Vem o título a propósito deste texto de Salles da Fonseca “Por essa picada além”, porque me lembrei
de um texto que coloquei num livro meu – “Anuário
– Memórias soltas” (1999) - sobre o “SEXTO DIA DA CRIAÇÃO DO MUNDO”, por Miguel Torga, que já citei, mas que não posso deixar de referir
novamente, pelo confronto de um texto tendencioso, com a crónica suave e
sorridente, isenta de “parti pris” e antes banhada pela evocação saudosa de
quem um dia ali viveu, ainda que pela força de circunstâncias que não contestou
e que soube justificar aplaudindo o trabalho de alguns e a vida pacífica de
todos os não alertados ainda para a perversidade de ventos gerados pelas forças
com “parti pris”.
Cito, pois, desse meu «Colonialismo em “parti pris”»:
«…Ignorou
o esforço heróico do povo colonizador, que mau grado a desproporção numérica e
as contingências do seu posicionamento subalterno em relação a uma Metrópole
sempre ávida e sempre madrasta, e da idiossincrasia do povo negro, lento e
insubmisso, foi construindo e desenvolvendo, conquanto muito menos
expressivamente do que a vizinha África do Sul, poderosa e autónoma. «A
colonização portuguesa assumiria assim o carácter hediondo do tráfico negreiro
do Brasil de outrora.
«Escrito
já depois da Revolução de Abril, o discurso sobre tal colonização, faccioso e
redutor, bem poderia ter merecido um comentário menos orientado em função de
uma ideologia falaz, que o mundo inteiro aceita hipocritamente, conhecendo
embora quanto são falsos e traiçoeiros os juízos humanos que defendem a terra
para os seus naturais, indiferentes às consequências bem visíveis dessas
descolonizações apressadas que, abandonando os naturais africanos ao primarismo
dos seus instintos, mergulharam as suas terras na fome, agora real, e nas
convulsões internas tribalistas, agora sim, verdadeiramente racistas e
criminosas.
«O
“Sexto Dia” de “A CRIAÇÃO DO MUNDO”: «Mais uma obra admirável, no seu discurso
perfeito, mas que nos mostra igualmente quão limitados são os juízos humanos,
quando reduzidos à dimensão subjectiva ou tendenciosa de quem os produz.»
Uma crónica oposta, a de Salles da Fonseca, ao seu
modo ligeiro, na seriedade construtiva e isenta, de quem soube colher, das suas
experiências de trabalho, factores aprazíveis de valorização e reconhecimento
pelas gentes continuadoras dos “barões” de outrora, a quem Fernando Pessoa igualmente prestigiou, embora sendo lírica a
intenção da sua épica.
O texto de Salles da Fonseca alegre e
franco, vivo e honesto, conta com alegria e amor, lembrando aspectos de esforço
e economia, como essa do caju, que tanta saudade deixou nos que compravam a
castanha e os amendoins, aos rapazitos postados nos passeios das largas
avenidas de Lourenço Marques, que os vendiam nos cartuchos em cone, feitos de
velhos jornais…
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 17.07.19
Se
bem me lembro, o ponto de partida foi a porta principal da Messe de Oficiais, frente ao Quartel
General, na Praça Neutel de Abreu. Era manhãzinha mas nada de
exageros, dia aberto.
E
deu para rever a História e as histórias a «modos que» de despedida…
…
Neutel de Abreu, aquele que nos era apresentado como o fundador de Nampula mas
que também fora o «domador» duma terra até então conhecida como «o cemitério
dos brancos». Não, nada disso, Caro Leitor. Quem matava mais brancos não eram
os indígenas humanos mas sim o mosquito da malária. E foi nos tempos de Neutel
de Abreu como chefe branco daquele assentamento que a malária começou a ser
combatida pelo aterro dos pântanos formados a esmo pelo rio Lúrio. Mas é claro
que o Major também distribuiu uns sopapos por aqui e por ali… que o diga o
Sultão Farelay de Angoche.
(para
saber mais sobre Neutel de Abreu, ver por exemplo em
E,
decidido a dar uma última passagem pelo meio da cidade, arrancámos direitos à Praça do Infante passando frente à Residencial
Brasília onde serviam o melhor «chateaubriand»
que alguma vez comi em qualquer latitude entre os Pólos Norte e Sul. Carne
de gado autóctone devidamente desparasitado mas alimentado apenas com capim,
sem mistelas químicas para acelerar a engorda. E, vai daí, pensei na pujante
economia agro-pecuária de toda aquela região. É que, havendo mercado, todos
os produtores – brancos e pretos – beneficiavam com a actividade pecuária
fazendo as suas vidas com normalidade e conforto.
