sábado, 6 de julho de 2019

Manda quem pode



A indignação de Alberto Gonçalves ante o caso escabroso da demolição do prédio Coutinho, mau grado a resistência de alguns moradores, assume um tom de desprezo total pelo país e pela nação de gente abúlica e rastejante ante o poder. Como se viu neste caso. E de gente ignara também, que semeia fealdade sem controlo, como tive ocasião de ver recentemente: uma escultura em Oliveira de Frades, simbolizando uma oliveira, creio, que mais parece repolho invertido, a não ser que o digno escultor tenha querido representar, por chufa anticlerical, cabeleiras desgrenhadas de frades a fazer o pino, qualquer sugestão é possível no nosso vazio ultrajante. Mas outras mais monstruosidades macaqueadoras de arte vimos por aqueles sítios, o que não admira, pois o próprio Ronald foi vítima de artistas tais, em sítios mais conhecidos. Quanto ao prédio Coutinho… onde jorra dinheiro brota poder, é claro. E poder, entre nós, é de força bruta, naturalmente.
A lição e a demolição do prédio Coutinho /premium
OBSERVADOR, 6/7/19
O Estado serve para desumanizar os cidadãos. E os cidadãos deveriam servir para abominar o exercício e opor-se-lhe. É evidente que o Estado, que detém a força, acaba por ganhar sempre, ou quase sempre
José Manuel Pedreirinho, um sujeito que é presidente da Ordem dos Arquitectos, considera o prédio Coutinho uma “aberração completa sem qualidade arquitectónica”. Após quinze minutos de buscas na internet, não consegui encontrar nenhuma obra do sr. Pedreirinho. É pena, porque acho que me divertiria imenso. Felizmente, encontram-se por esse Portugal afora inúmeras obras desenhadas e assinadas por inúmeros arquitectos inscritos na agremiação a que o sr. Pedreirinho preside. Para quem tiver estômago, é uma galhofa. Se o prédio Coutinho é feio – e Deus Nosso Senhor sabe que é horrendo –, não é mais feio do que largos milhares de estafermos que se plantaram de Norte a Sul nas últimas cinco décadas. Décadas em que, por obra (lá está) e graça (lá está também) de grandes, médios, pequenos e microscópicos arquitectos, a estética de uma nação pobre e mansa se transformou num compêndio insultuoso de porcarias. Por algum motivo, apenas o prédio Coutinho (e uns barracos de praia) foi indiciado para eliminação.
É verdade que se todas as construções repugnantes fossem demolidas, idealmente em cima dos vultos que as conceberam, metade da população daria por si a dormir debaixo de pontes. E isto enquanto as próprias pontes, cuja maioria ofende a vista, não fossem igualmente abaixo. Por estas e por outras, do bom senso às limitações financeiras, é apesar de tudo recomendável a manutenção das misérias visuais que temos. Donde uma questão: porque é que não se aplica o mesmo princípio ao prédio Coutinho, aparentemente o único bicho a abater num rebanho contaminado com gravidade?
Uma pergunta, nenhuma resposta, diversas suspeitas, meia dúzia de factos. Há uma autarquia, naturalmente socialista, que quer livrar-se do edifício em causa para construir um mercado municipal, por acaso a exacta estrutura que se arrasou para erguer, vai para meio século, o exacto edifício. Há um presidente da autarquia que, com a impunidade dos sobas e o descaramento dos impunes, comete os desvarios que lhe apetece para esvaziar aquilo. Há uma metástase da autarquia, chamada Vianapólis, que finge emprestar competência técnica à decisão e é chefiada pelo irmão de um secretário de Estado, ambos decerto habilitadíssimos. Há os contribuintes que patrocinam os 35 milhões necessários à existência da Vianapólis e às expropriações. Há um governo que costuma pugnar pela legalidade e produziu considerações interessantes acerca do assunto, incluindo a de que os “poderes públicos”, coitadinhos, saem “abusados” do processo. Há uma lei que condena os senhorios que incomodem inquilinos no sentido do despejo. Há a indiferença dos “poderes públicos” à lei. E há, claro, os moradores restantes do prédio Coutinho, os quais, com inimaginável insolência, recusam abdicar do que é deles e são por isso processados, perseguidos, cercados, ameaçados e privados de água, comida e saúde. O que não há é quem se enfureça a sério com tamanha demonstração de prepotência.
Em lugares civilizados – espero eu, que os tempos não favorecem o optimismo –, os últimos dias teriam assistido a um desfile de multidões furiosas à porta dos acossados, multidões de vizinhos, conterrâneos ou fortuitos, solidários com a resistência de nove pessoas a uma máquina sinistra e brutal. Por cá, não houve vivalma. Por cá, marcha-se e grita-se contra e a favor do que calha, desde que calhe de serem assuntos ridículos (a “identidade”), inevitáveis (a “troika”), remotos (o “Médio Oriente”), confusos (as “alterações climáticas”) e, em suma, quaisquer matérias aprovadas e certificadas pelos comités tácitos que aprovam e certificam os berreiros colectivos. Pelos nove do prédio Coutinho, velhos comuns que não integram tribos particulares, nem um. Nem uma criatura se aproximou daquela gente, a provar-lhe que não está sozinha.
A bem dizer, uma criatura tentou aproximar-se. Era uma actriz dramática local, Elisabete Nãoseiquê, regularmente financiada pela câmara e que sonhou com o primeiro “cordão humano” do mundo que em vez de proteger as vítimas protegeria os opressores. A aceitação, pelo tribunal, de uma providência cautelar favorável aos moradores travou os ímpetos da dona Elisabete, que passavam por escorraçar os resistentes. Porém, a ideia ficou. Aliás, a ideia já reside aqui há muito tempo – e não arrisca ser despejada: entre os fracos e os fortes, o português médio não hesita na preferência. De Viana a Faro, a esperança de um país livre é a primeira a morrer.
Do episódio sobra uma lição, que ninguém aprenderá. Os que enchem a boca com a fundamental serventia do Estado teriam no prédio Coutinho um bom exemplo para acompanhar a argumentação. O Estado serve para desumanizar os cidadãos. E os cidadãos deveriam servir para abominar o exercício e, na medida do possível, opor-se-lhe. É evidente que o Estado, que detém a força, acaba por ganhar sempre, ou quase sempre. Mas há perder com dignidade. E há perder assim.

