Sem tréguas, este sentimento de culpa na
pobreza que sobre nós pende e nos persegue, carregada nas tintas do fado
antigo, como os escritos camilianos e outros tanto evidenciam, e a escrita
neo-realista aclara, na sordidez de um povo calcado e recalcado, sem armas de
educação que estabelecesse outras premissas de elegância cultural e de saber
que se opusessem ao erro e à ignomínia que fazem gala em conduzir o país. É
certo que muitos o detectam e o apontam, mas uma andorinha não faz a primavera,
e escritos como este, de António
Barreto, sobre o Estado da Justiça, passam, “como o rio”, sem apoiantes que façam desviar o rumo do “status quo”, embora seduzam, no lapidado
de um pensamento saído de “experto peito”:
«As
diferenças de opinião, entre magistrados, seriam absolutamente normais, como se
verifica em todas as profissões, se resultassem apenas de diferenças de
interpretação. Seriam aceitáveis, se não tivessem outros fundamentos,
nomeadamente políticos. Seriam admissíveis se não tivessem o condão de suscitar
dúvidas. O problema é que, entre nós, nos últimos anos, os motivos dessas
divergências parecem ter cada vez mais razões ocultas. O que é muito negativo
para o Estado de direito. Ao resultarem de motivos políticos e outros, são
sinal de rivalidades menores e de ferida aberta na isenção. Por isso mesmo, são
motivo de inquietação pública.»
CRÓNICA
Justiça e democracia
Em Portugal, como talvez em raros países
do mundo, a independência da justiça é muito mais do que isso, é autogestão e
autogoverno.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 14 de Julho de 2019
A
ninguém passa despercebida a aparente ou real luta entre magistrados.
Sindicalizados ou não afrontam-se relativamente aos temas e ao exercício dos
direitos à greve. Magistrados judiciais e magistrados do Ministério Público
ignoram-se ou detestam-se, nem sempre cordialmente, e rivalizam em poderes,
autonomia e estatuto. Juízes e procuradores tentam mesmo, não poucas vezes,
atropelar-se. Magistrados das diversas instâncias revelam divergências que
ultrapassam o que poderia ser compreensível, isto é, a geração, para atingir
graus de perseguição institucional. Magistrados de esquerda e de direita
não escondem, em função ou na praça pública, as suas divergências. Magistrados
com e sem ligações pessoais ou políticas a titulares de poder exibem também,
conforme as circunstâncias, divergências sérias que nem sempre resultam de uma
diferente interpretação da lei.
As diferenças de opinião, entre
magistrados, seriam absolutamente normais, como se verifica em todas as
profissões, se resultassem apenas de diferenças de interpretação. Seriam
aceitáveis, se não tivessem outros fundamentos, nomeadamente políticos. Seriam admissíveis
se não tivessem o condão de suscitar dúvidas. O problema é que, entre nós, nos últimos anos, os
motivos dessas divergências parecem ter cada vez mais razões ocultas. O que é
muito negativo para o Estado de direito. Ao
resultarem de motivos políticos e outros, são sinal de rivalidades menores e de
ferida aberta na isenção. Por isso
mesmo, são motivo de inquietação pública. É
verdade que também há juízes bons, também há magistrados muito bons e isentos e
também há procuradores com grande sentido de justiça e de independência
pessoal. No entanto, por mais que sejam, não são suficientes para acalmar um
pouco as vagas de estranhas sensações que percorrem a comunicação todos os
dias. Quando persistente, a suspeição é o pior inimigo da justiça, o pior veneno
para a sua maior virtude, a confiança.
Muito
em especial, os grandes processos políticos e económicos, que envolvem
ministros, deputados, directores-gerais, gestores e banqueiros, têm sido
férteis em divergências entre magistrados de tal modo graves que nos criam as
maiores dúvidas sobre a isenção da justiça. Temos cada vez menos a certeza de
que, nestes processos e nestes casos, todos com conotações aos poderes
políticos e económicos, a justiça esteja entregue em boas mãos. É verdade que
casos como os de José Sócrates, Ricardo Salgado, Manuel Pinho, Armando Vara, António
Mexia, Duarte Lima, Vale e Azevedo, Zeinal Bava, José Berardo e Jardim
Gonçalves, para já não falar de instituições e empresas, como o BES, a CGD, o
Montepio, o Banif, a EDP, a PT, o BCP e outros, são tão graves e tão vistosos
que explicam tanta divergência. Explicam,
mas não desculpam. Por isso mesmo e porque a opinião está a ser massacrada
por sucessivas notícias, sem falar de boatos, é conveniente pensar em
mecanismos capazes de reforçar o escrutínio da justiça sem beliscar a sua
independência. Na França, nos Estados Unidos, na Suíça, na
Grã-Bretanha e tantos outros há respostas para essa necessidade. Como todos os casos acima referidos estão já feridos
de modo talvez irreparável e não se pode, nem deve, mexer na justiça de modo
leviano, o que quer que se faça já só tem efeitos no futuro. Paciência.
