domingo, 14 de julho de 2019

Les uns et les autres


A propósito do artigo de Maria de Fátima Bonifácio, que fez deflagrar tanta pesporrência adversa à professora, que se atreveu, democraticamente, a exprimir uma opinião pessoal, de sensatez de observação, num tema “quente”, porque devidamente acarinhado pelos actuais fazedores de opinião, da afeição governativa, Vasco Pulido Valente também vem à liça defender a pessoa de quem se diz amiga, condenando-a, contudo, no “erro histórico” por ela cometido, a respeito da inclusão de ciganos e muitos dos africanos na cristandade, esquecida do ecumenismo que ao que parece o cristianismo pressupõe, embora os maometanos, também parece não se incluírem nela, pois até já andámos à trolha com eles, na chamada “reconquista cristã”, além de que outros de seitas parecidas, mas islamistas, têm cometido ultimamente desacatos horripilantes, na intenção, ao que parece, de difundirem as luzes da sua seita lá pela Europa. VPV deseja saber a opinião do advogado Francisco Teixeira da Mota sobre a viabilidade de uma condenação da sua amiga. Por esse motivo, coloco também um texto de FTM , saído no Público, mas FTM parece não ter opinião própria, limita-se a citar várias decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), afastando prudentemente a sua responsabilidade decisora, mas dando a entender que Maria de Fátima Bonifácio não escapa da condenação que a tanta gente nossa, da bondade unilateral, apetece. É por isso que volto a transcrever parte do texto de Alberto Gonçalves, que não alinha nas mesmas pusilanimidades nem nas mesmas perfídias, dos nossos moralistas de trazer por casa.
Da Crónica Alberto Gonçalves Notícias da Inquisição Portuguesa /Premium:
«Veja-se o que aconteceu esta semana a propósito de Maria de Fátima Bonifácio. Em artigo no “Público”, a historiadora escreveu umas linhas sobre “raças”, incluindo a crítica às quotas e certas generalizações esquisitas. Admito que a senhora seja racista, não sei. Sei que a turba furiosa que exige a dilapidação, às vezes literal, da dra. Bonifácio é coisa pior. Nenhum ou quase nenhum dos furiosos, esmagadoramente brancos, está de facto preocupado com o alegado racismo. Em circunstâncias similares, também não estariam preocupados com a xenofobia, a “masculinidade tóxica” (pausa para alívio cómico), a homofobia e demais calamidades da época. A indiferença desses virtuosos às calamidades em si prova-se nos momentos em que eles próprios as cometem. Os virtuosos não se manifestaram quando o capataz da CGTP chamou “escurinho” a um representante da “troika”, ou quando meio mundo queria enxotar os brasileiros que votaram Bolsonaro, ou quando o revolucionário Otelo exibiu famílias paralelas, ou quando o dr. Louçã produziu uma observação canalha para atingir um adversário político. A preocupação dessa gente, que de resto enxovalha com jovialidade os homens, os brancos, os heterossexuais, os “ricos”, os cristãos ou os judeus, não são as calamidades, mas as liberdades. E o objectivo dessa gente não é acabar com as primeiras, mas abolir as segundas.
É por isso que as “ofensas” em que a actualidade é pródiga não inspiram aos “ofendidos” um esboço de contraditório, e sim uma vontade imensa de calar e punir o “ofensor”. Ao suposto “ódio” respondem com ódio inequívoco e, se possível, consequente. Mamadou Ba, chefe de uma metástase do Bloco de Esquerda intitulada SOS Racismo, esclareceu: não basta que a dra. Bonifácio peça desculpa, tem de pagar pelo que disse. O sr. Ba não informou se o pagamento ideal seria através de coima, pena de prisão ou fogueira na praça. À cautela, apresentou queixa ao Ministério Público contra a dra. Bonifácio, no que foi imitado por inquisidores de calibre semelhante. Há promessas de “boicote” dos jornais que publiquem a dra. Bonifácio (já suficientemente boicotados pelo mercado). Há rumores de pressões dentro da universidade. Há ameaças veladas e explícitas. E há, em suma, o desejo ardente de destruir alguém que, com maior ou menor acerto, se limitou a emitir uma opinião, hoje elevada a crime
I - CRÓNICA
Diário
Conheço a Fátima [Bonifácio] há quase cinquenta anos. Nunca dei por que ela fosse xenófoba ou racista. Defeito meu, com certeza.
VASCO PULIDO VALENTE
PÚBLICO, 13 de Julho de 2019
6 de Julho: Parece que a Fátima Bonifácio provocou uma caçada às bruxas nas redes sociais. Desta vez, a bruxa é ela.
7 de Julho: Conheço a Fátima há quase cinquenta anos. Nunca dei por que ela fosse xenófoba ou racista. Defeito meu, com certeza.
8 de Julho: A pretexto da Fátima, um artigo de Rui Tavares com o título de “O neo-reaccionarismo e como combatê-lo. A segunda parte merece comentário. É um truque estalinista muito conhecido. Rui Tavares faz uma “amálgama” de todas as partes e tendências da direita e baptiza o resultado com o nome “neo-reaccionarismo”. O que, no fundo, ele gostava de ter dito era: “fascismo”.
O anti-fascismo serviu aos estalinistas desde a guerra de Espanha, para esconder a sua verdadeira face e condenar por grosso os seus inimigos. O “neo-reaccionarismo” pretende servir os mesmos fins. Quem quer ser “neo-reaccionário”? Qualquer pessoa prefere estar do lado do progresso e contra a reacção. A manobra é perfeita. Só tem dois defeitos.
Primeiro, revela o tiranete que dorme em cada apologista dos direitos do homem e dos “valores da Europa”. Segundo, “neo-reaccionário” não é uma palavra tão boa e tão simples como “fascista”.
9 de Julho: João Miguel Tavares, como quem se preza, também apanhou a boleia da Fátima para mostrar a sua limpeza de alma. Já o colega das 2ª, 4ª e 6ª tinha aproveitado a deixa, na primeira parte do seu artigo de ontem. Hoje, João Miguel Tavares entrou na corrida em nome da Cristandade.
Com muitas vénias e arrecuos, acusa a Fátima de não incluir os ciganos e os negros na Cristandade; e fala de Pedro e Paulo. Falta de preparação: o que dividia Pedro e Paulo nada tem a ver com o racismo e a xenofobia de agora. Nem a universalidade de Paulo era mais do que a vocação ecuménica da sua pequena seita no mundo romano. E, de resto, a Fátima só usa a palavra “Cristandade” uma vez e no sentido cultural do termo.
Ela não acha, mas cristãos somos nós todos, até os ateus, quanto mais os ciganos e os negros. Basta-nos respirar. Os argumentos teológicos são um despropósito.
Talvez João Miguel Tavares soubesse isso perfeitamente e fingisse que não, para poder desalfandegar um pouco da sua carga direitista, provando assim como a ameaça, mesmo latente, de “neo-reaccionarismo” funciona bem.
10 de Julho: Ultimamente têm aparecido muitos intérpretes da personalidade de Rui Rio que, para quem está de fora, parece um erro da história política portuguesa. Mas não é. Rui Rio faz parte da grande tradição do pequeno déspota de província que acede a um cargo nacional. Não vejo grande diferença entre ele e o homem do Vimieiro, que servia cabrito assado com batata nova aos seus ministros.
11 de Julho: SOS Racismo e um grupo de indivíduos indignados apresentaram queixa-crime contra a Fátima Bonifácio. Cada um faz o que quer e o que lhe apetece nesta nossa terrinha. Mas gostava de saber o que diz disto tudo o Francisco Teixeira da Mota.
Colunista
COMENTÁRIOS
j sousa, Portugal: O infeliz texto de MFB e a algazarra que se lhe seguiu, teve pelo menos o condão de confirmar uma tendência que nós Portugueses, parece estarmos a adoptar neste séc. XXI: convencidos e litigantes.
ana cristina, Lisboa et Orbi: defensores dos direitos do homem? todos uns tiranetes em potência. Excluir africanos e ciganos da Cristandade? sendo "só uma vez e no sentido cultural", está perdoada, a amiga Fátima. .....assim não dá, Vasco.
Ceratioidei, Oceanos 09:31: Conheço a Fátima há quase cinquenta anos. Nunca dei por que ela fosse xenófoba ou racista. Defeito meu, com certeza.“ Tipicamente elite portuguesa: não saber separar o trabalho do Cognac. É meu amigo, isso é prova suficiente da sua idoneidade. Ou seja: eu sou indiscutível, a bitola da razão, o fiel da balança. O meu amigo é idóneo porque é meu amigo. Não, não é defeito. É feitio.
AndradeQB, Porto: A histeria à volta do texto de Fátima Bonifácio resulta da mesma confusão e medos que levou o país, aqui há um par de anos, a defender até ao endeusamento os dois bezerros que fugiram durante o transporte para uma feira no Minho. Também nessa onda de amores e ódios, me pareceu que, a dada altura, já ninguém sabia se eram bezerros, se touros, ou cabras. Qualquer desculpa é boa para desviar a discussão dos problemas que o instinto sabe existirem e se receia enfrentar para discussões laterais. Há quem vá ao futebol.
Visitante da Noite, En un lugar de La Mancha, ou por aí perto: Estávamos mesmo à espera da sua reacção, caro VPV. É preciso de facto ser Valente para vir defender o indefensável. O seu principal argumento é que não foi bem aquilo que a autora queria escrever, então resta-nos sobreinterpretar cada uma das suas palavras. A Cristandade não se caracteriza pela uniformidade cultural, isso é uma falácia, existem povos cristãos dos confins da Sibéria à Cidade do Cabo. O problema de fundo do texto da FB, independentemente das ideias que defende, é que é francamente mau: factualmente errado e mal escrito e argumentado. A Africana Francisca Van Dunem veio nestas mesmas páginas dar uma lição de bom português e bom senso. Por norma discordo do ponto de vista do VPV, mas leio-o com interesse porque escreve bem e suscita reflexão. O texto da FB deu-me vergonha alheia.
