terça-feira, 16 de julho de 2019

Uma lição, todavia



Sem tréguas, este sentimento de culpa na pobreza que sobre nós pende e nos persegue, carregada nas tintas do fado antigo, como os escritos camilianos e outros tanto evidenciam, e a escrita neo-realista aclara, na sordidez de um povo calcado e recalcado, sem armas de educação que estabelecesse outras premissas de elegância cultural e de saber que se opusessem ao erro e à ignomínia que fazem gala em conduzir o país. É certo que muitos o detectam e o apontam, mas uma andorinha não faz a primavera, e escritos como este, de António Barreto, sobre o Estado da Justiça, passam, “como o rio”, sem apoiantes que façam desviar o rumo do “status quo”, embora seduzam, no lapidado de um pensamento saído de “experto peito”:
«As diferenças de opinião, entre magistrados, seriam absolutamente normais, como se verifica em todas as profissões, se resultassem apenas de diferenças de interpretação. Seriam aceitáveis, se não tivessem outros fundamentos, nomeadamente políticos. Seriam admissíveis se não tivessem o condão de suscitar dúvidas. O problema é que, entre nós, nos últimos anos, os motivos dessas divergências parecem ter cada vez mais razões ocultas. O que é muito negativo para o Estado de direito. Ao resultarem de motivos políticos e outros, são sinal de rivalidades menores e de ferida aberta na isenção. Por isso mesmo, são motivo de inquietação pública.»
CRÓNICA
Justiça e democracia
Em Portugal, como talvez em raros países do mundo, a independência da justiça é muito mais do que isso, é autogestão e autogoverno.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 14 de Julho de 2019
A ninguém passa despercebida a aparente ou real luta entre magistrados. Sindicalizados ou não afrontam-se relativamente aos temas e ao exercício dos direitos à greve. Magistrados judiciais e magistrados do Ministério Público ignoram-se ou detestam-se, nem sempre cordialmente, e rivalizam em poderes, autonomia e estatuto. Juízes e procuradores tentam mesmo, não poucas vezes, atropelar-se. Magistrados das diversas instâncias revelam divergências que ultrapassam o que poderia ser compreensível, isto é, a geração, para atingir graus de perseguição institucional. Magistrados de esquerda e de direita não escondem, em função ou na praça pública, as suas divergências. Magistrados com e sem ligações pessoais ou políticas a titulares de poder exibem também, conforme as circunstâncias, divergências sérias que nem sempre resultam de uma diferente interpretação da lei.
As diferenças de opinião, entre magistrados, seriam absolutamente normais, como se verifica em todas as profissões, se resultassem apenas de diferenças de interpretação. Seriam aceitáveis, se não tivessem outros fundamentos, nomeadamente políticos. Seriam admissíveis se não tivessem o condão de suscitar dúvidas. O problema é que, entre nós, nos últimos anos, os motivos dessas divergências parecem ter cada vez mais razões ocultas. O que é muito negativo para o Estado de direito. Ao resultarem de motivos políticos e outros, são sinal de rivalidades menores e de ferida aberta na isenção. Por isso mesmo, são motivo de inquietação pública. É verdade que também há juízes bons, também há magistrados muito bons e isentos e também há procuradores com grande sentido de justiça e de independência pessoal. No entanto, por mais que sejam, não são suficientes para acalmar um pouco as vagas de estranhas sensações que percorrem a comunicação todos os dias. Quando persistente, a suspeição é o pior inimigo da justiça, o pior veneno para a sua maior virtude, a confiança.
Muito em especial, os grandes processos políticos e económicos, que envolvem ministros, deputados, directores-gerais, gestores e banqueiros, têm sido férteis em divergências entre magistrados de tal modo graves que nos criam as maiores dúvidas sobre a isenção da justiça. Temos cada vez menos a certeza de que, nestes processos e nestes casos, todos com conotações aos poderes políticos e económicos, a justiça esteja entregue em boas mãos. É verdade que casos como os de José Sócrates, Ricardo Salgado, Manuel Pinho, Armando Vara, António Mexia, Duarte Lima, Vale e Azevedo, Zeinal Bava, José Berardo e Jardim Gonçalves, para já não falar de instituições e empresas, como o BES, a CGD, o Montepio, o Banif, a EDP, a PT, o BCP e outros, são tão graves e tão vistosos que explicam tanta divergência. Explicam, mas não desculpam. Por isso mesmo e porque a opinião está a ser massacrada por sucessivas notícias, sem falar de boatos, é conveniente pensar em mecanismos capazes de reforçar o escrutínio da justiça sem beliscar a sua independência. Na França, nos Estados Unidos, na Suíça, na Grã-Bretanha e tantos outros há respostas para essa necessidade. Como todos os casos acima referidos estão já feridos de modo talvez irreparável e não se pode, nem deve, mexer na justiça de modo leviano, o que quer que se faça já só tem efeitos no futuro. Paciência.
