São como estigmas com que se deseja separar
as águas, coisa já visível em histórias bíblicas e, salvo erro, nas das mil e
uma noites, como forma de assinalar presenças indesejadas, prática também seguida
nos tempos nazistas, de apuramento rácico distintivo. Agora, contudo, as
exigências de distinção entre os homens são do foro oficial, e a propósito
disso, faz António Barreto um artigo ao seu modo exemplar de correcção
linguística e reflexão poderosa, a que não falta a subtileza irónica.
OPINIÃO: Preto e branco
A insistência na separação das origens
raciais aumenta as potencialidades de racismo na sociedade. Desperta
preconceitos. Conduz a classificações indevidas, com categorias que se
sobrepõem à de cidadão.
ANTÓNIO BARRETO, PÚBLICO, 30
de Junho de 2019
A decisão
das autoridades estatísticas nacionais, a começar pelo INE, de não incluir, no
Censo de 2021, perguntas, mesmo de resposta facultativa, sobre as origens
étnicas ou “raciais”, parece justa. Não são conhecidos os fundamentos da
decisão, mas a conclusão é a mais sensata.
A
inclusão destas questões chegou a parecer interessante. Talvez os resultados
ajudassem a reflectir e a conhecermo-nos melhor, o que é uma vantagem. Se a
finalidade fosse só a de conhecer, até poderiam ser incluídas perguntas de
carácter fiscal, alimentar, sexual, sanitário, cultural e desportivo. A
informação e o conhecimento são inesgotáveis de interesse e curiosidade.
O
problema começa com a privacidade e a dignidade pessoal, valores muito
evocados, mas com frequência ignorados. Por que razão desejará alguém revelar,
mesmo sob a aparência do anonimato, dados sobre a sua vida, as suas crenças e
os seus hábitos? Por que razão quer o Estado saber isso de alguém, pessoas ou
comunidades? Em tempos de devassa e de exibicionismo, tudo parece legítimo, mas
é bom marcar fronteiras e traçar limites.
Depois, temos o problema,
aparentemente técnico, das perguntas facultativas, solução defendida por alguns
e já adoptada para a religião. Essas perguntas fazem pensar na famosa frase de
Clinton, “fumei, mas não engoli”. Ou numa das frases mais repetida em Portugal,
“sou católico, mas não praticante”. Nem sim, nem não. Sendo facultativas e não
sabendo quem não responde, qualquer conclusão é puramente especulativa.
Difícil
é o problema da nomenclatura. Que categorias devem ser adoptadas? As quatro,
branco, negro, cigano e asiático, como defendem uns? Mas onde estão os
mestiços, fazem parte dos brancos escuros ou dos negros claros? E é possível
colocar no mesmo plano “brancos” e “asiáticos”? Ou “negros” e “ciganos”? Ora,
branco e negro é cor, asiático é continente, cigano é etnia. Um branco ruivo
com sardas e um norte-africano ruivo com sardas são diferentes? O “asiático”
não inclui dezenas de etnias diferentes? Nomes recentes como luso-descendente,
afro-descendente e luso-africano designam exactamente o quê? O que é um
afro-descendente? Pode ser branco, negro ou mestiço? Ou só negro? Porquê? E um
brasileiro, naturalizado português, filho de pai japonês e mãe mulata
brasileira é o quê?
A
questão dos mestiços é particularmente interessante. Não há só mestiços de
branco e negro. Há também de branco e chinês, ou indiano, ou índio, ou cigano,
ou mouro, ou árabe… Como classificar? E se usarmos os mestiços de qualquer das
variedades acima, como por exemplo chinês e árabe? Meio negro, meio cigano, é o
quê? Só mestiço? Igual a meio branco, meio japonês? E os filhos de brancos e de
goeses de Moçambique?
