quarta-feira, 17 de julho de 2019

“Seguir a fonetica”


Dos três comentários que a magnífica crónica de António Francisco Pascoal mereceu – prova da parca influência do assunto, no país do “tanto faz como fez”, e naturalmente “como tanto fará” – os princípios da Ciência – “linguística”, neste caso, mas da Lógica também, - não constituindo prioridades a não ser em termos de subserviência a um país “irmão”, mais poderoso economicamente, que, todavia, parece desprezar a indignidade, seguido pelos outros povos da CPLP, o Português de Portugal e das Ilhas sendo único a exibir a sua pobreza espiritual de matreirice sem repercussão, pois que menosprezado o tal AO90 pelos tais – dos três comentários, repito, só coloco dois no sítio reservado aos comentários, pela sua seriedade de critério, o de um anónimo “Animação e descanso”, 16.07.2019, merecendo o destaque da sua transcrição a seguir, “ipsis verbis”, como prova da idoneidade cultural e moral do seu “produtor”:
«Nao ha paciencia para estes velhos do restelo! Mas nao têm nada para fazer?! Escrever um testamento deste tamanho contra o AO? Claro que a lingua escrita deve seguir a fonetica o mais possivel! Se é pra revogar entao revoge tudo, voltamos á pharmácia!? Ou mias atras ainda? O que é o “Portuguez” afinal? Celtibério? Romano?»
Um mimo de panfleto, visivelmente nem romano nem celtibério, apenas de um anónimo em regime comprovado de “animação e descanso”, no seu “requinte” de autenticidade na bastardia.
Quanto ao excelente trabalho de António Jacinto Pascoal, direi que é apenas mais um para a gaveta do nosso “requinte” desprezador e tosco, também autêntico, que emparelha com o do dito “Animação e descanso”, da nossa penúria.
OPINIÃO:     Acordo ortográfico? Revogar, claro!
Em vez de homogeneizar, o actual acordo ortográfico estabeleceu uma série incontável de divergências lexicais. Ou seja, falhou. Falhou em toda a linha.
ANTÓNIO JACINTO PASCOAL
PÚBLICO, 16 de Julho de 2019
Muito recentemente, em defesa do actual acordo ortográfico (AO90), Lúcia Vaz Pedro (LVP) deu uma pálida ideia da sustentação às alterações gráficas para a língua portuguesa. Para que conste, emaranhou-se numa teia de contradições, optando por um efeito de vitimização que não evitou o espectáculo menor de quem defende a todo o custo e sem qualquer brilho uma das piores opções tomadas ao nível da cultura portuguesa, na última década. O debate ocorreu na Feira do Livro de Lisboa, no decorrer da apresentação da obra Por Amor à Língua (editora Objectiva), de Manuel Matos Monteiro (autor de um notável trabalho de vigilância da Portuguesa língua), contando ainda com a participação do jornalista Nuno Pacheco, do PÚBLICO – a moderação ficou a cargo de Ana Daniela Soares.
A vulnerabilidade deste acordo – que, na verdade, não o é ainda, uma vez que a sociedade científica brasileira não o ratificou até hoje – decorre da ideia simplista de que um sistema gráfico é a tradução de um sistema linguístico oral, conducente a um esquema de reprodução económica e simplificada da verbalização oral. Ora, basta pensar em como os ingleses convivem com dois sistemas que, como se sabe, muito pouco têm de comum, considerando a transcrição fonética.
Um dos momentos protagonizados por LVP (para além do neologismo “analfabetização” e de uma farta dose de auto-elogio) foi o de convocar uma menina da plateia e pedir-lhe que escrevesse uma palavra: tratava-se do vocábulo “óptimo”, que a menina grafou como entretanto lhe ensinaram – “ótimo"; de seguida, encaminhou a menina, fazendo-a ler aquela palavra, com articulação do “p”. E conseguiu. Isto significa apenas que a geração mais recente de alunos não foi treinada para uma leitura pela qual se tomasse consciência da não articulação de certas consoantes.
Lembremos que o AO90 entrou em vigor no sistema de ensino Português no ano lectivo de 2011/12. Nada de estranhar, portanto. Impor-se-ia, num cúmulo de perversão, pedir-se a um aluno mais velho que escrevesse a mesma palavra, de acordo com aquilo que lhe foi ensinado e que estava em vigor antes de 2011. Provavelmente, entraria em cena a consoante “p”.
Baseada na falsa ideia de que uma escrita “fonológica” é mais natural, LVP quis criar o maior obstáculo a que uma reversão do AO90 pudesse (e possa) ter lugar, liquidando-a de vez. E como? Partindo do pressuposto de que uma reversão seria um atentado e uma irresponsabilidade perante uma quantidade inaudita de alunos que fazem parte do sistema vigente, de pais a quem não seria fácil justificar alterações e de professores acostumados a ameaçar novidades. E, por isso, num processo argumentativo falacioso (ad misericordiam), usou (o exemplo d)a menina, que melhor desencoraja a transgressão e reversão, e de forma mais célere impõe a cultura da acomodação: a sociedade precisa (de) que os seus filhos se sintam seguros no mundo do pragmatismo, mesmo quando esquecem as origens. Mas “a menina de LVP”, longe de qualquer disputa linguística, e caso fosse acordado, escreveria “conosco” se assim lho doutrinassem, ou “oje” e “umanidade”, fosse a regra da não articulação oral levada ao seu limite e ensinada nas escolas. Os alunos aprendem o que lhes ensinam – nada de novo, mais uma vez.