Há maneiras legais de destruir a justiça. Há processos legais de salvar cúmplices e favorecer criminosos. Há garantias suficientes para adiar indefinidamente processos. A justiça, em todas as suas fases, necessita de mais escrutínio, menos garantias, menos burocracia, menos chicanas processuais, menos favores prestados aos poderosos e aos advogados potentes e menos facilidades oferecidas aos profissionais da política e do tráfico de influências. Em Portugal, como talvez em raros países do mundo, a independência da justiça é muito mais do que isso, é autogestão e autogoverno.
Os Conselhos Superiores têm um enorme poder. Uma maioria de membros não-magistrados seria um factor adicional de isenção e escrutínio. Não é suficiente, mas ajuda. Isso já pode ser verdade no caso dos magistrados, em cujo conselho, se nenhum membro designado for do ofício, se pode verificar uma maioria “civil”. Mas tal não é possível no caso do Ministério Público, onde a maioria é de procuradores. A tentativa de alterar esse estado de coisas foi frustrada este ano. Em certo sentido, ainda bem, pois seria feita no fim da legislatura, em correria, em ligação quase imediata com as dificuldades crescentes dos processos Sócrates e Salgado. O Gato era enorme, mas o Rabo ainda maior! Espera-se que, em legislatura ulterior, com serenidade, se encare de novo o tema. A situação foi parecida com a substituição da procuradora-geral. É claro que um mandato mais longo, mas único, é uma solução preferível. Mas fazê-lo, como foi feito, para forçar uma substituição e em vésperas de eleições, sem prestar atenção ao que se tinha passado e passa com as recentes crises da justiça, era evidentemente uma solução que levantou, justamente, todas as suspeitas.
Será que, nos meios políticos e nas grandes instituições, não se vê o dano que os acontecimentos estão a causar à democracia e à justiça? As notícias e as peripécias relativas aos juízes e procuradores, designadamente Ivo Rosa, Carlos Alexandre e Rosário Teixeira, não serão suficientes para se perceber que as brechas e as feridas podem ser, por muitos anos, irreparáveis? Não haverá quem veja que já não basta gemer de inquietação?
É talvez a mais pesada e grave responsabilidade do poder político democrático, o que inclui Presidente da República, Assembleia da República e Governo: começar a preparar, para daqui a muitos meses ou uns anos, uma pequena reforma das estruturas de poder na Justiça e nos modos de ligação à democracia, o que exige seriedade, preparação e debate. Entre todas as instituições, entre todos os titulares da soberania, só a justiça e os tribunais estão absolutamente livres de qualquer mecanismo de escrutínio, contrapeso e reequilíbrio. Todos, menos aqueles, estão sujeitos a avaliação, a contrapoder e, quanto mais não seja, a eleição. Justiça e tribunais não estão submetidos a qualquer avaliação ou acompanhamento. A não ser pelos próprios.
É uma pequena reforma, pela dimensão, enorme pela importância. Será um bom começo do longo trabalho de libertação da justiça dos processos e das garantias que a destroem. Talvez seja essa a melhor maneira de respeitar um dos mais importantes preceitos da nossa Constituição: “… administrar a justiça em nome do Povo.” Em nome de… Não em vez de…
Sociólogo
COMENTÁRIOS:
Fowler Fowler: Este Sr. já defendeu a tese de que a Justiça no Estado Novo funcionava melhor que agora, em democracia. Foi corrigido e passou a dizer que a Justiça funcionava em todo o país, excepto na capital onde se concentravam mais casos de corrupção e afins. Sem emenda e tomando os seus desejos por realidade, desejou que toda a tropa fandanga do PS e arredores fosse parar à cadeia, assim, literalmente. Do ex-primeiro ministro ao director geral. Eu acho que este sr. não é fascista ou estalinista, mas parece não defender o Estado de Direito e a Democracia. Mais parece querer chamar o Moro, o justiceiro.
Mendonça, Kiribati: A realidade infelizmente dá mais razão ao insigne cronista que a si, meu caro. Mas quem é que acredita nesta justiça? Quem?
Luís Azenha Bonito, Coimbra 14.07.19: «É verdade que também há juízes bons, também há magistrados muito bons e isentos e também há procuradores com grande sentido de justiça e de independência pessoal.» De entre os 1743 magistrados judiciais (PORDATA, 2018) quantos é que são bons? E muito bons? Esta classe profissional entende, com o constante patrocínio da Assembleia da República, que o número de profissionais deve manter-se muito abaixo do que o exercício da justiça em Portugal exige. De facto, em 1991, havia 1028 magistrados judiciais em Portugal (PORDATA, 2018) e, em 2018, os acima referidos 1743. Enquanto o número de magistrados judiciais for actualizado de acordo com os interesses mesquinhos e totalitários destes, Portugal continuará a ter magistrados incompetentes que parecem competentes... Um vil e torpe facto!