COMENTÁRIOS
Pedro Ferreira: Brilhante! Já assinei a petição para salvar o prédio Coutinho. E no dia das eleições, lá estarei para correr com os XUXAS do poder.
Maria Augusta Martins: Também acho António um fascismo implementado, governado e dirigido pelo partido socialista, desde o seu primeiro interventor desta saga o fujão-cagão do pântano dos refugiados Guterres, José Sócrates como secretário da Habitação passando pelo Defensor de Mouras, que lá residiu e o actual e conhecidíssimo Zé Maria, cangalheiro e gato pingado de gravata preta dos Estaleiros, defensor dos trabalhadores bolcheviques e inimigos de qualquer trabalho, que num golpe de rins se tornou mordomo de laço branco, do armador Ferreira  e apreciador dos gorjeios da Carla Bruni ) ex primeira dama de França). Foram estes os cabecilhas da coisa e se o fizeram é tão só por dividendos com empresários de demolições e sucatas (os governantes PS têm muitos e conhecidos antecedentes nestas lides do constrói e bota-abaixo que movimenta sempre as "massas". Quanto aos manos Delgado esse assunto a meu ver não passa de mera coincidência do acaso, dado que quase vinte anos separam as duas nomeações e o último o Jorge já encontrou o trabalho feito e creio que não vá meter prego ou estopa. No fundo para mim o prédio Coutinho foi sempre um bom naco para políticos e construtores ou então maldição das freiras de S. Bento as legítimas possuidoras que foram esbulhadas pelo decreto do "Mata-frades"
Pedro Ferreira > Maria Augusta Martins: Excelente comentário!
Zacarias Pançudo: O caso do prédio Coutinho tem mais pertinência quando comparado com o bairro da Jamaica. Fica demonstrado que Portugal não é um estado de direito, e que democracia é o nome que se dá a um regime aristocrático em que uma raça está acima da lei, é sempre vítima e nunca culpada e tem direitos sem ter deveres. Há uma classe intermédia chamada funcionários públicos e na base do sistema estão os trabalhadores do sector privado, também chamados servos do fisco. A religião deste sistema é o politicamente correcto, que se organiza em torno de conceitos como o multiculturalismo, o feminismo ou a ecologia. É assaz dogmática e reage com ferocidade à heresia, censurando e lançando anátemas sobre quem se lhe opõe.
maria perry > Zacarias Pançudo:  “Fica demonstrado que Portugal não é um estado de direito,..” Nem nunca foi em relação aos proprietários (excepção a Passos Coelho). Até Cavaco Silva nada fez para lhes devolver o direito a rendas justas. Toda a gente tem muita inveja dos proprietários. Por causa disso, as cidades portuguesas acabaram em ruínas. Castigo de Deus.

Nenhum comentário: