quinta-feira, 18 de julho de 2019

Derivação imprópria


A propósito do pum do Fiat 128 de 4 portas, gramaticalmente uma interjeição nitidamente assustadora lá na picada do mato, lembrei-me de um outro pum, mas de expressão substantiva, pronunciado por um colega severo, em pleno conselho escolar, a caracterizar um qualquer caso, expressivo provavelmente da sua iracúndia, já nessa altura característica pertinaz do foro íntimo dos cidadãos lusos mais recalcitrantes, mesmo sem minas a recear, como se verifica no episódio narrado por SF. Coubera-me a mim nesse dia a recolha em acta de todos os dignos passos acontecidos no nosso conselho escolar, e apressei-me a reproduzir com lealdade a matéria significativa colhida na magnífica assembleia, que em nada desmerecia em eficácia resolutiva as que ainda hoje se processam nas nossas assembleias parlamentares. Zelosamente, pois, tomei nota também do dito sintagma - não interjectivo mas puramente substantivado, como exemplo de derivação imprópria, (já usado por Bocage numa anedota que dele se contava, na minha adolescência), sintagma que transcrevi fielmente na minha acta. Era nos idos de 79/80, no liceu (termo ainda então não considerado obsoleto) da Lourinhã, naqueles tempos de efectividade forçada, longe da família, mas de camaradagem comprovada, sobretudo nos almoços num restaurantezinho próximo, onde eu, quase inalteradamente, ao londo desse ano lectivo, me regalava, não de arroz com favas mas de dobrada com feijão, não sei se por ser gulosa de comida que nunca fiz, se porque era o prato mais sóbrio no preço, que a distância da casa virtuosamente por economia impunha. O certo é que, no conselho escolar seguinte, ao ler a minha acta perante a assembleia atenta, a par dos risinhos abafados dos colegas de menos pruridos dramáticos, mereceu o meu texto a desaprovação preconceituosa de colegas escrupulosos que logo impuseram a necessidade de o refazer, extraindo o sintagma sonoro, tarefa que eu docilmente cumpriria, para releitura posterior. Mas, a menos que entretanto os livros de actas já tenham desaparecido na voragem dos tempos, poderei afirmar, como Eça, relativamente ao tesouro disputado pelos três irmãos de Medranhos, que a “acta” “lá está ainda, na mata de Roquelanes”, como cópia primeira, por não serem admitidas rasuras nem eliminações, nos livros de actas, de folhas numeradas, a atestar a nossa inalterável hombridade,  nas questões de menor limpeza em valores, ainda que por vezes de um critério discursivo mais liberal.
Só peço a Salles da Fonseca que não se zangue, por este meu desvio tosco da temática do seu texto - mais um comprovativo da sua graça e ousadia já dos tempos mais juvenis, além do panorama descrito dessa África que conheceu, e que descreve em sugestões amigas de meios de desenvolvimento económico de atender, além das peripécias naturais que o seu estilo ligeiro evoca com tanto gosto, e que o seu amigo Adriano Lima aprova e ajuda a esclarecer, cientificamente, na questão das rochas, e literariamente, na questão da prosa e da emoção.

