A nossa amiga é que nunca deixa os seus
créditos por mãos alheias e ouvindo da odisseica aventura do relato de Salles da Fonseca, por terras
que também a sua memória tornou inesquecíveis, achou por bem logo contrapor, em
termos de perigo sofrido, a sua história dos elefantes acompanhando a caravana
de três carros, num dos quais ela ia, a caminho de uma Gorongosa festiva,
elefantes cujas alas, por engano de um guia sobre a estrada a seguir, foram
obrigados a atravessar, lívidos de ansiedade e devagarinho, para não acordarem
a caravana parada e curiosa, de adamastores de terra, momentaneamente tranquilos
e silenciosos, é certo, mas cuja tromba bastaria para desfazer cada um dos carros.
Eu ainda contrapus sobre o perigo de se atravessarem quilómetros e quilómetros
desérticos e desguarnecidos de sítio que compusesse os estragos de um carro,
que poderia ter deixado os três amigos presa de uma selva erma, a esvaírem-se
em fome e sede e isolamento perigoso. A nossa amiga reviveu uma vez mais aquele
seu episódio elefantino que poderia ter sido fatal, e eram muitas as pessoas
que se deslocaram naquela sua aventura à casa de um amigo, num posto de chefia,
na Gorongosa, e que os esperava com extrema inquietação.
África minha, África nossa, descobrindo
gestos de amizade ou apenas simpatia, no caso dos “tropas” aventureiros e,
talvez, estouvadamente corajosos, mas confiantes no povo que tinham ido defender
e que os recebia de braços abertos, certamente que com gratidão e simpatia, que
SF tão bem descreve e a nossa amiga tão bem
relembra sempre que vem a talhe de foice:
E
mais que o Mostrengo que me a alma teme
E
roda nas trevas do fim do mundo…
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 19.07.19
Terá
sido um Xicuembo[1] que
disse: - Toma atenção,
aqui mandam os antepassados senas, não mais os dos muçulmanos macuas! Se vens
feito com eles, põe-te a pau!
E o
homem do volante, tremendo, pensou mas não disse: - Aqui ao volante quem manda sou eu e em mim manda o
General Kaulza. Se não cumpro o que ele me ordena, levo um porradão que nunca
mais me endireito. Portanto, amigo Xicuembo, não me peças o que não posso
dar-te que é para não entornarmos o caldo.
Benigno,
o Xicuembo mostrou a sua compreensão e deixou-nos passar em beleza. E
estou mesmo em crer que tudo nos correu tão bem na travessia da Zambézia que
esse Xicuembo nos protegeu especialmente se é que, incógnito, não nos
acompanhou no lugar que trazíamos vago no banco de trás, ao lado do Miguel.
Não me lembro de o Miguel ter dito que sentia alguém ali ao lado mas pode ser
que agora nos confesse alguma coisa. - Vá
lá, Miguel. Já passaram 47 anos, aquele Xicuembo já se deve ter reformado, acho
que podes falar à vontade.
E
enquanto o Miguel toma balanço para contar (ou não), eu conto como tudo se
passou.
Saídos
de madrugada do Posto em que pernoitáramos, a picada era arenosa ao estilo
guinchoso (da praia do Guincho) mas o nosso «herói» não se temeu e levou-nos
até ao Molocué zumbindo mas sem hesitações. E foi esse zumbido
que avisou quem estava naquele momento à porta da cerca da Companhia dos Algodões de Moçambique que nos fez logo sinal para não pararmos e nos dirigirmos de
imediato para a oficina de mecânica. Pelos vistos, não éramos os primeiros a chegar ali «a pé coxinho»
ou, mais prosaicamente, «de calças na mão». E logo fomos atendidos como se
todos estivessem prevenidos da nossa chegada. Diagnóstico confirmado logo que o
«herói» mostrou a barriga: um buraco no carter da caixa de velocidades,
valvulina praticamente a zero. Terapêutica: tapar o buraco com a massa
feita da casca da árvore «?x?p?t?o?», repor o nível da valvulina e seguir
viagem como se nada tivesse acontecido; o calor gerado pelo funcionamento da
caixa iria secar a massa e quando eu mandasse arranjar tudo a título definitivo,
haviam de se ver aflitos para tirar a dita massa casqueira. Isso confirmou-se
mais de um ano depois e já não faz parte das crónicas desta viagem.