A
mistura de conceitos é flagrante. Cor, continente e etnia são coisas
diferentes. Há negros asiáticos, australianos, africanos, europeus e
americanos. Como há brancos europeus, asiáticos, africanos, australianos e
americanos. As
misturas de cores e de etnias evocam a religião, a história e a política. Como classificar um persa, um curdo, um arménio, um
pársi, um hebreu ou um ismaelita? Um berbere ou um núbio? Um cristão branco do
Líbano e um branco de Moçambique? Um banto ou um zulu? Os caucasianos do Norte
de África são o quê? E os palestinianos, os saarauis e os chaouis?
Se
africano quer dizer nascido em África, teremos de admitir que há africanos
negros, mestiços, árabes, brancos, egípcios, berberes, núbios e muitos outros,
não há apenas africanos negros. Se europeu quer dizer nascido na Europa, então
há europeus persas, chineses, árabes, curdos, turcos, negros, brancos e
indianos, não só brancos.
As
confusões entre povo, religião, etnia e comunidade são numerosas, sem esquecer
que há ainda quem pense que há diversas espécies humanas e várias raças.
Africano, europeu, asiático e americano são origens geográficas, não são raças.
Branco, negro e amarelo são cores, não são etnias. Branco é cor, cor não é só
negro. Pessoa de cor é toda a gente, branca, amarela e negra. Judeu,
ismaelita, curdo, arménio, berbere, muçulmano, aborígene australiano, maori e
muitas outras designações afins introduzem confusões e misturas entre origem
geográfica, religião, etnia e cultura, o que só complica as coisas. Colocar no
mesmo saco vietnamitas, chineses, japoneses, coreanos, cambojanos e tailandeses
é absolutamente errado.
Na
questão religiosa, já contemplada com uma pergunta facultativa, o que se fica a
saber é nada. Três
espécies de cristãos, uma de judeus e uma de muçulmanos não resumem nem
definem. As chamadas “seitas”, com centenas de milhares de seguidores, não se
distinguem. Jeová, maná, mórmones, sikhs, hindus, budistas, adventistas, IURD e
tantos outros não se destacam. Não se sabe o que representam os que responderam,
muito menos os que não responderam.
A insistência na separação das
origens raciais aumenta as potencialidades de racismo na sociedade. Desperta
preconceitos. Conduz a classificações indevidas, com categorias que se
sobrepõem à de cidadão. Tentar combater o racismo com a oficialização das
categorias raciais é absurdo. Reforçar a designação oficial de raça e etnia vai
dar razão aos que nunca se esquecem de dizer que “negro matou”, “cigano roubou”
ou “chinês violou”, sem tal referir quando se trata de um branco.
Fica-se com a sensação de que há
várias espécies de motivações para incluir e tornar oficiais estas designações.
Uma será a de reduzir a duas grandes categorias, os brancos e os negros, para
alimentar as lutas raciais. Outra, a de eliminar as misturas, os mestiços, a
fim de definir dois campos em confronto. Uma outra será consequência de uma
ilusão, a de que devemos e podemos saber tudo, para tudo planear e de tudo fazer
uma política.
A recolha de dados raciais não serve
para combater o racismo. Pelo contrário, pode contribuir para o desenvolver,
através do reforço de demarcação e pelo incentivo à fragmentação social e
racial. As identidades étnicas e comunitárias parecem hoje mais perigosas para
os direitos dos cidadãos e para a liberdade do que as identidades nacionais
plurais. Uma coisa parece certa: há em Portugal grupos de várias etnias,
incluindo brancos e negros, apostados, por razões políticas, em aprofundar as
clivagens étnicas entre residentes em Portugal. Por isto, o debate sobre o
Censo foi útil.
