Ao ler mais esta lição de Salles da Fonseca, fiquei com
a sensação de que a etnia indiana estava assente em força, na terra onde nasci e
cresci, e que a presença portuguesa era mínima e sujeita à suserania indiana, e
que só em 1961 deixou de ser braço de apoio, consequência da anexação de Goa
(Gamão e Diu) pelas tropas de Nehru. Nunca tinha dado por isso, mas o certo é
que o meu posto de vigia confinou-se a Lourenço Marques, quer nos 3 anos de infância
inconsciente, quer nos 9 de adolescência, quer nos 14 de tempo de trabalho. Das
duas últimas etapas tenho recordações, que as fotos ajudam a reviver. Sei que
brinquei com bastantes colegas goesas durante o liceu, mas a relação com o povo
muçulmano era praticamente nula, embora me lembre de figuras femininas de uns vizinhos
nossos, aparentando pobreza, que viviam atrás da nossa casa, a Lolola que
conhecíamos melhor, e uma sua irmã, filhas do “Matrakah”, um velhote pequeno e
feio, com uma família numerosa, entre a qual se distinguia essa filha de uma
beleza transcendente, em trajes vaporosos e coloridos que para mim encarnou o
ideal da Vénus - não a do Milo, mas uma estátua de perfeição, sem amputação de
qualquer espécie. Também recordo outras vizinhas com quem a minha mãe às vezes
falava e que lhe enviavam amáveis requintes dos seus croquetes que nunca
provei, mas não deixava de estranhar as simpáticas relações da minha mãe, que
se ficavam, todavia, na troca de receitas corteses. Não, não me lembro desse
domínio indiano no comando dessas terras, com governadores portugueses
destacados pela metrópole, com ministros do Ultramar que às vezes íamos esperar
ao aeroporto, vestidas com os fatos brancos de ginástica e bandeirinha na mão, aeroporto,
salvo erro de Mavalane, mais tarde baptizado de Gago Coutinho, já sem
bandeirinhas para mim. Colegas chinesas tive também, a simpática e inteligente
Kwai Uan, mas do domínio indiano, além da Casa
Coimbra e outras lojas de comércio, só recordo as longas filas indianas, com
o pai à frente, a mãe a seguir, os filhitos depois, além da mesquita defronte da
nossa casa, com os corpos curvados dos fiéis muçulmanos, ajoelhados no chão, sobretudo por
alturas do Ramadã, vestidos de branco e os pés nus à vista, estranho povo de
família numerosa mas que não incomodava ninguém, eles próprios isolando-se,
como a etnia cigana por aqui, e sempre em boa paz.
Outras das minhas recordações
deslumbradas foram as visitas de Aga Khan, bastante pesado, a quem a mesma colónia
dos seus súbditos ofereceu esse seu peso - em ouro, primeiro, em diamantes na
segunda visita - o que para sempre me espantou, pois julgava esse povo pobre,
nos fatos brancos dos homens, que me pareciam pouco limpos, a viver em casas
baixas, certamente que em péssimas condições de conforto, pelo menos os casos
que conheci. Mas a questão do campo de concentração, em 1961, aquando da perda
de Goa, achei-o um triste despropósito de retaliação, inutilmente vexatória, que
me envergonhou enquanto durou. Julgo não ter durado, contudo.
Sim, estive em Roma mas não vi o Papa,
isto é, não conheci a história moçambicana segundo a perspectiva que nos dá SF. Éramos portugueses, com escolas, hospital, o BNU, que
traçámos as terras – a de Lourenço Marques em bela esquadria. Bem ou mal, era
português o domínio, donde partiu o maior esforço. Não, não precisamos de
minorizar o esforço colonialista, ou seja o que for que lhe queiram chamar. Era
um território português, onde se trabalhava, como por cá, talvez com mais
abertura até, e é portuguesa a língua que lá ficou. Seja por enquanto. A língua
latina dos invasores romanos também foi divergindo em diferentes “romanços”,
não temos que nos sentir humilhados. Humilhados, sim, somos por cá, nas
transformações linguísticas propostas em Acordos Ortográficos segundo moldes de idiotia que governos
sem ética pretendem impor. E nós aceitamos. Como aceitámos as descolonizações,
de resto, na estreiteza de uma pesporrência que continua …
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 31.07.19
OS QUE NÃO FORAM TRAÍDOS
Abordados
os pretos, os brancos e os mistos na crónica anterior, refiro-me agora aos grandes
comerciantes em Moçambique, os indianos.