- Pode seguir!!!
-
E quanto devo?
-
Não deve nada.
-
Como assim? Os Senhores com esse trabalho todo e eu não tenho nada que pagar?
-
É assim mesmo, não tem nada que pagar. Nós não estamos aqui só para ganhar
dinheiro com o algodão, estamos também para ajudar a terra e quem nela vive.
-
Mas eu não vivo aqui, sou militar em deslocação oficial, recebo ajudas de custo
para as eventualidades deste ou de outro género, sinto que devo pagar.
-
Pois que seja tudo isso mas aqui não paga nada.
-
Então, para além dos meus agradecimentos pessoais a si, deixe-me agradecer ao
Patrão da Companhia.
-
O Grande Patrão vive em Lisboa e o Patrão daqui foi a Lourenço Marques e a
Johannesburg, não está cá. O Senhor faça o que lhe digo: não perca o seu tempo
com agradecimentos e faça-se à estrada para ver se ainda hoje chega a
Quelimane.
Feitos
os agradecimentos da praxe, fizemo-nos ao caminho… Em silêncio, agradeci ao
nosso companheiro Xicuembo e em voz alta fomos comentando a pujança da
economia algodoeira daquela região. A população não nadaria em abastança mas
também não se via miséria.
Guerra?
Qu’é isso? Tudo mais sereno que a noite lisboeta.
Neste
segundo dia de viagem, o caminho levar-nos-ia a Mocuba que então era a sede do
Comando de um subsector militar e, mais além, passando Nicoadala, aos
famosos palmares zambezianos.
Continuemos…
Julho
de 2019
Henrique
Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS
Adriano Lima 19.07.2019: Fantástico! Não só aquela milagrosa mistela feita com casca de árvore,
mas toda esta odisseia por essas terras moçambicanas. Do termo "xicuembo"
não me lembro, talvez por nada ter a ver com os Ajauas, que foram com quem mais
lidei, no Niassa Oriental.
Continue, Dr. Salles, que isto promete aventura deliciosa.
Continue, Dr. Salles, que isto promete aventura deliciosa.
Miguel Lory
19.07.2019: Se era "Xicuembo" ou não, não
posso mesmo afirmar, mas que
"alguém"andava
connosco nesta aventura é verdade. Experiência enorme e inesquecível.
Henrique Salles da
Fonseca 19.07.2019: O
milagre do Moçambique de então podia ser exemplo para o Portugal de agora.
Hoje, tudo tão indiferente, ninguém conhece ninguém. Só te ajudam se puderes
dar mais do que recebes e mesmo assim… ai! Já para não falar de membros de uma
família. Aí é que a coisa não fica feia, fica nojenta. Mas voltando à questão de início, as pessoas lá
eram prestáveis sem olharem a nada, sejam eles os verdadeiros moçambicanos ou
não biológicos. Em suma, como se dizia por cá, eram o que a cepa deu, mas
da boa, sem botox. Portanto, vocês foram ajudados sem artifícios porque lá era
assim: se o carro parava e precisava de um empurrão, aparecia logo meia dúzia
de pessoas a oferecerem-se para chovar (não sei como se escreve). Aqui, hoje,
ligas para o seguro e começa por aparecer uma funcionária que parece que comeu
peixe podre e bebeu vinagre ao pequeno-almoço a dizer-te – «O Senhor não
precisa de um reboque, vá é comprar um carro novo e ligue quando isso acontecer
que fazemos novo seguro» - ao que o infeliz condutor replica - «Mas eu fiz o
seguro há 3 meses» - do outro lado a voz fanhosa responde - «iiiiiiiiii» -A sorte
que nós tivemos por lá ter estado.
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