A propósito do pum do Fiat 128 de 4 portas, gramaticalmente uma interjeição nitidamente assustadora lá na picada do
mato, lembrei-me de um outro pum, mas de expressão substantiva, pronunciado por um colega severo, em pleno
conselho escolar, a caracterizar um qualquer caso, expressivo provavelmente da
sua iracúndia, já nessa altura característica pertinaz do foro íntimo dos
cidadãos lusos mais recalcitrantes, mesmo sem minas a recear, como se verifica
no episódio narrado por SF. Coubera-me a mim nesse dia a recolha em acta de
todos os dignos passos acontecidos no nosso conselho escolar, e apressei-me a
reproduzir com lealdade a matéria significativa colhida na magnífica
assembleia, que em nada desmerecia em eficácia resolutiva as que ainda hoje se
processam nas nossas assembleias parlamentares. Zelosamente, pois, tomei nota
também do dito sintagma - não interjectivo mas puramente substantivado, como
exemplo de derivação imprópria, (já usado por Bocage numa anedota que dele se
contava, na minha adolescência), sintagma que transcrevi fielmente na minha
acta. Era nos idos de 79/80, no liceu (termo ainda então não considerado obsoleto) da Lourinhã, naqueles tempos de efectividade forçada, longe da
família, mas de camaradagem comprovada, sobretudo nos almoços num
restaurantezinho próximo, onde eu, quase inalteradamente, ao londo desse ano lectivo, me regalava, não de
arroz com favas mas de dobrada com feijão, não sei se por ser gulosa de comida
que nunca fiz, se porque era o prato mais sóbrio no preço, que a distância da
casa virtuosamente por economia impunha. O certo é que, no conselho escolar
seguinte, ao ler a minha acta perante a assembleia atenta, a par dos risinhos
abafados dos colegas de menos pruridos dramáticos, mereceu o meu texto a
desaprovação preconceituosa de colegas escrupulosos que logo impuseram a
necessidade de o refazer, extraindo o sintagma sonoro, tarefa que eu docilmente cumpriria, para releitura
posterior. Mas, a menos que entretanto os livros de actas já tenham
desaparecido na voragem dos tempos, poderei afirmar, como Eça, relativamente ao
tesouro disputado pelos três irmãos de Medranhos, que a “acta” “lá está ainda,
na mata de Roquelanes”, como cópia primeira, por não serem admitidas
rasuras nem eliminações, nos livros de actas, de folhas numeradas, a atestar a
nossa inalterável hombridade, nas questões de menor limpeza em valores, ainda que por vezes de um critério discursivo mais liberal.
Só peço a Salles da Fonseca que não se
zangue, por este meu desvio tosco da temática do seu texto - mais um
comprovativo da sua graça e ousadia já dos tempos mais juvenis, além do
panorama descrito dessa África que conheceu, e que descreve em sugestões amigas
de meios de desenvolvimento económico de atender, além das peripécias naturais
que o seu estilo ligeiro evoca com tanto gosto, e que o seu amigo Adriano Lima aprova e
ajuda a esclarecer, cientificamente, na questão das rochas, e literariamente,
na questão da prosa e da emoção.
Henrique Salles da Fonseca
18.07.19
Característicos da paisagem de Nampula, os
grandes morros tão semelhantes aos do Rio de Janeiro ou talvez mesmo tão
parecidos com o australiano Uluru. Nitidamente, formações
rochosas - quiçá monolíticas - cuja erosão circundante ao longo de milénios
deixou à mostra de quem por ali ande. Imponentes, sem dúvida, à espera duma
exploração turística que poderia ser motivo de maior desenvolvimento local.
Muito bem, sem Direitos de Autor, aqui fica a sugestão de
cartaz turístico - «Os Ulurus de África».