O que este acordo pretendia, se pudesse ser acordo (pelo que presumo não ser senão reforma), era, em especial, homogeneizar (uniformizar) a grafia do Português de Portugal e do Brasil (o que se depreende da nota introdutória ao Novo Acordo Ortográfico de João Malaca Casteleiro), sem desprimor pelos outros países lusófonos e lusógrafos (passo o neologismo): tarefa impossível e inglória. Nessa matéria, os falantes brasileiros arriscam-se a ser mais oralmente etimológicos do que os falantes portugueses (entenda-se, nascidos e versados na variante linguística de Portugal), uma vez que poucas serão as consoantes ditas “mudas” que lhes escapam – dirão, para mal do AO90, “recepção” ou “acepção”. Resultado: em vez de homogeneizar, o AO90 estabeleceu uma série incontável de divergências lexicais. Ou seja, falhou.
E também falhou porque estabeleceu um sem número de arbitrariedades, nos casos das sequências consonânticas, em favor das regras facultativas de pronúncia (os casos de caracterização/caraterização ou sumptuoso/suntuoso); e falhou, porque preteriu as pronúncias cultas, ainda que circunscritas, aos vulgarismos orais (ceptro/cetro); e falhou, porque fez tábua rasa da etimologia nas palavras cognatas (egiptólogo/ egípcio/egito); e falhou, porque lançou a aporia pelo fenómeno da redução vocálica (recepção/receção/[receção], com o som articulatório do segundo “e” no valor fonético de “e” mudo, ou vogal fechada), decorrente do efeito da leitura. E falhou por minudências, como a da rasura do acento na paroxítona de excepção “pára”, que converge para a preposição homónima, ou com o adjectivo “óptico”, transposto a “ótico”, confundível com o que é relativo ao ouvido. E falhou, porque se quis afirmar por decreto, desacoplando-se da génese linguística, de raiz maioritariamente latina. Falhou em toda a linha.
A degradação e a vulgaridade da língua é um fenómeno que este AO90 veio acentuar. Ao contrário do que pensa LVP, a língua não é o que dela fazem os falantes, mas o que os falantes se permitem fazer, em consonância com uma série de regras, plasmadas no sistema gráfico – e, a errar, que o façamos dentro de uma ordem estabelecida. Caso contrário, o “idioma” das sms e de outros sistemas de escrita para comunicação rápida e espontânea passará a deter o estatuto de competência técnica e linguística. Só que isso seria contribuir para a mortal iliteracia a que agora ficámos um pouco mais expostos.
Procurarei, futuramente, comprovar como este AO90 criou já debilidades ao nível da leitura e como, com boa probabilidade, contribuirá para alterar a fonética do Português europeu, no plano da erosão vocálica. Perante a quantidade de imprecisões e, sejamos francos, de falhas, é tempo de confessar que nos enganámos e que o que é inadmissível deve poder ter um retorno: o do regresso à Cultura. A língua não é uma noite fechada, sobre a qual interesses de alguns linguistas se determinam, mas uma aurora e um começo, sempre um começo renovado em sua legítima defesa, enquanto organismo perseguido e francamente fustigado pela indigência de muitos usuários.

COMENTÁRIOS
Antonio Leitao, Coimbra: O processo do AO não tem qualquer lógica a nível linguístico e foi fundamentado sempre por razões políticas/identitárias... Ficou uma porcaria sem defesa possível.
Manuel Maria de Melo Alte da Veiga, Aveiro: Quanto mais estudo o caso, mais verifico que o voo AO90 foi mesmo trágico para a cultura portuguesa. Contra muitos comentários, o «Velho do Restelo» não gostaria de ter o trabalho de investigar seriamente o que é uma Língua nacional e como assegurar o melhor nível cultural possível para o futuro. Lamento que o Público não publique a jogada obscura e interesseirista para certos lobbies. E a legitimidade do parecer na Assembleia. E os muitos gastos que provocou para ganho de alguém. E sobretudo o perigo de avançar com pretensos fundamentos, contra a própria psico-pedagogia e contra a evolução dos estudos linguísticos. Gostaria tanto de ver o Público, com tantos colaboradores competentes na matéria, a ter a iniciativa de seminários de discussão!

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