Há maneiras legais de destruir a
justiça. Há processos legais de salvar cúmplices e favorecer criminosos. Há
garantias suficientes para adiar indefinidamente processos. A justiça, em todas
as suas fases, necessita de mais escrutínio, menos garantias, menos burocracia,
menos chicanas processuais, menos favores prestados aos poderosos e aos
advogados potentes e menos facilidades oferecidas aos profissionais da política
e do tráfico de influências. Em Portugal, como talvez em raros países do mundo,
a independência da justiça é muito mais do que isso, é autogestão e
autogoverno.
Os
Conselhos Superiores têm um enorme poder. Uma
maioria de membros não-magistrados seria um factor adicional de isenção e
escrutínio. Não é suficiente, mas ajuda. Isso já pode ser verdade no caso dos
magistrados, em cujo conselho, se nenhum membro designado for do ofício, se
pode verificar uma maioria “civil”. Mas tal não é possível no caso do
Ministério Público, onde a maioria é de procuradores. A tentativa de alterar
esse estado de coisas foi frustrada este ano. Em certo sentido, ainda bem, pois
seria feita no fim da legislatura, em correria, em ligação quase imediata com
as dificuldades crescentes dos processos Sócrates e Salgado. O Gato era
enorme, mas o Rabo ainda maior! Espera-se que, em legislatura ulterior, com
serenidade, se encare de novo o tema. A situação foi parecida com a
substituição da procuradora-geral. É claro que um mandato mais longo, mas
único, é uma solução preferível. Mas fazê-lo, como foi feito, para forçar uma
substituição e em vésperas de eleições, sem prestar atenção ao que se tinha
passado e passa com as recentes crises da justiça, era evidentemente uma
solução que levantou, justamente, todas as suspeitas.
Será que, nos meios políticos e nas grandes instituições, não se vê
o dano que os acontecimentos estão a causar à democracia e à justiça? As
notícias e as peripécias relativas aos juízes e procuradores, designadamente
Ivo Rosa, Carlos Alexandre e Rosário Teixeira, não serão suficientes para se
perceber que as brechas e as feridas podem ser, por muitos anos, irreparáveis?
Não haverá quem veja que já não basta gemer de inquietação?
É
talvez a mais pesada e grave responsabilidade do poder político democrático, o
que inclui Presidente da República, Assembleia da República e Governo: começar
a preparar, para daqui a muitos meses ou uns anos, uma pequena reforma das
estruturas de poder na Justiça e nos modos de ligação à democracia, o que exige
seriedade, preparação e debate. Entre
todas as instituições, entre todos os titulares da soberania, só a justiça e os
tribunais estão absolutamente livres de qualquer mecanismo de escrutínio,
contrapeso e reequilíbrio. Todos, menos aqueles, estão sujeitos
a avaliação, a contrapoder e, quanto mais não seja, a eleição. Justiça e
tribunais não estão submetidos a qualquer avaliação ou acompanhamento. A não
ser pelos próprios.
É
uma pequena reforma, pela dimensão, enorme pela importância. Será um bom começo
do longo trabalho de libertação da justiça dos processos e das garantias que a
destroem. Talvez seja essa a melhor maneira de respeitar um dos mais
importantes preceitos da nossa Constituição: “… administrar a
justiça em nome do Povo.” Em nome de… Não em vez de…
Sociólogo
COMENTÁRIOS:
Fowler Fowler: Este Sr. já defendeu a tese de que a Justiça no
Estado Novo funcionava melhor que agora, em democracia. Foi corrigido e passou
a dizer que a Justiça funcionava em todo o país, excepto na capital onde se
concentravam mais casos de corrupção e afins. Sem emenda e tomando os seus
desejos por realidade, desejou que toda a tropa fandanga do PS e arredores
fosse parar à cadeia, assim, literalmente. Do ex-primeiro ministro ao director
geral. Eu acho que este sr. não é fascista ou estalinista, mas parece não
defender o Estado de Direito e a Democracia. Mais parece querer chamar o Moro,
o justiceiro.
Mendonça, Kiribati: A realidade infelizmente dá mais razão ao insigne
cronista que a si, meu caro. Mas quem é que acredita nesta justiça?
Quem?
Luís Azenha Bonito, Coimbra 14.07.19: «É verdade que também há juízes bons, também há
magistrados muito bons e isentos e também há procuradores com grande sentido de
justiça e de independência pessoal.» De entre os 1743 magistrados judiciais
(PORDATA, 2018) quantos é que são bons? E muito bons? Esta classe profissional
entende, com o constante patrocínio da Assembleia da República, que o número de
profissionais deve manter-se muito abaixo do que o exercício da justiça em
Portugal exige. De facto, em 1991, havia 1028 magistrados judiciais em Portugal
(PORDATA, 2018) e, em 2018, os acima referidos 1743. Enquanto o número de
magistrados judiciais for actualizado de acordo com os interesses mesquinhos e
totalitários destes, Portugal continuará a ter magistrados incompetentes que
parecem competentes... Um vil e torpe facto!