Picada rija, não arenosa, levando-nos por ali
fora… paisagem desordenada, ou seja, sem agricultura à vista. Significava isso
que as populações não tinham escolhido aquelas bermas de estrada para se
instalarem. Porquê? Eu presumo que por falta de água em permanência se bem que
naquela época em que por ali andámos o aspecto não fosse sequioso. E também não
vimos bicharada. Eventualmente pela mesma razão, falta de charcos para poderem
beber. Planície irregular à espera que o homem a trabalhe pondo-lhe água e
vida. Mas havendo tantas outras zonas naturalmente muito mais ricas, para quê
estar a gastar recursos – sempre escassos – com terras marginais que nem a
fauna bravia procurava?
E lá fomos viajando calmamente a olhar para os
«Ulurus», para a vegetação, para a falta de gente e para a ausência de animais
até que… PUM !!!
- O que terá sido?
- Foi por baixo do carro mas estamos
inteiros, não foi mina.
- Não, claro que não! Foi barulho de
pedra que saltou e bateu por baixo.
Parei de imediato e fomos ver. Uma mancha de
óleo a dizer que algo se tinha furado lá em baixo. O carter da caixa de velocidades furado por uma pedra e ainda pouco
mais fizéramos do que uma centena e meia de quilómetros desde que saíramos de
Nampula. Que chatice!!! E agora? Lembro-me como se fosse hoje que a nenhum de
nós os três passou sequer pela cabeça voltarmos para trás. A solução era para a
frente; para trás é a burra que sabe como se faz.
- Bem, aqui parados é que não resolvemos
nada. Vamos embora, nem que seja com o carro engatado em primeira e a 20 à
hora. Havemos de chegar a algum lado em que alguém nos ajude.
O nosso «mapa» Miguel lembrava-se que dali a
alguns quilómetros (quantos???) havia um Posto Administrativo.
Engatei em primeira e dei à ignição. O motor
trabalhou e a caixa de velocidades fez um zunido constante que ao fim de 47
anos ainda não me saiu da memória. E o «campeão das picadas» não perguntou se
havia alternativa àquela dor de «caixa», andou para a frente e não nos deixou
na estrada.
Foi ao pôr do Sol que a picada deixou de ser
rija e se transformou em areia solta como se estivéssemos a atravessar a praia
do Guincho ou as dunas do Sahara. E o nosso «herói» não deu mostras de medo:
fez um esforço suplementar e levou-nos até à porta do tal Posto. Ali estava,
devidamente fardado, o Chefe do dito. Devia ter ouvido à distância a nossa
aproximação e, naturalmente, veio ver do que se tratava. Explicado
resumidamente o que acontecera, tomou ele logo a iniciativa de nos convidar
para jantar e pernoitar, apesar de não ter como nos ajudar na resolução do
problema mecânico. Mas que dali a pouco mais de uma centena de quilómetros
teríamos apoio pela certa nas oficinas da Companhia dos Algodões de Moçambique, no Molocué.
Posto o «campeão» (ou o «herói»?) a recato de
alguma curiosidade nocturna, lavámos as mãos e fomos convidados para jantar.
Mesa posta para quatro com todo o protocolo de
instrumentália – garfo, faca, guardanapo, copo – para a ementa mais inesperada
que por ali poderia ter sido servida: sardinhas assadas. Exacto, o meu Leitor
não duvide, leu bem, sardinhas assadas no meio de nenhures a algumas centenas
de quilómetros costa oriental de África adentro. Souberam-nos lindamente mas
comemos com a moderação apropriada à cerimónia que nós os três gostamos de
fazer com quem nos recebe com o melhor que tem para oferecer.
Sugiro ao Leitor que repare no pormenor de eu
não ter ainda referido o facto de ir munido de uma Guia de Marcha militar e por
esse facto o Chefe de Posto ser formalmente obrigado a prestar-me todo o apoio
que eu lhe pedisse. Não, eu não me anunciei como militar em deslocação oficial,
o Chefe do Posto fez o que fez por sua boa vontade apenas. Não nos perguntou
sequer como nos chamávamos e nós tivemos o cuidado de corresponder de igual
modo: ainda hoje não sabemos o nome do dito Posto nem do Administrador de
então. Não me recordo do que foram os «bebes» mas pode ser que o Tó ou o
Miguel, ao lerem este escrito, se lembrem e venham aqui contar.
