quinta-feira, 18 de julho de 2019

Só ama quem pode… ou quem sabe…


Vem o título a propósito deste texto de Salles da Fonseca “Por essa picada além”, porque me lembrei de um texto que coloquei num livro meu – “Anuário – Memórias soltas” (1999) - sobre o “SEXTO DIA DA CRIAÇÃO DO MUNDO”, por Miguel Torga, que já citei, mas que não posso deixar de referir novamente, pelo confronto de um texto tendencioso, com a crónica suave e sorridente, isenta de “parti pris” e antes banhada pela evocação saudosa de quem um dia ali viveu, ainda que pela força de circunstâncias que não contestou e que soube justificar aplaudindo o trabalho de alguns e a vida pacífica de todos os não alertados ainda para a perversidade de ventos gerados pelas forças com “parti pris”.
Cito, pois, desse meu «Colonialismo em “parti pris”»:

«…Ignorou o esforço heróico do povo colonizador, que mau grado a desproporção numérica e as contingências do seu posicionamento subalterno em relação a uma Metrópole sempre ávida e sempre madrasta, e da idiossincrasia do povo negro, lento e insubmisso, foi construindo e desenvolvendo, conquanto muito menos expressivamente do que a vizinha África do Sul, poderosa e autónoma. «A colonização portuguesa assumiria assim o carácter hediondo do tráfico negreiro do Brasil de outrora.
«Escrito já depois da Revolução de Abril, o discurso sobre tal colonização, faccioso e redutor, bem poderia ter merecido um comentário menos orientado em função de uma ideologia falaz, que o mundo inteiro aceita hipocritamente, conhecendo embora quanto são falsos e traiçoeiros os juízos humanos que defendem a terra para os seus naturais, indiferentes às consequências bem visíveis dessas descolonizações apressadas que, abandonando os naturais africanos ao primarismo dos seus instintos, mergulharam as suas terras na fome, agora real, e nas convulsões internas tribalistas, agora sim, verdadeiramente racistas e criminosas.
«O “Sexto Dia” de “A CRIAÇÃO DO MUNDO”: «Mais uma obra admirável, no seu discurso perfeito, mas que nos mostra igualmente quão limitados são os juízos humanos, quando reduzidos à dimensão subjectiva ou tendenciosa de quem os produz.»
Uma crónica oposta, a de Salles da Fonseca, ao seu modo ligeiro, na seriedade construtiva e isenta, de quem soube colher, das suas experiências de trabalho, factores aprazíveis de valorização e reconhecimento pelas gentes continuadoras dos “barões” de outrora, a quem Fernando Pessoa igualmente prestigiou, embora sendo lírica a intenção da sua épica.
O texto de Salles da Fonseca alegre e franco, vivo e honesto, conta com alegria e amor, lembrando aspectos de esforço e economia, como essa do caju, que tanta saudade deixou nos que compravam a castanha e os amendoins, aos rapazitos postados nos passeios das largas avenidas de Lourenço Marques, que os vendiam nos cartuchos em cone, feitos de velhos jornais…
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 17.07.19
Se bem me lembro, o ponto de partida foi a porta principal da Messe de Oficiais, frente ao Quartel General, na Praça Neutel de Abreu. Era manhãzinha mas nada de exageros, dia aberto.
E deu para rever a História e as histórias a «modos que» de despedida…
… Neutel de Abreu, aquele que nos era apresentado como o fundador de Nampula mas que também fora o «domador» duma terra até então conhecida como «o cemitério dos brancos». Não, nada disso, Caro Leitor. Quem matava mais brancos não eram os indígenas humanos mas sim o mosquito da malária. E foi nos tempos de Neutel de Abreu como chefe branco daquele assentamento que a malária começou a ser combatida pelo aterro dos pântanos formados a esmo pelo rio Lúrio. Mas é claro que o Major também distribuiu uns sopapos por aqui e por ali… que o diga o Sultão Farelay de Angoche.
(para saber mais sobre Neutel de Abreu, ver por exemplo em
E, decidido a dar uma última passagem pelo meio da cidade, arrancámos direitos à Praça do Infante passando frente à Residencial Brasília onde serviam o melhor «chateaubriand» que alguma vez comi em qualquer latitude entre os Pólos Norte e Sul. Carne de gado autóctone devidamente desparasitado mas alimentado apenas com capim, sem mistelas químicas para acelerar a engorda. E, vai daí, pensei na pujante economia agro-pecuária de toda aquela região. É que, havendo mercado, todos os produtores – brancos e pretos – beneficiavam com a actividade pecuária fazendo as suas vidas com normalidade e conforto.
Passada a Praça do Infante, subimos a avenida principal (cujo nome esqueci mas que um Leitor amigo nos vai recordar) em direcção à estação dos comboios e, aí, lembrei-me de mais qualquer coisa…