Jose, 14.07.2019: O tempo
histórico é o dos povos sentirem a vida a andar para trás. Na celebração da
mudança de século, há 120 anos, a classe dominante proclamava em Paris que na
mudança de século seguinte estaria o mundo a transitar para a sociedade da
abundância e do lazer, o horário de trabalho não ultrapassaria as 4 horas por
dia. Era a glória do Capitalismo. Em 1929 ocorreu a grande depressão capitalista
que desembocou nas guerras mundiais onde as dezenas de milhões de mortos
disfarçaram o andar para trás das vidas em consequência da crise capitalista de
29. A presente crise capitalista de 2008 não teve guerra e quem só vive dos
rendimentos do trabalho sente o recuo e zangou-se com a classe dominante
exigindo a sua prisão. É isso que está a ser gerido pela justiça com o
linchamento público do Capital.
Não
se disfarce o essencial com o acessório. O que o povo reclama é a prisão da
nata da classe dominante. Pessoal de Capital, Pessoal da política para a
prisão! É o clamor das nações vítimas da crise cíclica do Capitalismo de 2008. Em
Portugal as instituições da justiça vazam as narrativas para o Correio da Manhã
e os julgamentos populares tomam conta do discurso público a nata dos políticos
e a nata dos capitalistas é linchada em praça pública sob a suprema gestão da
justiça. Há 2,6 milhões
de pobres e outros tantos que empobrecem trabalhando, há os portugueses em
idade fértil que partem para o estrangeiro na esperança de por lá construírem
família. A prisão seca e rápida dos capitalista e políticos citados no texto de
AB seria pouco para a sede de vingança popular clama pelo Populista.
José Almeida, 14.07.2019: Diabolizar os
problemas e as clivagens do Ministério Público e dos Tribunais é tomar atenção
ao que está dentro da casa e esquecer que são os alicerces, as fundações, as
empenas e o telhado que necessitam de reparação e de reforço. Responder
Esquece-se o articulista que os
tribunais não fazem justiça em sentido material: fazem a justiça de um Estado
de Direito, ou seja, limitam-se a aplicar a lei aos factos provados. O problema
é, pois, anterior ao Ministério Público e aos Tribunais. É um problema de lei,
da Assembleia da República, dos Governos e de todos os órgãos de direito
público com intervenção e competências na elaboração da lei e dos regulamentos.
É um problema da lei positiva e por conseguinte é um problema político.
Melhores leis precisam-se. O resto resolve-de por inerência.
Luísa Alpalhão: Melhores
leis precisam-se? Com que base faz essa afirmação? Leia o nº 1 do artigo 9º do CCivil Artigo 9.º -
(Interpretação da lei) 1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei,
mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo
em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi
elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Não há más leis.
Joaquim Manuel Lopes, Ermesinde 14.07.2019:
Tanta divergência por tantos motivos.
Quando se quer fazer bem, faz-se sempre bem. Sem nenhuma polémica, nem ses. É
só querer. Haver vontade.
cisteina, Porto 14.07.2019: Uma belíssima crónica e retrato de como vai a
'nossa' justiça e as truculências que todos percebemos, aqui muito bem
retratadas. Segundo este caminho fácil é concluir que será exactamente esta
'justiça' a dar cabo disto tudo, quando ela não funciona o descalabro, a
revolta e a revolução encontrarão outro caminho, muito mais cruel e penoso. Mas
continuamos a assobiar como se nada fosse. Tirando as excepções aqui referidas
o que se tem passado na justiça é mau demais, a incompetência, a corrupção, a
legislação fornada nos grandes escritórios a pedido dos poderosos, também o
processualismo, a prescrição, enfim, vergonhas de arrepiar.
Qualquer coisa, Far away 14.07.2019: Compreendo o argumento mas discordo. As feridas de que
fala são precisamente úteis no sentido em que não há seguidismo na justiça e
por isso têm capacidade para continuar independentes. As feridas significam que
há debate interno o que também é bom. Acho precisamente o contrário do que
propôs. Nunca o ministério público teve tanta autonomia e que por isso está a
haver um abanão. As pessoas percebem este fervilhar como acção, mudança e
talvez esperança. Ninguém está acima da lei e será escrutinado se usar o estado
para bem próprio. O poder legislativo e executivo têm poder sobre o judicial
pelo simples facto que fazem e executam as leis que regem o trabalho e actividade
do poder judicial e no fim têm a última palavra no cômputo geral. Diria, como
tem de ser!
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