 Henrique Salles da Fonseca
 18.07.19
Característicos da paisagem de Nampula, os grandes morros tão semelhantes aos do Rio de Janeiro ou talvez mesmo tão parecidos com o australiano Uluru. Nitidamente, formações rochosas - quiçá monolíticas - cuja erosão circundante ao longo de milénios deixou à mostra de quem por ali ande. Imponentes, sem dúvida, à espera duma exploração turística que poderia ser motivo de maior desenvolvimento local. Muito bem, sem Direitos de Autor, aqui fica a sugestão de cartaz turístico - «Os Ulurus de África».
Picada rija, não arenosa, levando-nos por ali fora… paisagem desordenada, ou seja, sem agricultura à vista. Significava isso que as populações não tinham escolhido aquelas bermas de estrada para se instalarem. Porquê? Eu presumo que por falta de água em permanência se bem que naquela época em que por ali andámos o aspecto não fosse sequioso. E também não vimos bicharada. Eventualmente pela mesma razão, falta de charcos para poderem beber. Planície irregular à espera que o homem a trabalhe pondo-lhe água e vida. Mas havendo tantas outras zonas naturalmente muito mais ricas, para quê estar a gastar recursos – sempre escassos – com terras marginais que nem a fauna bravia procurava?
E lá fomos viajando calmamente a olhar para os «Ulurus», para a vegetação, para a falta de gente e para a ausência de animais até que… PUM !!!
O que terá sido?
- Foi por baixo do carro mas estamos inteiros, não foi mina.
- Não, claro que não! Foi barulho de pedra que saltou e bateu por baixo.
Parei de imediato e fomos ver. Uma mancha de óleo a dizer que algo se tinha furado lá em baixo. O carter da caixa de velocidades furado por uma pedra e ainda pouco mais fizéramos do que uma centena e meia de quilómetros desde que saíramos de Nampula. Que chatice!!! E agora? Lembro-me como se fosse hoje que a nenhum de nós os três passou sequer pela cabeça voltarmos para trás. A solução era para a frente; para trás é a burra que sabe como se faz.
- Bem, aqui parados é que não resolvemos nada. Vamos embora, nem que seja com o carro engatado em primeira e a 20 à hora. Havemos de chegar a algum lado em que alguém nos ajude.
O nosso «mapa» Miguel lembrava-se que dali a alguns quilómetros (quantos???) havia um Posto Administrativo.
Engatei em primeira e dei à ignição. O motor trabalhou e a caixa de velocidades fez um zunido constante que ao fim de 47 anos ainda não me saiu da memória. E o «campeão das picadas» não perguntou se havia alternativa àquela dor de «caixa», andou para a frente e não nos deixou na estrada.
Foi ao pôr do Sol que a picada deixou de ser rija e se transformou em areia solta como se estivéssemos a atravessar a praia do Guincho ou as dunas do Sahara. E o nosso «herói» não deu mostras de medo: fez um esforço suplementar e levou-nos até à porta do tal Posto. Ali estava, devidamente fardado, o Chefe do dito. Devia ter ouvido à distância a nossa aproximação e, naturalmente, veio ver do que se tratava. Explicado resumidamente o que acontecera, tomou ele logo a iniciativa de nos convidar para jantar e pernoitar, apesar de não ter como nos ajudar na resolução do problema mecânico. Mas que dali a pouco mais de uma centena de quilómetros teríamos apoio pela certa nas oficinas da Companhia dos Algodões de Moçambique, no Molocué.
Posto o «campeão» (ou o «herói»?) a recato de alguma curiosidade nocturna, lavámos as mãos e fomos convidados para jantar.
Mesa posta para quatro com todo o protocolo de instrumentália – garfo, faca, guardanapo, copo – para a ementa mais inesperada que por ali poderia ter sido servida: sardinhas assadas. Exacto, o meu Leitor não duvide, leu bem, sardinhas assadas no meio de nenhures a algumas centenas de quilómetros costa oriental de África adentro. Souberam-nos lindamente mas comemos com a moderação apropriada à cerimónia que nós os três gostamos de fazer com quem nos recebe com o melhor que tem para oferecer.
Sugiro ao Leitor que repare no pormenor de eu não ter ainda referido o facto de ir munido de uma Guia de Marcha militar e por esse facto o Chefe de Posto ser formalmente obrigado a prestar-me todo o apoio que eu lhe pedisse. Não, eu não me anunciei como militar em deslocação oficial, o Chefe do Posto fez o que fez por sua boa vontade apenas. Não nos perguntou sequer como nos chamávamos e nós tivemos o cuidado de corresponder de igual modo: ainda hoje não sabemos o nome do dito Posto nem do Administrador de então. Não me recordo do que foram os «bebes» mas pode ser que o Tó ou o Miguel, ao lerem este escrito, se lembrem e venham aqui contar.
Mas a «coisa» não ficou por aqui.
À luz dum Petromax, jantámos com toda a cerimónia que nos foi ensinada desde os tempos verdes mas à distância de não muito mais de um metro das costas do Chefe descia uma cortina desde as vigas do telhado (não muito alto) até ao chão e lá por trás ouvíamos por vezes algo que parecia alguém a mexer-se, a respirar, sabemos lá que mais… E porque ficámos sem saber de quem se tratava, sentimo-nos no direito de supor. E as suposições foram de dois tipos: um grupo de terroristas ali aboletados como nós; uma ou mais indígenas com quem o Chefe se amancebara às escondidas da mulher oficial residente algures fora dali. Tudo visto (não vimos absolutamente nada) e ponderado (não tínhamos quaisquer parâmetros para ponderação), optámos pela hipótese mais benigna, a das amantíssimas Senhoras. E até daria um bom título para um filme côr-de-rosa, «Há flores na savana».
Pareceu-me então oportuno perguntar quanto devíamos pelo jantar e pela hospedagem.
- Não devem nada, tive muito gosto.
- Mas oh Senhor Administrador, eu sou militar em deslocação oficial e recebo ajudas de custo, posso e devo pagar.
- Não paga nada, guarde o seu dinheirinho que lhe pode fazer falta nalguma outra paragem. E que façam muito boa viagem.
Feitos os agradecimentos que se impunham, o Chefe indicou-nos o local da dormição e parece ter ficado satisfeito quando lhe anunciámos que sairíamos de madrugada, aí pelas 4 da manhã. Urgia chegar relativamente cedo à oficina dos algodões.
O «herói» respondeu ao primeiro incitamento e zuniu por ali além como se nada fosse com ele.
Amanhã há mais…
Julho de 2019
Henrique Salles da Fonseca