Passada
a Praça do
Infante, subimos a avenida principal (cujo nome esqueci mas que um Leitor
amigo nos vai recordar) em direcção à estação dos comboios e, aí, lembrei-me de
mais qualquer coisa…
…
duma cena passada com uma moto BMW lindíssima que a Polícia tinha importado para apanhar os
«aceleras», que nunca tinha chateado ninguém e que certa vez estava parada por ali, junto à estação dos
comboios. Então, um amigo nosso – cujo nome omito para ser ele a acusar-se
depois de ler este escrito – que há dias andava deslumbrado com aquela beleza,
não teve melhor ideia do que montar-se nela e dar uma voltinha por ali…
Pois! Mas o titular do posto não estava longe, deu pelo abuso, veio no encalço
do prevaricador e levou-o à Esquadra. Creio que tudo não passou de um puxão de
orelhas mas o próprio que saia a terreiro e que conte.
A
rua da estação desenvolvia-se ao longo da linha do comboio como acontece em
toda a parte onde há comboios e respectivas estações. Portanto, não era por isso que ela dava nas vistas. Era, isso
sim, por ser a fronteira entre a cidade do cimento e a «cidade das sombras verdes»,
a que existia por baixo da pujante floresta de cajueiros que imperava em
toda a região. Desse lado de lá situava-se também o «meu» Centro Hípico, o palácio do Arcebispo e o
aeroporto. E foi de tudo isso que me lembrei nesta última passagem: o velho
«Kanimambo», puro sangue inglês que ajudei a trazer de volta à vida e que
montava diariamente numa juventude reconquistada cheia de gosto pela vida,
de D. Manuel Vieira Pinto que exercia a sua pastoral católica cercado
por mais de duas mil mesquitas, pela informação que o General Galvão de Melo
me tinha dado de que a base aérea de Nampula (e aeroporto civil) era a única no
Norte de Moçambique cuja localização não tinha sido definida por ele e que,
portanto, era a única mal localizada… tema que nunca estudei mas que me deu a
certeza de que o General se tinha a si próprio em desmesurada consideração
(mesmo que fosse verdade, acho que o pudor impedia que o dissesse). E ao passar
pelas «sombras verdes», lembrei-me da «coisa» mais importante para aquela
gente, a economia do cajueiro em que cada família tem uma árvore (junto
da qual ou debaixo da qual tem a sua casa) cujas castanhas vende
(habitualmente, aos comerciantes indianos) e de cujas peras faz a aguardente
mais apetecida por todos eles (e elas) mas que lhes dá cabo da saúde. Pois!
Mas enquanto vivem, a economia do caju dá-lhes um conforto financeiro
importante para não dizer importantíssimo. E eu levava na adivinhação de que
se um dia os comunistas quisessem ali entrar, haveriam de esbarrar com esta
sociedade tão experiente na economia privada. Adivinhando, acertei. Bastou
deixar passar apenas uma dezena de anos.
E
de tudo isto me fui lembrando até que deixámos a cidade, passámos as «sombras
verdes» e… chegámos à zona rural, o mato, como se dizia.
De
mato nada havia por ali mas sim machambas umas agarradas às outras, de exploração mais ou menos extensiva,
mais ou menos intensiva, mais sofisticada, mais primitiva, de tudo havia com
predominância para a produção de mandioca e para a produção de carne. E assim
foi numa paisagem monotonamente variada, muito humanizada, até que
chegámos à gafaria, o extremo das redondezas de Nampula. Para mim, começava ali o mare incognito in terra firma.
E aí vamos nós…
Julho de 2019 Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS:
Henrique Salles da Fonseca 17.07.2019: Obaaaa! Lindo! A gente se sente viajando por
aquela linda cidade!.... Maravilhosa crónica! Compartilhei nas mesmas páginas! Raquel Matholo
(Maputo)
Miguel Lory 17.07.2019: O teu "Centro Hípico", boa lembrança.
Conseguiste pôr-me a andar de cavalo, principalmente antes das aulas.
Adriano Lima 17.07.2019: Dr. Salles,
venham mais crónicas magníficas como esta. Não imagine as saudades que me
despertou daquelas paragens e das suas gentes. Até parece que foi ontem, porque
ainda sinto a palpitação daqueles cenários geográficos e humanas, mas a verdade
é que já lá vão quase 50 anos em que também andei por aqueles lados.
Henrique Salles da Fonseca 18.07.2019:
Só «Chateaubriand»? E os «camarões à inglesa» que nunca mais provei igual? A
frescura, o crocante, o sabor (nunca me disseram como eram temperados). Eram
feitos pelo mesmo que servia às mesas, um tipo simpático mas que se irritava
(educadamente, é claro) por o Alberto, o mainato do Pedro, se sentar à nossa
mesa. E as acácias da Avenida que ia da Praça do Infante (onde uma padaria fazia
pão quentinho de hora a hora à porta da qual se comprava por uma quinhenta os
melhores e mais quentes amendoins que comi até hoje). A Avenida cheia de lojas
de indianos onde se vendia o melhor caril, os tevidos uma loucura de cores e
texturas passando pelo cinema, o «Hotel Portugal», definitivamente um sítio
deslumbrante mas que me faz pensar em comida. O excelente pato do bar do «Rex»
na estrada para o Namialo a 8 kms de Nampula do pai do jogador Costa Pereira.
Vou ficar por aqui, já estou com fome. Isabel Pedroso
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