Detestei “O clube dos poetas mortos” e sei que é um sacrilégio afirmá-lo, nesta sociedade
de excitação permanente e autoconvicção de genialidade, que começa na infância
e vai deslizando escola fora segundo o lema pedagógico do apelo à expansão da
criatividade dos alunos, mais do que de imposição de noções culturais que os
livros veiculam, indispensáveis, não há dúvida, e António Carlos Cortez o expõe no seu texto, para o desenvolvimento do
intelecto. Detestei a cena em que o professor John Keating, papel desempenhado pelo actor Robin Williams, rasga e faz rasgar os livros de literatura, que
orientam o pensamento a respeito dos autores que analisam, incitando os alunos
a libertarem-se de convenções prefabricadas, e a pensarem por si, expandindo
livremente os seus próprios mundos íntimos. Já Álvaro de Campos o tinha feito sentir entre nós, mas esse fê-lo
porque muito leu, naturalmente: «Que bom
poder-me revoltar num comício dentro da minha alma! // Mas até nem parvo sou!
// Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais. // Não tenho, mesmo,
defesa nenhuma: sou lúcido. // Não me queiram converter a convicção: sou
lúcido. // Já disse: Sou lúcido. // Nada de estéticas com coração: Sou lúcido.
// Merda! Sou lúcido. » (in “Cruzou por mim”). Como José Régio o disse igualmente, no seu “Cântico Negro”, gente adulta que orienta os jovens
para a transgressão, pelo arrojo e a vaidade, sendo, pois, responsáveis pela
onda de insubordinação sem tom nem som, de que os computadores socratianos,
difundidos nas escolas e impingidos na Venezuela, em tempos, bem cedo
redundando em lixo, são a marca da penúria que marca a nossa idiotia interesseira
e mandriona. Sim, a crónica de ANTÓNIO CARLOS CORTEZ – “O LIVRO É NA
ESCOLA…” merece toda a minha adesão. Oxalá contribuísse para um reverter de
tendências, pelo menos entre nós, por cá, tão explosivos em vazio.
OPINIÃO: O livro é na escola: leitura e
escrita no reino digital
Nada se pode comparar, em
concentração e exigência, à leitura e ao convívio com a língua de tradição,
essa que se opõe às “luzes impuras” da língua técnica.
ANTÓNIO CARLOS CORTEZ
PÚBLICO, 24 de Julho de 2019
A
reboque de um recente programa da RTP, o Prós e Contras, em que o tema em
destaque era a educação face a um novo paradigma pedagógico assente nos
multimédia, creio ser oportuno deixar aqui alguns princípios dos quais a escola
actual não poderá abdicar se quiser resistir contra aquilo a que, noutras
ocasiões, tenho designado por “ditadura do banal”. Havendo alguns
projectos de ensino cuja novidade pode fascinar quem se deixe iludir pelas
propostas sempre moderníssimas neste reino de boas intenções que é a educação,
confesso não partilhar do espanto e desse fascínio. Quando me falam de salas
de aula onde há computadores pergunto-me sempre onde ficam os livros.
São
muitas as razões que levam a que directores de escola e corpo docente acreditem
que permitindo o acesso aos suportes informáticos (do iPhone ao tablet e outros
de inúmera forma e feitio) as aprendizagens se consolidam. O primeiro argumento
que usam é a esgotada crença de que, desse modo, os mais jovens ficam como que
implicados e motivados para os conteúdos em presença. Não estou
seguro de que assim seja. Se, num primeiro momento, a novidade do
uso dos multimédia pode dar a impressão de que, na aula, serão novas e
profundas as aprendizagens, a verdade é que as lições de Heidegger, ou de
São Basílio de Cesareia, continuam vivas e actuais. No contacto com o
texto é que o aluno pode descobrir universos de linguagem insuspeitados. Nada
se pode comparar, em concentração e exigência, à leitura e ao convívio com a
língua de tradição, essa que se opõe às “luzes impuras” da língua técnica.
E, para que a História nos auxilie, recorde-se que os totalitarismos trazem
sempre consigo o império da técnica, o léxico do empreededorismo. Queimar
os livros ou, como hoje, querer reduzi-los a mera curiosidade de museu, isso
mostra os caminhos sem retorno de regimes que, a pretexto da inovação, apagam a
memória e a espessura cultural de que o humano tem de ser feito.
Byung-Chul
Han, num livro
essencial sobre este assunto (No Enxame – Reflexões sobre o digital, Relógio
d’Água, 2016), considera, e bem, que nesta “sociedade do cansaço” que é
a nossa, a circulação rápida das informações acelera, para além do capital, o
modo como o sujeito pós-moderno (um projecto, mais que um sujeito, diga-se) se
deixa penetrar por uma massa não filtrada de informações (as stormshits). Não raro esse dilúvio informativo é responsável
pelas IFS (Information Fatigue Syndrom). Paralisia da capacidade
analítica, ansiedade, incapacidade de assumir compromissos, foi David Lewis
quem, em 1996, provou que esta doença psíquica deriva numa incapacidade de
pensar. “O excesso de informação conduz à atrofia do pensamento”, dizia
Byung-Chul Han.