Mas a «coisa» não ficou por aqui.
À luz dum Petromax, jantámos com toda a cerimónia
que nos foi ensinada desde os tempos verdes mas à distância de não muito mais
de um metro das costas do Chefe descia uma cortina desde as vigas do telhado
(não muito alto) até ao chão e lá por trás ouvíamos por vezes algo que parecia
alguém a mexer-se, a respirar, sabemos lá que mais… E porque ficámos sem saber
de quem se tratava, sentimo-nos no direito de supor. E as suposições foram de
dois tipos: um grupo de terroristas ali aboletados como nós; uma ou mais
indígenas com quem o Chefe se amancebara às escondidas da mulher oficial
residente algures fora dali. Tudo visto (não vimos absolutamente nada) e
ponderado (não tínhamos quaisquer parâmetros para ponderação), optámos pela
hipótese mais benigna, a das amantíssimas Senhoras. E até daria um bom título
para um filme côr-de-rosa, «Há flores na savana».
Pareceu-me então oportuno perguntar quanto
devíamos pelo jantar e pela hospedagem.
- Não devem nada, tive muito gosto.
- Mas oh Senhor Administrador, eu sou
militar em deslocação oficial e recebo ajudas de custo, posso e devo pagar.
- Não paga nada, guarde o seu
dinheirinho que lhe pode fazer falta nalguma outra paragem. E que façam muito
boa viagem.
Feitos os agradecimentos que se impunham, o
Chefe indicou-nos o local da dormição e parece ter ficado satisfeito quando lhe
anunciámos que sairíamos de madrugada, aí pelas 4 da manhã. Urgia chegar
relativamente cedo à oficina dos algodões.
O «herói» respondeu ao primeiro incitamento e
zuniu por ali além como se nada fosse com ele.
Amanhã há mais…
Julho de 2019
Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIO
COMENTÁRIO
Adriano Lima 18.07.2019: O melhor que me ocorre já dizer é que uma discreta
lagriminha se me despontou no olho esquerdo (é quase sempre o esquerdo) ao ler
esta narrativa. É que me senti na pele do viajante narrador e logo se me avivou
o desejo de regressar às terras africanas por onde andei na casa dos vinte
anos. Para repetir as experiências boas e apagar as menos boas, como se elas
nunca tivessem ocorrido. Mas tudo isto só acontece porque a pena do escritor
Salles da Fonseca tem a virtude de encantar e despertar emoções, mesmo que a
palavra dispense pruridos para falar das coisas. Essas formações rochosas (a
que chama ulurus) eram típicas da geografia física de Moçambique. Abundavam no
Niassa, por onde andei, e a designação que se lhes dava nos documentos
militares era “inselberg”, termo que “foi introduzido pelo geólogo alemão
Friedrich Wilhelm Conrad Eduard Bornhardt em 1900 para caracterizar montanhas
pré-cambrianas, geralmente monolíticas, de gnaisse e granito que emergem
abruptamente do plano que as cerca”. Isto é o que li na Wikipédia. É
como se fossem icebergs da terra. Essa avaria no cárter foi, de facto,
muito grave e arreliadora, mas calculo que a resiliência daquele motor vai
permitir chegar até ao mecânico socorrista. A explicação para o ruído atrás da
cortina deve ter sido mesmo essa que o Dr. Salles pensou, uma “governanta”.
Aqueles chefes de postos eram dum modo geral tirados do mesmo figurino, pessoas
sempre acolhedoras e prestáveis para os viajantes. Enfim, a narrativa é bela e
é entusiasmante. Estou a ver que vou ter muito como que me entreter até à
chegada ao destino final. Parabéns, Dr. Salles, também pela forma meticulosa
com que reconstitui estas memórias. Vejo que as guardou a sete chaves.
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