II - OPINIÃO
O Tribunal Europeu e o discurso de ódio
FRANCISCO TEIXEIRA DA MOTA                     PÚBLICO, 12 de Julho de 2019
A recusa de protecção desse tipo de discurso, na prática, pode resultar de o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) considerar que o mesmo constitui um abuso de direito em relação à liberdade de expressão, o que é proibido pela Convenção que determina que nenhuma das suas disposições se pode interpretar no sentido de haver um direito a praticar actos com vista à destruição dos direitos ou liberdades consagrados na própria Convenção.
Mas o TEDH também pode recusar, em concreto, a protecção da liberdade de expressão ao discurso de ódio ou de discriminação racial, não porque entende que coloca em causa os direitos e valores fundamentais sobre os quais assenta a CEDH mas porque entende que se justificam restrições à liberdade de expressão em nome da defesa da segurança pública ou da ordem pública e a prevenção criminal, bem como a protecção da honra ou dos direitos de outrem.
Em 27 de Junho de 2017, por exemplo, o TEDH apreciou a queixa, por violação da liberdade de expressão, de Belkacem, um cidadão belgamuçulmano que tinha sido condenado na pena, suspensa, de 18 meses de prisão e numa multa de 550 euros por incitamento à discriminação, à violência e ao ódio. No Youtube, Belkacem pedia aos seus apaniguados que dominassem as pessoas não-muçulmanas, lhes ensinassem uma lição e lutassem contra elas. O TEDH considerou que as declarações de Belkacem tinham um conteúdo que promovia o ódio, a discriminação e a violência contra todos os que não fossem muçulmanos. Para o TEDH, um ataque tão generalizado e veemente contradizia os valores de tolerância, paz social e não-discriminação que fundamentam a Convenção pelo que considerou que Belkacem pretendia usar o seu direito à liberdade de expressão para fins claramente contrários ao espírito da Convenção, concluindo que, tendo em conta a proibição do abuso de direito, Belkacem  não beneficiava da protecção da liberdade de expressão.
Noutro caso, em 4 de Dezembro de 2003, o TEDH debruçou-se sobre a condenação do cidadão turco Gunduz a uma pena de dois anos de prisão e ao pagamento de uma multa no valor de 600 000 liras turcas por, num debate televisivo, ter expressado as suas ideias radicais, nomeadamente quanto à democracia e à necessidade de imposição da lei sharia, o que fora considerado pelos tribunais turcos como discurso de ódio. O TEDH, pelo seu lado, considerou que Gunduz participara activamente de uma animada discussão pública representando as ideias extremistas de sua seita e que este debate pluralista procurara apresentar a seita e suas ideias não convencionais, nomeadamente a incompatibilidade de sua concepção do Islão com os valores democráticos, um tema, sem dúvida, de interesse geral. Para o TEDH, as afirmações de Gunduz não incitavam à violência ou ao ódio com base na intolerância religiosa. O mero facto de Gunduz defender a sharia, sem exigir o seu estabelecimento através da violência, não poderia ser considerado um discurso de ódio. E a Turquia foi condenada por ter violado a liberdade de expressão de Gunduz.
Já no caso Féret contra a Bélgica, decidido em 16 de Julho de 2009, o TEDH considerou que a Bélgica não violara a liberdade de expressão consagrada na Convenção ao condenar Féret, dirigente do Partido Nacional, a uma pena de prestação de serviços comunitários de 250 horas e de ineligibilidade para cargos públicos por 10 anos, por incitamento à discriminação racial.
Féret defendia publicamente, entre outras coisas, o repatriamento dos imigrantes e pretendia “opor-se à islamização da Bélgica”, “parar a política de pseudo-integração”, “reservar para os belgas e europeus, a prioridade na assistência social “,” deixar de engordar as associações socioculturais de assistência à integração de imigrantes” e “reservar o direito de asilo (...) a pessoas de origem europeia realmente perseguidas por razões políticas”.
Para o TEDH, as afirmações de Féret incitavam claramente à descriminação e ódio racial pelo que sua condenação pelos tribunais belgas estava justificada pela necessidade de proteger a ordem pública e os direitos de terceiros numa sociedade democrática.
Comentário: Ceratioidei, Oceanos 12.07.2019: Caro Francisco Teixeira da Mota, não encontro palavras que exprimam o que senti ao ler o seu texto. Encheu-me as medidas, transbordou e provocou um sentimento de bem-estar inexplicável. Obrigado. Bem haja.

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