quarta-feira, 24 de julho de 2019

Há quem veja nisso, mudança necessária



Ainda que tais escolhas governativas passem por jeitos caricaturais, de farsa, que muitos apreciam, numa retoma orgulhosa e provocadora de um status antigo. GABRIEL MITHÁ RIBEIRO, em artigo do OBSERVADOR, colocado ontem neste blog -“Uma crónica às direitas” – explicou o facto - da eleição de Donald Trump primeiro, de Boris Johnson agora, ambos fortemente apalhaçados mas amantes dos seus países nas antigas tradições - o que aos muitos nacionalismos convém, na tentativa de obstáculo à sobrecarga invasora de outros continentes, menos abonados de pão e de paz, a um Ocidente que uma aparente democracia transformou em receptáculo de povos infelizes. A Europa sendo, aliás, a responsável doutrinária que fez desequilibrar a constituição do mundo - com a unilateral nobreza de ideais, escorraçadora de povos que há muito ajudavam ao desenvolvimento desses que, desapoiados nas suas terras, vão fugindo agora em busca do pão e da paz – a Europa democrática sentindo-se na obrigação cristã de acolher os tais, para cuja desgraça contribuiu. As cabeças louras dos chefes que contra isso protestam, iniciam uma mudança refractária ao status da União Democrática. Impasses sem fim à vista, afirma MANUEL VILLAVERDE CABRAL. A nós, convém-nos a U E telle quelle, e a sua côdea.
Impasses sem fim à vista /premium
MANUEL VILLAVERDE CABRAL            OBSERVADOR, 23/7/2019
Os impasses político-ideológicos no Reino Unido e em Espanha acabarão por ter consequências negativas para nós, quanto mais não seja no pleno dos desequilíbrios económicos que arrastarão.
Hoje mesmo estão a acumular-se novos impasses internacionais sem fim à vista. É possível que não tenham nada que ver connosco mas a verdade é que atingem os dois países com os quais Portugal tem relações políticas mais antigas – o Reino Unido e a Espanha – e é certo que estes impasses político-ideológicos acabarão por ter consequências negativas para nós, quanto mais não seja no pleno dos desequilíbrios económicos que arrastarão, quer do ponto de vista das trocas comerciais como do investimento.
Como era de esperar, em Inglaterra – mais do que no conjunto de um reino desunido pela questão europeia – o reaccionarismo presuntuoso do velho Partido Conservador elegeu para primeiro-ministro um personagem só comparável a Donald Trump pela arrogância e falta de perspectivas acerca do futuro que está a ser construído neste momento no mundo inteiro. Como é óbvio, estou a falar de Boris Johnson – o auto-proclamado femeeiro que usa o cabelo despenteado e pintado de amarelo, tal como Trump! Não se pode considerar muito democrático que dois-terços dos 140.000 votantes «conservadores» tenham colocado Johnson no poder, arriscando um país inteiro a submeter-se à inconsciência do personagem. Os pouco mais de 90 mil votos que teve são, proporcionalmente, bastante menos do que António Costa teve nas «directas» do PS e até do que Rui Rio, imagine-se! E são esses 90 mil teimosos em 45 milhões de eleitores que pretendem e talvez consigam decidir os destinos do Reino Unido e assim afectar a própria UE!
Em compensação, ainda pode ser que alguém, incluindo em Bruxelas, mantenha a mão estendida aos fanáticos do «brexit» a fim de encontrar uma saída ou, melhor ainda, uma negociação prolongada que obrigue a novas eleições e estas tragam a queda dos Conservadores. Os Trabalhistas, apesar de o líder e muitos dos seus seguidores não serem mais abertos ao mundo exterior do que os «tories», parecem ter percebido que poderiam ganhar as próximas eleições e fazer novo referendo sobre a pertença à UE que alterasse o resultado anterior. Em suma, nada está ainda totalmente decidido, mas o mal já está feito e levará muito tempo a sarar.
Pelo seu lado, o caso espanhol também não contribui para a paz de espírito dos eleitores espanhóis nem do resto dos europeus. Após meses de equilibrismo consentidos pela Constituição ao ambicioso líder do Partido Socialista (PSOE), Pedro Sánchez, que está longe de ter a maioria, encontra-se neste preciso momento no limite das concessões a um aliado tão pouco recomendável – pela falta de palavra e de objectivos claros – como são os populistas do Podemos. De resto, estes não têm votos para garantir uma coligação maioritária.
A primeira tentativa de fazer passar um governo já falhou. Qualquer outra, neste momento, obrigará Sánchez, que tem mais ânsia de poder do que ideias novas e viáveis, a engolir o «homem do rabo-de-cavalo» (os penteados estão decididamente na moda)! Pablo Iglésias, que vive do mesmo nome que tinha o fundador do PSOE, ganhou entretanto o hábito de se fazer representar pela esposa no parlamento e no governo putativo, enquanto ele fica na vivenda familiar a tomar conta das filhas (as vidas particulares e o «sex-appeal» são outros dos ingredientes desta lamentável «pós-política»)!
Dito isto, mesmo com os votos de Podemos (42 a juntar aos 123 do PSOE), este casamento de conveniência não chega à maioria (176). Precisa de mais 11 abstenções que só podem vir dos «regionalistas» mas, em princípio, Sánchez não deveria aceitar o apoio dos nacionalistas catalães pois isso pode fazer-lhe perder votos no futuro. A Esquerda Catalã tem 15 votos que chegariam para eleger a coligação mas Sánchez receia. O Podemos não tem nada a perder; só a ganhar, sobretudo «agitação e propaganda», como cá.
Se se tratasse só da fragmentação partidária da representação parlamentar, como tende a ocorrer cada vez mais em toda a parte, a dificuldade resolver-se-ia de modo «geringoncial», como o PSOE e o Podemos estão aliás a tentar. Porém, a Espanha não é Portugal: não só houve uma guerra civil, que parece ter ocorrido há muito tempo mas que tem sido ressuscitada nos últimos anos – primeiro pela Esquerda e depois pela Direita – e as feridas reabriram-se. Neste momento, essas feridas do passado são difíceis de voltar a meter na gaveta onde estavam guardadas.
Ora, a Espanha é de longe o maior parceiro económico de Portugal, representando um terço das nossas importações e 25% das exportações, sendo os investimentos mútuos 45 mil milhões de euros. A fragmentação e a instabilidade política, exacerbadas pelo grau de conflitualidade ideológica ressuscitada do passado, fazem pois com que Portugal seja o primeiro país a sofrer as consequências dos impasses espanhóis a acrescentar aos britânicos e, por tabela, aos próprios impasses europeus!
COMENTÁRIO
Passos, O Senhor 24%: Os mercados estão a antecipar uma moção de censura de Corbyn a Boris e por isso fecharam hoje em alta. Os preços subiram tanto nos activos financeiros de renda fixa como nos de renda variável. Quanto a Espanha é preciso esperar mais uns dias. 
II - EDITORIAL
Os deploráveis
Hoje serão mais aqueles que olham para o bobo que Boris não tem problemas em ser, do que para o que significa um homem com as suas ideias e características chegar ao comando de um país como a Grã-Bretanha.
PÚBLICO, 24 de Julho de 2019
Foi um erro da campanha de Hillary Clinton, assumiu ela mais tarde no seu livro O que aconteceu: “Estou arrependida de ter dado uma prenda a Trump com o meu comentário sobre os ‘deploráveis’. Mas muitos apoiantes de Trump têm mesmo opiniões que eu considero ser – e não há outra palavra para o descrever – deploráveis.”
Hillary arrependeu-se e muitos criticaram a classificação por achar que ela reflectia a sobranceria de uma elite, que olhava para as opiniões racistas, sexistas e nacionalistas das plateias de Trump e as classificava de “deploráveis”. Talvez tenham tido razão, mas não custa pensar que ela provavelmente utilizaria o mesmo qualificativo para caracterizar alguém que a descreveu como “uma enfermeira sádica num hospital psiquiátrico”, que acha que as mulheres árabes se vestem como “caixas postais”, que a União Europeia impede a venda de bananas “com curvaturas anormais” ou que sendo legal o casamento de homossexuais não há razão para não consagrar uma união “entre três homens e um cão”. O “deplorável” autor destas, e de muitas mais afirmações controversas, é Boris Johnson, eleito ontem líder dos conservadores britânicos e concomitantemente primeiro-ministro da Grã Bretanha. E de facto não é muito difícil metê-lo no mesmo cesto do presidente norte-americano, pelo seu perfil de polémico, por ter sido uma figura muito ligada aos media, mas muito especialmente por ter personificado, na campanha do “Brexit”, as forças mais conservadoras do seu país e a ideia de que existe uma mítica Grã-Bretanha que é possível recuperar e com ela enfrentar as pulsões da globalização. O mesmo mix de nacionalismo nostálgico dos dois lados do Atlântico.
No “deploráveis” de Hillary havia de facto esse gesto de desprezo que atendia mais ao carácter pouco qualificado da maior parte das opiniões dos seguidores de Trump do que à sua periculosidade. Da mesma forma que hoje serão mais aqueles que olham para o bobo que Boris não tem problemas em ser, do que para o que significa um homem com as suas ideias e características chegar ao comando de um país como a Grã-Bretanha.
Talvez também tenhamos que percorrer com Boris, a escala de consciencialização que muitos percorreram com Trump, do razoavelmente absurdo “locker up” [“prendam-na”] dedicado a Hillary nas manifestações eleitorais, até aos berros racistas de “send her back” [mandem-na de volta] dirigidos às congressistas norte-americanas de cor, na última manifestação presidencial. A experiência já nos devia ter ensinado que há muito poucas razões para rir e sobram imensas para levar a sério os “deploráveis”.

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