A história contada por Salles da
Fonseca, do seu orgulhoso Fiat 128 de 4
portas, trouxe-me à ideia o meu “Peugeot
204, espada em segunda mão, que também veio transferido de África, graças
aos cuidados do meu marido que por lá ficou ainda algum tempo, e que achava que
iríamos precisar dele por cá, pois éramos seis os que viemos primeiro, a quem a
família acolitou. Nas nossas mãos, nunca o Peugeot atravessou mais do que as ruas
lourençomarquinas, ao contrário do heróico Fiat
128 de 4 portas, branco, com o volante à esquerda do
relato épico-gracioso de Salles da
Fonseca. Em todo o caso por aqui foi esmorecendo gradualmente, desfeiteado
pelos condutores da fila traseira que o mandavam de volta ao ponto de partida,
reconhecendo-lhe a origem, pois tinha o volante desmascarador à direita. Não,
não andou muito nas minhas mãos, mas trouxe, como selo de uma tragédia gorada,
um buraco de bala que nunca soubemos como surgiu, mas que nos refrescava a
memória de um receio que não chegámos verdadeiramente a viver. Todavia, a
história graciosa das ousadias do
condutor do Fiat 128, fez-me lembrar
a canção de Victor Espadinha – Recordar é viver – que escutei no Youtube – e por isso o
aconselho a Salles da Fonseca, já que o VE também andou por aquelas terras de gente simpática que
fomos formando… e daquelas terras de que os comentadores de S.F também se lembram, que por lá passaram…
Nampula, a cidade de saudades
Nampula, a cidade de saudades
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 15.07.19
A BEM DA NAÇÃO, 15.07.19
Então,
comecemos pelo fim…
Faz
hoje, 14 de Julho de 2019, 47 anos que o António
Sousa Pires, o Miguel Lory e eu começámos a viagem de Nampula a
Lourenço Marques.
E
agora, vamos até antes do princípio…
O
transporte foi o meu carro, um Fiat
128 de 4 portas, branco, com o volante à esquerda, que eu
mandara ir de barco de Lisboa a Nacala e que chegara incólume a Nampula montado
num wagon dos caminhos de ferro. Faço desde já notar que esse verdadeiro «herói
das picadas» foi o único carro que até hoje eu tive que dobrou duas vezes o
Cabo da Boa Esperança. Não deve haver muitos carros que se possam gabar de tal
feito em viagens de longo curso (isto, para despistar quaisquer viagens de
proximidade pois não sei se há algum ferry boat que ligue Capetown a alguma
ilha nas respectivas afueras tais como Roben Island e
quejandas).
Esse
herói regressou a Portugal já depois do «glorioso», passou todo o PREC no
activo e só quando a calma voltou é que ele teve direito à reforma. Um valente
que nunca deixou o dono na estrada. Nunca, mesmo!
Não
faltará muito para que o leitor perceba por quê tanta atenção ao carro.
Mas,
entretanto, durante a nossa (do carro e minha) estadia de 13 meses em Nampula,
ele viajou aos fins de semana em direcção à Ilha de Moçambique, a Nacala e não
só em direcção à costa mas também ao interior, àquilo a que vulgarmente
chamávamos «o mato». Aprendemos a «navegar» em areia solta com e sem carga e
nunca o valentaço se atascou. Mas o dono dele teve o cuidado de nunca lhe pedir
que passasse linhas de água como os patos, com água pelos peitos. Sempre fomos
mais de sequeiro do que de aguadas. Aventureiros, sim, mas não maliquinhos da
cabeça.
Até
que a picada do Namialo a Nacala foi substituída por uma estrada moderna em que
o nosso herói podia andar à sua velocidade máxima sem que deixasse de parecer
que estava quase parado.
Então,
o dono dele fechava a «guerra» às 6 da tarde e íamos jantar a casa dos pais do
Miguel Lory, em Nacala, exactamente 200 quilómetros de porta a porta. Para lá,
tudo bem mas, na volta, com um tinto seguido de algum digestivo que sabiam
lindamente, o sono apertava naquela estrada sem movimento nem curvas. Mas o
herói manteve-se sempre em cima do alcatrão e nunca esbarrou em bandos de
babuínos noctívagos. Na dúvida, nunca parámos na berma para passar pelas brasas
porque aquela é zona de leão. A solução foi a de arranjar um pendura cuja
função principal era a de não me deixar adormecer ao volante. O Zé Pessanha foi
o habituénestas peregrinações em que havia troços relativamente longos em
que a estrada era ladeada por floresta compacta, uma verdadeira muralha de cada
lado sem se ver um palmo lá para dentro. Era daí que podiam saltar os babuínos
mas era daí que não havia perigo de aparecerem elefantes ou sequer leões.