Sociólogo
COMENTÁRIOS
Francis Delannoy: Preto e branco A insistência na separação das origens
raciais aumenta as potencialidades de racismo na sociedade. Desperta
preconceitos. Conduz a classificações indevidas, com categorias que se
sobrepõem à de cidadã +++++ conceituar o racismo pela cor, é uma ignorância
sobre o ser humano, agora todas as culturas podem não agradar .. e não aceitar
uma cultura por diversas razões, primitivismo, agressividade, parasitismo,
fanatismo, pode ser uma opção de não aceitação de uma cultura alheia sem ser
racista..ninguém é obrigado a ser invadido pela cultura do outro..e ser
protegido de uma cultura diferente da nossa ou de uma cultura com
características que não são compatíveis com a nossa cultura é um direito..sem
sermos racista
Sandra,
Lisboa:
Excelente artigo de opinião. Atrevo-me a dizer que talvez o melhor
(de entre tantos), que li sobre este assunto. Visão límpida e assertiva sobre a
nossa sociedade. Muito bom, mesmo. A partilhar.
AndradeQB,
Porto: Suspeito
que António Barreto sabe porque e de quem surgem tão "bem
intencionadas" ideias. Seguramente que não será por cobardia que usa de
tanta cautela a referir-se à actual onda antirracista, mas porque sabe que
fazê-lo de forma diferente a nada ajudaria. Quem anda neste mundo com os olhos
abertos já se apercebeu que existe muita gente não racista que trata todos pelo
que estes são e não pela sua cor. Esses nem a vêem, se convivem com um preto
trabalhador dizem que é trabalhador, se com um malandro dizem que é malandro e,
se em vez de preto for branco, dizem o mesmo. Já para os racistas que, mesmo
que o não saibam, o são, tem que se saber primeiro qual a raça. É que para
eles, se não forem brancos, não podem ser sujeitos ao mesmo nível de exigência.
Luis Morgado, Lisboa: Tendo a concordar com António Barreto, mas compreendo
porque se levanta esta questão, especialmente em países verdadeiramente
multiculturais, onde grupos de diferentes proveniências têm tendência a manter
a sua identidade. No Canadá, para além de detalhes sobre se é
"aboriginal", pergunta -se: "is this person: 1: White 2: South
Asian (e.g., East Indian, Pakistani, Sri Lankan, etc.) 3: Chinese 4: Black 5:
Filipino 6: Latin American 7: Arab 8: Southeast Asian (e.g., Vietnamese,
Cambodian, Laotian, Thai, etc.) 9: West Asian (e.g., Iranian, Afghan, etc.) 10:
Korean 11: Japanese 12: Other — specify" Não tenho a certeza que seja boa
prática, mas o argumento parece ser a recolha de informação para promover
igualdade de oportunidades e para partilhar com os agentes culturais, sociais e
económico.
Gil Paulo, Gondomar : Em tempos, foi
proposta a diferenciação, por grupos/famílias linguísticas. Não sei por que não
teve seguimento. São: Nigero-congolesas (1514 línguas); Austronésias (1268
línguas); Trans-neoguineanas (564 línguas) (validade disputada); Indo-europeias
(449 línguas); Sino-tibetanas (403 línguas); Afro-asiáticas (375 línguas);
Nilo-saarianas (204 línguas); Pama-nyungans (178 línguas); Otomangueanas (174
línguas) (número disputado; Lyle Campbell inclui apenas 27); Austro-asiáticas
(169 línguas); Sepik-ramus (100 línguas) (validade disputada); Tai-kadais (76
línguas); Macro-tupis (76 línguas) [carece de fontes]; Dravídicas (73 línguas);
Maias (69 línguas).
Carlos Brígida, Algés: Um artigo pertinente, actual, urgente. Excelente! Do
melhor que António Barreto escreveu
Joao, Portugal:E óbvio e bem evidente que "Uma coisa parece
certa: há em Portugal grupos de várias etnias, incluindo brancos e negros,
apostados, por razões políticas, em aprofundar as clivagens étnicas entre
residentes em Portugal." ... são hipócritas, manipuladores, mas mais que
isso, são criminosos.
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