Jose, 14.07.2019: O tempo histórico é o dos povos sentirem a vida a andar para trás. Na celebração da mudança de século, há 120 anos, a classe dominante proclamava em Paris que na mudança de século seguinte estaria o mundo a transitar para a sociedade da abundância e do lazer, o horário de trabalho não ultrapassaria as 4 horas por dia. Era a glória do Capitalismo. Em 1929 ocorreu a grande depressão capitalista que desembocou nas guerras mundiais onde as dezenas de milhões de mortos disfarçaram o andar para trás das vidas em consequência da crise capitalista de 29. A presente crise capitalista de 2008 não teve guerra e quem só vive dos rendimentos do trabalho sente o recuo e zangou-se com a classe dominante exigindo a sua prisão. É isso que está a ser gerido pela justiça com o linchamento público do Capital.
Não se disfarce o essencial com o acessório. O que o povo reclama é a prisão da nata da classe dominante. Pessoal de Capital, Pessoal da política para a prisão! É o clamor das nações vítimas da crise cíclica do Capitalismo de 2008. Em Portugal as instituições da justiça vazam as narrativas para o Correio da Manhã e os julgamentos populares tomam conta do discurso público a nata dos políticos e a nata dos capitalistas é linchada em praça pública sob a suprema gestão da justiça. Há 2,6 milhões de pobres e outros tantos que empobrecem trabalhando, há os portugueses em idade fértil que partem para o estrangeiro na esperança de por lá construírem família. A prisão seca e rápida dos capitalista e políticos citados no texto de AB seria pouco para a sede de vingança popular clama pelo Populista.
TP, Leiria 14.07.2019: Credo o seu comunismo ate enjoa!
José Almeida, 14.07.2019: Diabolizar os problemas e as clivagens do Ministério Público e dos Tribunais é tomar atenção ao que está dentro da casa e esquecer que são os alicerces, as fundações, as empenas e o telhado que necessitam de reparação e de reforço. Responder
Esquece-se o articulista que os tribunais não fazem justiça em sentido material: fazem a justiça de um Estado de Direito, ou seja, limitam-se a aplicar a lei aos factos provados. O problema é, pois, anterior ao Ministério Público e aos Tribunais. É um problema de lei, da Assembleia da República, dos Governos e de todos os órgãos de direito público com intervenção e competências na elaboração da lei e dos regulamentos. É um problema da lei positiva e por conseguinte é um problema político. Melhores leis precisam-se. O resto resolve-de por inerência.
Luísa Alpalhão: Melhores leis precisam-se? Com que base faz essa afirmação? Leia o nº 1 do artigo 9º do CCivil Artigo 9.º - (Interpretação da lei) 1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Não há más leis.
Joaquim Manuel Lopes, Ermesinde 14.07.2019: Tanta divergência por tantos motivos. Quando se quer fazer bem, faz-se sempre bem. Sem nenhuma polémica, nem ses. É só querer. Haver vontade.
cisteina, Porto 14.07.2019: Uma belíssima crónica e retrato de como vai a 'nossa' justiça e as truculências que todos percebemos, aqui muito bem retratadas. Segundo este caminho fácil é concluir que será exactamente esta 'justiça' a dar cabo disto tudo, quando ela não funciona o descalabro, a revolta e a revolução encontrarão outro caminho, muito mais cruel e penoso. Mas continuamos a assobiar como se nada fosse. Tirando as excepções aqui referidas o que se tem passado na justiça é mau demais, a incompetência, a corrupção, a legislação fornada nos grandes escritórios a pedido dos poderosos, também o processualismo, a prescrição, enfim, vergonhas de arrepiar.
Qualquer coisa, Far away 14.07.2019: Compreendo o argumento mas discordo. As feridas de que fala são precisamente úteis no sentido em que não há seguidismo na justiça e por isso têm capacidade para continuar independentes. As feridas significam que há debate interno o que também é bom. Acho precisamente o contrário do que propôs. Nunca o ministério público teve tanta autonomia e que por isso está a haver um abanão. As pessoas percebem este fervilhar como acção, mudança e talvez esperança. Ninguém está acima da lei e será escrutinado se usar o estado para bem próprio. O poder legislativo e executivo têm poder sobre o judicial pelo simples facto que fazem e executam as leis que regem o trabalho e actividade do poder judicial e no fim têm a última palavra no cômputo geral. Diria, como tem de ser!

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