Gente? Nessa floresta, não de certeza; nos outros troços, pouca ou quase
nenhuma pois a estrada tinha acabado de desbravar a região até então isolada e
a velha picada era longe daquele novo traçado.
«FB-75-81»,
o “nome” que ostentou enquanto reinou em Moçambique; «MLJ-21-56», o “nome” que
as Alfândegas de Moçambique lhe impuseram para embarcar no «Infante D.
Henrique» rumo a Lisboa na companhia do dono e da namorada, a Guida.
Continuemos… Julho de 2019 Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS
Henrique Salles da Fonseca, 15.07.2019: Carlos
Traguelho gosta disto.
Henrique Salles da Fonseca 15.07.2019:
Que giro... Não sabia que o Zé Pessanha era o pendura nestas aventuras e que a
Guida tinha vindo consigo. Ana
Maria Sousa Coutinho Diniz
Henrique Salles da Fonseca, 15.07.2019: Se bem me lembro, ficámos todos preocupados
e alguns a rosnar baixinho «que o gajo está louco, nem vai chegar a Quelimane».
O «ariano» Martins dizia «está aqui, estamos a ver ele voltar para trás e fazer
o que toda a gente faria que era ir de avião». E após uma longa reflexão, muito
ao seu jeito, dizer com o seu característico sorriso de orelha a orelha «era
porreiro fazer a viagem». E tu lá chegaste inteirinho para alegria nossa e
estupefacção de outros. Muito bons e saudosos tempos, esses. Isabel
Pedroso.
Henrique
Salles da Fonseca, 15.07: Aqueles
é que eram bons carros. Helena Salazar Antunes Morais
Adriano Lima, 16.07.2019: Estou a ver que comecei a comentar de frente para
trás, mas não importa desde que se apanhe na picada o rodado da viatura.
Saudosas recordações! Valente Fiat! Não avariavam esses carros de mecânica
fácil em que qualquer problema podia ser resolvido pelo condutor com uma chave
de fendas. Hoje, com a electrónica complexa a gerir os motores, não há
hipótese. Como andei pelas Áfricas,
percebo bem a nostalgia que perpassa estas crónicas do Dr. Salles.
In
illo temporae, o Serviço Militar era obrigatório para os homens e voluntário
para as mulheres. Fora da actividade propriamente bélica, havia muitos civis,
homens e mulheres, contratados pelas Forças Armadas – no nosso caso, o chamado
«pessoal civil do Ministério do Exército». E eram muitos, tanto eles como elas.
No
tempo português, Nampula era a capital militar de Moçambique e se isso foi
importante na perspectiva militar, foi-o certamente mais importante ainda na do
desenvolvimento económico de todo aquele Distrito, chamado «de Moçambique»
devido à posição relativa da Ilha de Moçambique, antiga capital da colónia
(antes do eufemismo «Província Ultramarina»). De notar que só este Distrito
tinha a mesma dimensão geográfica que a Suíça. E faço desde já notar que, na
minha opinião, falando na maior generalidade, os macuas são muito mais
simpáticos e hospitaleiros que os suíços. Poderão os macuas ter menos relógios
de precisão e menos depósitos bancários que os suíços mas têm por certo um
«coração» muito maior e um gosto pela vida que dá gosto ver.
Na
«minha» Chefia de Contabilidade e Orçamento (era assim que se chamava?) do
Quartel General da Região Militar de Moçambique, um edifício na Rua das Flores
(nome por que era conhecida a «Rua Afonso de Albuquerque») que fora construído
para habitação (6 fogos) e cujas banheiras tinham sido tapadas por armários de
arquivo, os funcionários civis eram quase tantos como nós, os militares. O
facto de termos um bom ambiente não era «coisa» menor mas o mais relevante era
o nível de conforto desses funcionários, em especial dos ressortissants locais. Desde mainatos a escriturários, de toda a hierarquia os havia em função das
habilitações literárias de cada um. Como em Nampula o nível máximo do ensino
disponível era o secundário (o então 7º ano do liceu), não havia licenciados
locais e, portanto, não havia Técnicos Superiores civis a trabalhar no
Exército. Presumo que na Marinha e na Força Aérea também não. Urbanisticamente harmoniosa, Nampula tinha – pela sua
característica de capital – um certo ambiente cosmopolita e eu gostei muito de
lá ter estado. Fiz amizades para o resto da vida e consegui ter pena de ter
sido retransferido para Lourenço Marques.