… duma cena passada com uma moto BMW lindíssima que a Polícia tinha importado para apanhar os «aceleras», que nunca tinha chateado ninguém e que certa vez estava parada por ali, junto à estação dos comboios. Então, um amigo nosso – cujo nome omito para ser ele a acusar-se depois de ler este escrito – que há dias andava deslumbrado com aquela beleza, não teve melhor ideia do que montar-se nela e dar uma voltinha por ali… Pois! Mas o titular do posto não estava longe, deu pelo abuso, veio no encalço do prevaricador e levou-o à Esquadra. Creio que tudo não passou de um puxão de orelhas mas o próprio que saia a terreiro e que conte.
A rua da estação desenvolvia-se ao longo da linha do comboio como acontece em toda a parte onde há comboios e respectivas estações. Portanto, não era por isso que ela dava nas vistas. Era, isso sim, por ser a fronteira entre a cidade do cimento e a «cidade das sombras verdes», a que existia por baixo da pujante floresta de cajueiros que imperava em toda a região. Desse lado de lá situava-se também o «meu» Centro Hípico, o palácio do Arcebispo e o aeroporto. E foi de tudo isso que me lembrei nesta última passagem: o velho «Kanimambo», puro sangue inglês que ajudei a trazer de volta à vida e que montava diariamente numa juventude reconquistada cheia de gosto pela vida, de D. Manuel Vieira Pinto que exercia a sua pastoral católica cercado por mais de duas mil mesquitas, pela informação que o General Galvão de Melo me tinha dado de que a base aérea de Nampula (e aeroporto civil) era a única no Norte de Moçambique cuja localização não tinha sido definida por ele e que, portanto, era a única mal localizada… tema que nunca estudei mas que me deu a certeza de que o General se tinha a si próprio em desmesurada consideração (mesmo que fosse verdade, acho que o pudor impedia que o dissesse). E ao passar pelas «sombras verdes», lembrei-me da «coisa» mais importante para aquela gente, a economia do cajueiro em que cada família tem uma árvore (junto da qual ou debaixo da qual tem a sua casa) cujas castanhas vende (habitualmente, aos comerciantes indianos) e de cujas peras faz a aguardente mais apetecida por todos eles (e elas) mas que lhes dá cabo da saúde. Pois! Mas enquanto vivem, a economia do caju dá-lhes um conforto financeiro importante para não dizer importantíssimo. E eu levava na adivinhação de que se um dia os comunistas quisessem ali entrar, haveriam de esbarrar com esta sociedade tão experiente na economia privada. Adivinhando, acertei. Bastou deixar passar apenas uma dezena de anos.
E de tudo isto me fui lembrando até que deixámos a cidade, passámos as «sombras verdes» e… chegámos à zona rural, o mato, como se dizia.
De mato nada havia por ali mas sim machambas umas agarradas às outras, de exploração mais ou menos extensiva, mais ou menos intensiva, mais sofisticada, mais primitiva, de tudo havia com predominância para a produção de mandioca e para a produção de carne. E assim foi numa paisagem monotonamente variada, muito humanizada, até que chegámos à gafaria, o extremo das redondezas de Nampula. Para mim, começava ali o mare incognito in terra firma.
E aí vamos nós…
Julho de 2019 Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS:
Henrique Salles da Fonseca  17.07.2019:  Obaaaa! Lindo! A gente se sente viajando por aquela linda cidade!.... Maravilhosa crónica! Compartilhei nas mesmas páginas! Raquel Matholo (Maputo)
Miguel Lory  17.07.2019: O teu "Centro Hípico", boa lembrança. Conseguiste pôr-me a andar de cavalo, principalmente antes das aulas.
Adriano Lima  17.07.2019: Dr. Salles, venham mais crónicas magníficas como esta. Não imagine as saudades que me despertou daquelas paragens e das suas gentes. Até parece que foi ontem, porque ainda sinto a palpitação daqueles cenários geográficos e humanas, mas a verdade é que já lá vão quase 50 anos em que também andei por aqueles lados.

Henrique Salles da Fonseca  18.07.2019: Só «Chateaubriand»? E os «camarões à inglesa» que nunca mais provei igual? A frescura, o crocante, o sabor (nunca me disseram como eram temperados). Eram feitos pelo mesmo que servia às mesas, um tipo simpático mas que se irritava (educadamente, é claro) por o Alberto, o mainato do Pedro, se sentar à nossa mesa. E as acácias da Avenida que ia da Praça do Infante (onde uma padaria fazia pão quentinho de hora a hora à porta da qual se comprava por uma quinhenta os melhores e mais quentes amendoins que comi até hoje). A Avenida cheia de lojas de indianos onde se vendia o melhor caril, os tevidos uma loucura de cores e texturas passando pelo cinema, o «Hotel Portugal», definitivamente um sítio deslumbrante mas que me faz pensar em comida. O excelente pato do bar do «Rex» na estrada para o Namialo a 8 kms de Nampula do pai do jogador Costa Pereira. Vou ficar por aqui, já estou com fome. Isabel Pedroso

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