COMENTÁRIO
Adriano Lima 18.07.2019: O melhor que me ocorre já dizer é que uma discreta lagriminha se me despontou no olho esquerdo (é quase sempre o esquerdo) ao ler esta narrativa. É que me senti na pele do viajante narrador e logo se me avivou o desejo de regressar às terras africanas por onde andei na casa dos vinte anos. Para repetir as experiências boas e apagar as menos boas, como se elas nunca tivessem ocorrido. Mas tudo isto só acontece porque a pena do escritor Salles da Fonseca tem a virtude de encantar e despertar emoções, mesmo que a palavra dispense pruridos para falar das coisas. Essas formações rochosas (a que chama ulurus) eram típicas da geografia física de Moçambique. Abundavam no Niassa, por onde andei, e a designação que se lhes dava nos documentos militares era “inselberg”, termo que “foi introduzido pelo geólogo alemão Friedrich Wilhelm Conrad Eduard Bornhardt em 1900 para caracterizar montanhas pré-cambrianas, geralmente monolíticas, de gnaisse e granito que emergem abruptamente do plano que as cerca”. Isto é o que li na Wikipédia. É como se fossem icebergs da terra. Essa avaria no cárter foi, de facto, muito grave e arreliadora, mas calculo que a resiliência daquele motor vai permitir chegar até ao mecânico socorrista. A explicação para o ruído atrás da cortina deve ter sido mesmo essa que o Dr. Salles pensou, uma “governanta”. Aqueles chefes de postos eram dum modo geral tirados do mesmo figurino, pessoas sempre acolhedoras e prestáveis para os viajantes. Enfim, a narrativa é bela e é entusiasmante. Estou a ver que vou ter muito como que me entreter até à chegada ao destino final. Parabéns, Dr. Salles, também pela forma meticulosa com que reconstitui estas memórias. Vejo que as guardou a sete chaves.

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