Então,
de repente, pensei que esta seria a oportunidade única de conhecer Moçambique à
séria em vez de andar sempre aos saltinhos de avião. Eis que tomei a decisão de
fazer a viagem de carro em vez de ir eu de avião e o carro de barco.
Militarmente autorizado a fazer a viagem no meu próprio carro, achei mais
simpático arranjar companhia do que fazer-me sozinho ao mato meu desconhecido.
E
pus a boca no trombone a perguntar quem seriam as duas pessoas que me queriam
acompanhar. Já não me lembro ao certo mas acho que anunciei o «concurso» pela
hora do almoço e à hora do jantar já tinha a situação resolvida. O António
Sousa Pires (doravante, o Tó) e o Miguel Lory.
Como
eu, o Tó era Alferes Miliciano e prestava serviço na «Sala de Briefings» do
General Kaúlza. Era o Tó que assinalava nos mapas do Estado Maior os locais que
havia a assinalar para os efeitos que qualquer Estado Maior pretende. A bon entendeur… Ou seja, eu fazia-me acompanhar
por alguém que sabia se havia berzunda nos sítios por que passaríamos ou se
seria conveniente arrepiar caminho.
O
Miguel Lory, filho da irmã da cunhada do tio do primo do meu irmão, ainda
andava no liceu mas os pais autorizaram-no a vir na viagem porque sabiam que eu
não me ia meter propositadamente em sarilhos. Mais: o Miguel já conhecia as
estradas por que haveríamos de seguir pelo que substituía com vantagem os mapas
que são frios e não dispensam amizade a ninguém.
E
assim ficou a equipa constituída, o carro «ensaboado» como mandam as regras de
quem se prepara para o «mare incógnito in terra firma», o Tó de licença, o
Miguel de férias e eu de Guia de Marcha no bolso.
TUDO
A POSTOS? EM FRENTE – MARCHE!
(amanhã há mais) Julho de 2017 Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS
Anónimo, 16.07.2019: Permites-me,
Henrique, que acrescente umas notas brevíssimas ao teu colorido com que
descreves Nampula do nosso tempo de tropa. O são convívio entre militares e
civis na Chefia de Contabilidade abrangia tudo e todos, não fazendo qualquer
discriminação entre o pessoal civil nascido em Portugal (chamada Metrópole) ou
em Moçambique. Sobre Nampula, propriamente dita, importa referir ainda a
existência de um hotel razoável (Portugal), de um apetecido cinema e de um
restaurante/bar de primeiro nível, arquitetonicamente parecido com outro
existente em Lourenço Marques (Sheik e Bagdad, eram os seus nomes). Não posso
esquecer ainda a Catedral de Nampula e, muito especialmente, o seu Bispo - D.
Manuel Vieira Pinto. Em 1998 quando lá voltei (por motivos profissionais fui a
Nacala), no rescaldo da guerra civil, pretendi ir a uma das casas em que vivi
em Nampula. Apesar de me deslocar em jeep, isso não foi possível tal o estado
intransitável das "ruas" da cidade. Abraço. Carlos
Traguelho
Adriano Lima, 16.07.2019: Li com interesse esta saudosa evocação de
Nampula porque também conheci a cidade e fiquei a gostar dela e das suas
gentes. Mas só tive contacto com ela em trânsito, e tudo aconteceu na minha
vida militar. Essa longa viagem terrestre que fez o Dr. Salles não a fiz mas
bem gostaria de a ter feito, como me aconteceu em Angola, anos antes, no
percurso Luanda-região Leste do território, e por duas vezes. Não sei porquê
mas Moçambique exerceu sobre mim um fascínio que não aconteceu com Angola.
Talvez pelo exotismo que lhe é próprio por causa da influência oriental.
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