mas confiantes no povo que tinham ido defender e que os recebia de braços abertos, certamente que com gratidão e simpatia, que SF tão bem descreve e a nossa amiga tão bem relembra sempre que vem a talhe de foice:
E mais que o Mostrengo que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo…

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 19.07.19
Terá sido um Xicuembo[1] que disse: - Toma atenção, aqui mandam os antepassados senas, não mais os dos muçulmanos macuas! Se vens feito com eles, põe-te a pau!
E o homem do volante, tremendo, pensou mas não disse: - Aqui ao volante quem manda sou eu e em mim manda o General Kaulza. Se não cumpro o que ele me ordena, levo um porradão que nunca mais me endireito. Portanto, amigo Xicuembo, não me peças o que não posso dar-te que é para não entornarmos o caldo.
Benigno, o Xicuembo mostrou a sua compreensão e deixou-nos passar em beleza. E estou mesmo em crer que tudo nos correu tão bem na travessia da Zambézia que esse Xicuembo nos protegeu especialmente se é que, incógnito, não nos acompanhou no lugar que trazíamos vago no banco de trás, ao lado do Miguel. Não me lembro de o Miguel ter dito que sentia alguém ali ao lado mas pode ser que agora nos confesse alguma coisa. - Vá lá, Miguel. Já passaram 47 anos, aquele Xicuembo já se deve ter reformado, acho que podes falar à vontade.
E enquanto o Miguel toma balanço para contar (ou não), eu conto como tudo se passou.
Saídos de madrugada do Posto em que pernoitáramos, a picada era arenosa ao estilo guinchoso (da praia do Guincho) mas o nosso «herói» não se temeu e levou-nos até ao Molocué zumbindo mas sem hesitações. E foi esse zumbido que avisou quem estava naquele momento à porta da cerca da Companhia dos Algodões de Moçambique que nos fez logo sinal para não pararmos e nos dirigirmos de imediato para a oficina de mecânica. Pelos vistos, não éramos os primeiros a chegar ali «a pé coxinho» ou, mais prosaicamente, «de calças na mão». E logo fomos atendidos como se todos estivessem prevenidos da nossa chegada. Diagnóstico confirmado logo que o «herói» mostrou a barriga: um buraco no carter da caixa de velocidades, valvulina praticamente a zero. Terapêutica: tapar o buraco com a massa feita da casca da árvore «?x?p?t?o?», repor o nível da valvulina e seguir viagem como se nada tivesse acontecido; o calor gerado pelo funcionamento da caixa iria secar a massa e quando eu mandasse arranjar tudo a título definitivo, haviam de se ver aflitos para tirar a dita massa casqueira. Isso confirmou-se mais de um ano depois e já não faz parte das crónicas desta viagem.
Pode seguir!!!
- E quanto devo?
- Não deve nada.
- Como assim? Os Senhores com esse trabalho todo e eu não tenho nada que pagar?
- É assim mesmo, não tem nada que pagar. Nós não estamos aqui só para ganhar dinheiro com o algodão, estamos também para ajudar a terra e quem nela vive.
- Mas eu não vivo aqui, sou militar em deslocação oficial, recebo ajudas de custo para as eventualidades deste ou de outro género, sinto que devo pagar.
- Pois que seja tudo isso mas aqui não paga nada.
- Então, para além dos meus agradecimentos pessoais a si, deixe-me agradecer ao Patrão da Companhia.
- O Grande Patrão vive em Lisboa e o Patrão daqui foi a Lourenço Marques e a Johannesburg, não está cá. O Senhor faça o que lhe digo: não perca o seu tempo com agradecimentos e faça-se à estrada para ver se ainda hoje chega a Quelimane.
Feitos os agradecimentos da praxe, fizemo-nos ao caminho… Em silêncio, agradeci ao nosso companheiro Xicuembo e em voz alta fomos comentando a pujança da economia algodoeira daquela região. A população não nadaria em abastança mas também não se via miséria.
Guerra? Qu’é isso? Tudo mais sereno que a noite lisboeta.

Neste segundo dia de viagem, o caminho levar-nos-ia a Mocuba que então era a sede do Comando de um subsector militar e, mais além, passando Nicoadala, aos famosos palmares zambezianos.
Continuemos…
Julho de 2019
Henrique Salles da Fonseca
[1] - Espírito de antepassado em várias culturas moçambicanas

COMENTÁRIOS

Adriano Lima  19.07.2019: Fantástico! Não só aquela milagrosa mistela feita com casca de árvore, mas toda esta odisseia por essas terras moçambicanas. Do termo "xicuembo" não me lembro, talvez por nada ter a ver com os Ajauas, que foram com quem mais lidei, no Niassa Oriental.
Continue, Dr. Salles, que isto promete aventura deliciosa.
Miguel Lory 19.07.2019: Se era "Xicuembo" ou não, não posso mesmo afirmar, mas que "alguém"andava connosco nesta aventura é verdade. Experiência enorme e inesquecível.
Henrique Salles da Fonseca, 19.07.2019: Estou a gostar, continua amigo. João Correia Mendes
Henrique Salles da Fonseca  19.07.2019: O milagre do Moçambique de então podia ser exemplo para o Portugal de agora. Hoje, tudo tão indiferente, ninguém conhece ninguém. Só te ajudam se puderes dar mais do que recebes e mesmo assim… ai! Já para não falar de membros de uma família. Aí é que a coisa não fica feia, fica nojenta. Mas voltando à questão de início, as pessoas lá eram prestáveis sem olharem a nada, sejam eles os verdadeiros moçambicanos ou não biológicos. Em suma, como se dizia por cá, eram o que a cepa deu, mas da boa, sem botox. Portanto, vocês foram ajudados sem artifícios porque lá era assim: se o carro parava e precisava de um empurrão, aparecia logo meia dúzia de pessoas a oferecerem-se para chovar (não sei como se escreve). Aqui, hoje, ligas para o seguro e começa por aparecer uma funcionária que parece que comeu peixe podre e bebeu vinagre ao pequeno-almoço a dizer-te – «O Senhor não precisa de um reboque, vá é comprar um carro novo e ligue quando isso acontecer que fazemos novo seguro» - ao que o infeliz condutor replica - «Mas eu fiz o seguro há 3 meses» - do outro lado a voz fanhosa responde - «iiiiiiiiii» -A sorte que nós tivemos por lá ter estado.

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