De
origens e religiões diferentes, não funcionavam como um grupo homogéneo. Basta
referir que uns seguiam o hinduísmo, outros eram muçulmanos sunitas
e outros ainda (creio que os mais importantes) eram muçulmanos ismaelitas
(do Aga Khan).
Historicamente,
Moçambique foi administrado a partir de Goa desde a instituição do Vice-Reinado
até ao Consulado Pombalino pelo que a influência dos indianos (v. p. ex. em «Companhia dos Mazanes») foi usada como «braço» da administração colonial portuguesa. E a vida continuou até que o caldo se entornou em 1961 com a
invasão indiana do Estado Português da Índia. Então, os indianos residentes
em Moçambique foram metidos em campos de concentração para daí serem expulsos
perdendo todas as suas propriedades em território português… a menos que
renunciassem à nacionalidade indiana. Creio que alguns, poucos, terão sido
expulsos mas uma grande quantidade optou pela nacionalidade paquistanesa.
Alguns optaram pela nossa nacionalidade. Não encontrei informação sobre que percentagens
optaram por isto e por aquilo.
Nos
meus tempos em Moçambique (Abril de 1971 – Julho de 1974) a etnia
indiana ou era portuguesa ou paquistanesa; outras nacionalidades passariam
despercebidas mas da indiana é que, de certeza, não eram. E todos se dedicavam
ao comércio desde as ruas mais importantes de Lourenço Marques ao recanto mais
afastado no mapa da savana.
Mas
também estas paragens remotas atraíam alguns brancos, portugueses. Por
exemplo, num desses cantos remotos da savana que ao fim de quase 50 anos já não
sou capaz de localizar, encontrei um cruzamento de duas estradas naquilo a que
costumamos chamar «4 caminhos» onde se localizavam, frente a frente,
duas cantinas de duas famílias do norte de Portugal. Num raio de muitos quilómetros,
o vazio total mas ali, à distância de não mais de 40 metros, duas cantinas
que se guerreavam na mais aguerrida e absurda concorrência.
Voltando
aos indianos, há que referir o facto de muitos deles se terem alcandorado aos
mais altos postos da Administração Pública moçambicana tanto antes como depois
da independência. Mais subiram a cargos governativos também antes e depois da
dita independência.
A
perspectiva religiosa é determinante em muitas circunstâncias da vida. Assim,
por exemplo, consta que a Fundação
Aga Khan financia sem juros (parece que o Corão proíbe a cobrança de juros num versículo que não localizei)
o capital inicial para que os seus fiéis se estabeleçam economicamente mas os
beneficiados ficam a pagar uma amortização anual vitalícia.
A comunidade
ismaelita dispõe em Lourenço Marques/Maputo de um centro cívico, religioso e
administrativo de grande relevo equivalente ao que, entretanto, foi erigido em
Lisboa. Comunidade laboriosa e empreendedora, nunca se ouviu dizer que os seus
membros se envolvessem nas quezílias típicas de outras facções muçulmanas. * * *
A
título de curiosidade, o Príncipe Aga Khan decidiu instalar em Lisboa a sua
sede mundial pelo que nós, os lisboetas, nos orgulhamos de termos connosco o
«Vaticano do Aga Khan». * * *
Voltando
a Moçambique, poderia ainda falar dos chineses se deles houvesse alguma coisa
de especial a dizer. Que eu saiba, não há. Primavam pela discrição e quase me apetece especular hoje sobre
se esses relativamente poucos que por lá havia não seriam a «guarda
avançada» para a invasão futura, quando fosse o tempo de cobrar a factura pela
ajuda dada aos movimentos de guerrilha contra os portugueses. Mas isso é só
especulação minha. O esbulho actual das riquezas moçambicanas por empresas
chinesas é uma mera coincidência.