Ora, uma escola que se transforme num
lugar onde o pensamento é substituído pelo permanente fluxo de ícones é uma
escola que despreza o seu passado e ignora a importância da palavra. Isto é: da
linguagem. E não é
disso mesmo que os professores hoje se queixam? Seja em que grau de ensino for,
não estamos perante crianças e jovens, alunos do 1.º, do 2.º ou do 3.º ciclos,
e do Secundário, ou até mesmo na Universidade, incapazes de seleccionar
informação, de relacionar conceitos e factos? Não é evidente para quem lecciona
que, desde há uns bons 15 a 20 anos a esta parte, os mais jovens carecem de um
vocabulário alargado? Não é verdade que os textos expositivo-argumentativos,
insertos no Exame Nacional de Português, põem a nu as fragilidades dos nossos
jovens no que respeita ao saber histórico-cultural e à redacção de um discurso
lógico? Os exemplos
que elencam, na maior parte dos casos, não são simplesmente casos pessoais,
redundando ora na superficialidade, ora no tom opinativo? Sem hábitos de
leitura de textos de teor crítico-ensaístico, sem capacidades de inferência,
sem o domínio dos mecanismos de coesão e coerência, e sem domínio referencial,
não vemos o modo como falam e escrevem na escola e na Universidade? Não é tudo
isto verdade? Ainda mal. É precisamente por isto que o computador em sala de
aula deve ser usado com parcimónia e bom senso.
O
paradigma de uma sociedade transparente, em que o privado tem de ser mostrado
pois só assim se julga estarmos a fazer democracia, esse é um modelo
erradíssimo quando aplicado à pedagogia e à vida social no seu todo. “O
aumento da informação não é suficiente para esclarecer o mundo”, diz o filósofo
sul-coreano, acrescentando: “A fadiga da informação é também responsável por
sintomas que são característicos da depressão. A depressão é [...] uma afecção
narcísica. É uma relação excessiva e patologicamente investida do indivíduo
consigo próprio [...]. A percepção do sujeito narcísico-depressivo capta apenas
o eco de si próprio [...]. O mundo surge-lhe como reduzido a variantes da sua
pessoa.” (p.75).
Pois
não é justamente esse naufrágio em si próprio que vemos acontecer a muitos dos
nossos alunos, os quais não viveram na escola senão a mesma ideologia da
estupidificação que vivem, em regra, no seu quotidiano? Que utopia existe na
escola? Que ideal educativo? Que programa cultural pode elevar o nosso ensino a
mais que a famigerada finalidade oca dos exames? As redes sociais, do Twitter
ao Facebook, agudizam essa visão de mundo dependente de uma falácia
perigosissíma para a educação: aceitar que a escola, para ser sedutora, deve
reproduzir a sociedade digital que a rodeia. As massas de dados com que os
alunos e professores, reféns desta ideologia do psico-poder, terão de lidar
eclipsará o conhecimento (capacidade de análise), e pode mesmo minar a
Democracia.
Transformadas as instituições em lugares onde ao spectare latino ("spectare”
é olhar para trás, pressupondo uma compreensão do tempo, da durée e da lentidão
na leitura e na escrita) se sobrepõe o espectáculo, que escola
é a nossa? A relação
pedagógica deve estar ancorada naquele respeito (respectare) que eleva o
aluno a um patamar de sujeito construtor de conhecimento. Quando
a escola aposta no sujeito transformado em projecto cai-se na
escola-espectáculo: digresssiva, ululante, sem um horizonte a que apontar e de
que a civitas e não o sucesso deveria ser o farol. A escola, como
outras instituições, sem respeito, decai e “Uma sociedade sem respeito
desemboca numa sociedade do escândalo”
(Han, 2016:13).
É
por isso que o livro e a leitura e a escrita não podem ser postos de parte. As
formas electrónicas devem estar ao serviço do livro impresso e da redacção. Ler
implica anotar e sublinhar; exige tempo. Escrever é o fruto de um silêncio
contemplativo (à letra: “construção do tempo") e é disso que a escola
necessita: de tempo para ler e comentar por escrito; pensar a linguagem
literária e transferir o saber literário para um discurso científico. Nessa
aliança, a criança e o jovem não necessitam do computador em sala de aula, meio
da excitação permanente dos sentidos, mas inimigo do Belo e da Consolação pelo
Belo a que Steiner se tem referido. A perenidade do livro permanecerá, não
duvido. O livro e a leitura da sintaxe e semântica de um dado idioma, é isso
mesmo que pode impedir que o Mal da Banalidade vença a guerra da educação –
nunca uma escola pensada para o imediato vingou. A leitura lenta e expressiva
de um poema de Camões, a leitura comentada de um ensaio sobre a filosofia ou os
belíssimos escritos sobre ciência e humanidades em Hegel ou Oppenheimer, em
Einstein ou em Bento de
Jesus Caraça, mesmo a análise de uma equação, não exige tudo isso ponderação e
silêncio? Uma sala
de aula com mil e um ecrãs... isso é convidar à indigência. A coacção do Google
Glass elimina o respeito: essa distância sedutora que o aluno sente quando
está perante o professor que ama os livros e não os ridiculariza em nome de
qualquer espectáculo.
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