segunda-feira, 8 de julho de 2019

Contestando os “Cento e nove impávidos marotos”


Um subtítulo a acompanhar o título (no email recebido) - CHOURIÇOS DE SANGUE - prova quanta tragédia esconde o ar bonacheirão da história narrada. Mas não acredito que as pessoas da cidade sejam piores do que as da aldeia, na sua reacção inicial de riso incrédulo, se é verdade isso, habituadas, talvez, ao sentido de humor e desprendimento aparente do autor, na sua graça habitual, de uma objectividade sensível e graciosa ante os aspectos caricatos da fauna humana, sejam aldeãos ou citadinos.
Mas o que prevalece, na história, é a questão de uma ambliopia reticente, e do que precisamos de ler é que o “estou quase cego” não passa de uma expressão brutal de exagero em desespero. Eu também não acredito. Seria “bestialmente” cruel, tal partida da vida, e não é esse o diagnóstico definitivo, ao que consta e continuam a comprovar os escritos de graça e de síntese, sublinhando leituras e o espírito de sempre.

CHOURIÇOS DE SANGUE
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 07.07.19
A outra grande novidade – mas desta vez para a aldeia - foi a minha ambliopia.
- A sua quê, Senhor?
E lá tive que explicar… mas decidi encurtar explicações e passar a dizer que estou quase cego. Então, é aqui que aparece a grande diferença entre as pessoas da cidade a quem informo de chofre da minha situação que julgam – não sei por que motivo – que eu esteja a fazer humor e se põem a rir e as pessoas daqui, da aldeia, que de imediato se apercebem do meu problema e assumem a gravidade apropriada. Não há dúvida, as pessoas daqui são muito directas e as da cidade muito complicadas – sofisticadas, dirão elas próprias.
Para além da afabilidade dos anos anteriores, esta gente simples desdobra-se agora em manifestações de solidariedade comigo e lá vêm todas as histórias da saúde de todos e de cada um… o Zé está com um mialoma múltiplo, a mulher do hortelão já foi operada duas vezes aos olhos, a Ana anda às voltas com o bócio, o irmão da minha senhoria… um festival de maleitas distribuídas adrede e sem grande parcimónia. Como é que estas doenças estavam todas tão escondidas e só vieram à tona quando lhes contei da minha ambliopia? Deve ser como com as granadas que explodem por simpatia. E isto, já para não falar da mulher do Márinho que está toda tolhida com a ciática.
E assim começou a ronda dos jantares em que não podemos falhar um único restaurante sem que alguém imagine uma zanga que não existiu.
Ontem estava prevista uma chuvada mas, afinal, esteve um magnífico dia de praia e acabámos a jantar na esplanada do Bininho - as sardinhas estavam óptimas e o pôr-do-Sol anunciava-se deslumbrante mas as Senhoras da mesa atrás de mim estavam eufóricas com a aguardente velha com que fecharam a sessão delas e captaram a atenção de todas as mesas à volta da delas. Avó, mãe e neta a falarem como se não houvesse mais ninguém por ali e dizia a avó que a prima ou tia delas, a Alda, tinha casado aos 12 anos.
- Aos 12 anos, avó?
- Sim, aos 12 anos. Mas o marido era bem mais velho e adorava-a pelo que só consumou o casamento quando ela tinha 14 anos. O Xi nasceu quando ela tinha 15 anos.
- Tanto tempo casados para só consumarem o casamento dois anos depois…
- Ele sabia que tinha ali uma criança, não propriamente uma mulher.
- E casar com essa idade, era legal nessa época?
-Parece que sim, nunca ouvi dizer que tivesse havido algum problema. E foram muito felizes até que morreram.
- Morreram de quê?
- De gordos. Ele pesava 160 quilos e ela chegou aos 140.
- Credo! A mãe conheceu-os com esses pesos?
- Só os conheci mesmo com esses pesos. Não me lembro deles antes de serem umas avantesmas. Somavam «só» 300 quilos e depois de partirem não sei quantas camas, mandaram fazer uma de alvenaria. E já que passavam para os tijolos e argamassa, mandaram também fazer as mesas de cabeceira de tijolo e cimento, não fosse alguma coisa desconjuntar-se. Diziam que tinham regressado à Idade da Pedra e fartavam-se de rir com a ideia. Viviam numa gruta, eram trogloditas. E riam, riam…
E a cada explicação da senhora, a risota da filha e da neta contagiava as mesas à volta e a magnificência do pôr-do-Sol… foi-se.
- Oh mãe! E como é que eles chegaram a esses pesos?
- Gula, filha, gula! Parece que tinham um vizinho lá ao lado da quinta deles que era comerciante de porcos e quando era da matança, o tio reservava logo duas dúzias de chouriço de sangue para comer ao pequeno almoço.
Bem, aqui, com esta tirada, a esplanada do Bininho veio a baixo com a gargalhada geral. Mas o Sol pusera-se e nem todos tínhamos bebido aguardente velha. Começámos a sentir frio e tivemos que pedir a conta para regressarmos a penates. Com pena por perdermos a continuação… Já vínhamos perto do assador, à saída da esplanada, ainda andava risota lá para trás. O que teria sido que a avó contara?
Julho de 2019
Henrique Salles da Fonseca

COMENTÁRIOS
 Henrique Salles da Fonseca, 07.07.2019: Não imaginei que houvesse "citadinos" a acharem graça ao teu problema! Que cambada. Jorge Gaspar de Barros
Francisco G. de Amorim, 07.07.2019: Chouriço de sangue. Morcela. Que saudades. Por aqui não há. Os brasileiros só de pensarem nisso ficam enjoados. Também nunca comeram um sarrabulho!!!
 eu  07.07.2019 : Nas vilas (antigas aldeias) e nas cidades não há pessoas. Há gente. Bichos-homens.
Nas aldeias, nos pequeninos aglomerados onde todos se conhecem, se zangam e se amam, é que há pessoas. Teve a experiência. Suas melhoras, desejo eu, um velho physico.
Henrique Salles da Fonseca 07.07.2019: Caro Henrique, Gosto sempre de ler as tuas crónicas e/ou curiosas reflexões. Quero agradecer-te por me manteres no “clube”, e dar-te um grande abraço.
Zé Montalvão

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