Feito
um périplo muito genérica pela antropologia moçambicana naqueles finais da
época colonial, voltamos a Lourenço Marques já na próxima edição. Até logo!
COMENTÁRIOS
Anónimo, 31.07.2019: Apenas para ilustrares o que escreves nesta tua
crónica, cito o Prakaschi Ratial, já referido num comentário meu a uma das tuas
crónicas, que foi Governador do Banco de Moçambique, e que era meu colega do
Banco de Fomento, bem como o Abdool Karim Vakil, de que me orgulho de ser amigo
desde 1961 (fazem 58 anos!...), cuja Família era dona da Casa de Coimbra, em
Lourenço Marques, a fazer lembrar, à escala reduzida, os Armazéns Chiado ou
Grandela, e que tem sido um influente líder da comunidade islâmica em Portugal.
Um abraço, Henrique. Carlos Traguelho
Adriano Lima, 31.07.2019: Este texto é ilustrativo e instrutivo sobre a
composição do mosaico social de Moçambique. Pelo que conheci de Moçambique,
concordo com o que é dito. "Os indianos residentes em Moçambique foram
metidos em campos de concentração para daí serem expulsos, perdendo todas as
suas propriedades em território português… a menos que renunciassem à nacionalidade
indiana". Decisão execrável e incompreensível, mas compaginável com a
política salazarista.
Anónimo, 31.07.2019: Com a eventual autorização do autor deste Blogue,
gostaria de fazer um ligeiro comentário aos adjectivos "execrável" e
"incompreensível" utilizados pelo leitor Senhor Adriano Lima, com os
quais classifica a decisão salazarista. Não questionando minimamente o
sentimento expresso, quero apenas recordar o contexto e a conjuntura em que
aquela decisão foi tomada. Portugal considerou a invasão do chamado Estado da
Índia como um acto de guerra e daí aquela atitude. Sei que quando o Governo
Português de Afonso Costa teve autorização inglesa para declarar guerra à
Alemanha, na 1ª Guerra Mundial, apresámos, em acto contínuo, navios alemães que
estavam em nossos portos. Infelizmente, desconheço (ou já soube e não retive) o
que fizemos em relação a alemães que viviam, então, em Portugal. Mas não
estranharia que tivessem sido expulsos com perda de bens a favor do País.
Possivelmente, tudo isso teria respaldo no Direito Internacional, em caso de
beligerância, a título de compensação de prejuízos decorrentes da guerra. Já
agora acrescento algo, para vosso conhecimento. Aquando da invasão em 1961, o
Gerente da Sucursal do Banco Nacional Ultramarino naquele Estado enviou para
Portugal todas as reservas monetárias do Banco bem como o conteúdo dos cofres
particulares. Só muito tempo depois, algures entre 1990 e 1992, era embaixador
extraordinário (não de carreira) de Portugal na União Indiana o ex-jornalista
Guerra (não me recordo do outro nome), era Primeiro Ministro o Prof. Cavaco
Silva e era Presidente da República o Dr. Mário Soares, procedeu-se à devolução
do conteúdo dos cofres particulares a quem demonstrasse que seria legítimo
proprietário. Foi o último escolho para se normalizarem as relações entre os
dois países. Afastou-se o "irritante", como hoje se diria. Estava eu
na altura na Administração do BNU. E para cúmulo da ironia, a pessoa do Banco
que foi encarregada de coordenar o processo de devolução foi um Assessor do
Conselho de Administração, que não era mais nem menos do que o ex-gerente que,
em 1961, havia enviado os bens (essencialmente jóias) para a Sede do Banco.
Carlos
Traguelho
Francisco G. de Amorim 31.07.2019: Ainda por lá andei um pouco mais: Abril 71 a Novembro
74. E lembro tanta história... !
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