quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Ir a Roma e não ver o Papa


Ao ler mais esta lição de Salles da Fonseca, fiquei com a sensação de que a etnia indiana estava assente em força, na terra onde nasci e cresci, e que a presença portuguesa era mínima e sujeita à suserania indiana, e que só em 1961 deixou de ser braço de apoio, consequência da anexação de Goa (Gamão e Diu) pelas tropas de Nehru. Nunca tinha dado por isso, mas o certo é que o meu posto de vigia confinou-se a Lourenço Marques, quer nos 3 anos de infância inconsciente, quer nos 9 de adolescência, quer nos 14 de tempo de trabalho. Das duas últimas etapas tenho recordações, que as fotos ajudam a reviver. Sei que brinquei com bastantes colegas goesas durante o liceu, mas a relação com o povo muçulmano era praticamente nula, embora me lembre de figuras femininas de uns vizinhos nossos, aparentando pobreza, que viviam atrás da nossa casa, a Lolola que conhecíamos melhor, e uma sua irmã, filhas do “Matrakah”, um velhote pequeno e feio, com uma família numerosa, entre a qual se distinguia essa filha de uma beleza transcendente, em trajes vaporosos e coloridos que para mim encarnou o ideal da Vénus - não a do Milo, mas uma estátua de perfeição, sem amputação de qualquer espécie. Também recordo outras vizinhas com quem a minha mãe às vezes falava e que lhe enviavam amáveis requintes dos seus croquetes que nunca provei, mas não deixava de estranhar as simpáticas relações da minha mãe, que se ficavam, todavia, na troca de receitas corteses. Não, não me lembro desse domínio indiano no comando dessas terras, com governadores portugueses destacados pela metrópole, com ministros do Ultramar que às vezes íamos esperar ao aeroporto, vestidas com os fatos brancos de ginástica e bandeirinha na mão, aeroporto, salvo erro de Mavalane, mais tarde baptizado de Gago Coutinho, já sem bandeirinhas para mim. Colegas chinesas tive também, a simpática e inteligente Kwai Uan, mas do domínio indiano, além da Casa Coimbra e outras lojas de comércio, só recordo as longas filas indianas, com o pai à frente, a mãe a seguir, os filhitos depois, além da mesquita defronte da nossa casa, com os corpos curvados dos fiéis muçulmanos, ajoelhados no chão, sobretudo por alturas do Ramadã, vestidos de branco e os pés nus à vista, estranho povo de família numerosa mas que não incomodava ninguém, eles próprios isolando-se, como a etnia cigana por aqui, e sempre em boa paz.
Outras das minhas recordações deslumbradas foram as visitas de Aga Khan, bastante pesado, a quem a mesma colónia dos seus súbditos ofereceu esse seu peso - em ouro, primeiro, em diamantes na segunda visita - o que para sempre me espantou, pois julgava esse povo pobre, nos fatos brancos dos homens, que me pareciam pouco limpos, a viver em casas baixas, certamente que em péssimas condições de conforto, pelo menos os casos que conheci. Mas a questão do campo de concentração, em 1961, aquando da perda de Goa, achei-o um triste despropósito de retaliação, inutilmente vexatória, que me envergonhou enquanto durou. Julgo não ter durado, contudo.
Sim, estive em Roma mas não vi o Papa, isto é, não conheci a história moçambicana segundo a perspectiva que nos dá SF. Éramos portugueses, com escolas, hospital, o BNU, que traçámos as terras – a de Lourenço Marques em bela esquadria. Bem ou mal, era português o domínio, donde partiu o maior esforço. Não, não precisamos de minorizar o esforço colonialista, ou seja o que for que lhe queiram chamar. Era um território português, onde se trabalhava, como por cá, talvez com mais abertura até, e é portuguesa a língua que lá ficou. Seja por enquanto. A língua latina dos invasores romanos também foi divergindo em diferentes “romanços”, não temos que nos sentir humilhados. Humilhados, sim, somos por cá, nas transformações linguísticas propostas em Acordos Ortográficos segundo moldes de idiotia que governos sem ética pretendem impor. E nós aceitamos. Como aceitámos as descolonizações, de resto, na estreiteza de uma pesporrência que continua …
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 31.07.19
OS QUE NÃO FORAM TRAÍDOS
Abordados os pretos, os brancos e os mistos na crónica anterior, refiro-me agora aos grandes comerciantes em Moçambique, os indianos.
De origens e religiões diferentes, não funcionavam como um grupo homogéneo. Basta referir que uns seguiam o hinduísmo, outros eram muçulmanos sunitas e outros ainda (creio que os mais importantes) eram muçulmanos ismaelitas (do Aga Khan).
Historicamente, Moçambique foi administrado a partir de Goa desde a instituição do Vice-Reinado até ao Consulado Pombalino pelo que a influência dos indianos (v. p. ex. em «Companhia dos Mazanes») foi usada como «braço» da administração colonial portuguesa. E a vida continuou até que o caldo se entornou em 1961 com a invasão indiana do Estado Português da Índia. Então, os indianos residentes em Moçambique foram metidos em campos de concentração para daí serem expulsos perdendo todas as suas propriedades em território português… a menos que renunciassem à nacionalidade indiana. Creio que alguns, poucos, terão sido expulsos mas uma grande quantidade optou pela nacionalidade paquistanesa. Alguns optaram pela nossa nacionalidade. Não encontrei informação sobre que percentagens optaram por isto e por aquilo.
Nos meus tempos em Moçambique (Abril de 1971 – Julho de 1974) a etnia indiana ou era portuguesa ou paquistanesa; outras nacionalidades passariam despercebidas mas da indiana é que, de certeza, não eram. E todos se dedicavam ao comércio desde as ruas mais importantes de Lourenço Marques ao recanto mais afastado no mapa da savana.
Mas também estas paragens remotas atraíam alguns brancos, portugueses. Por exemplo, num desses cantos remotos da savana que ao fim de quase 50 anos já não sou capaz de localizar, encontrei um cruzamento de duas estradas naquilo a que costumamos chamar «4 caminhos» onde se localizavam, frente a frente, duas cantinas de duas famílias do norte de Portugal. Num raio de muitos quilómetros, o vazio total mas ali, à distância de não mais de 40 metros, duas cantinas que se guerreavam na mais aguerrida e absurda concorrência.
Voltando aos indianos, há que referir o facto de muitos deles se terem alcandorado aos mais altos postos da Administração Pública moçambicana tanto antes como depois da independência. Mais subiram a cargos governativos também antes e depois da dita independência.
A perspectiva religiosa é determinante em muitas circunstâncias da vida. Assim, por exemplo, consta que Fundação Aga Khan financia sem juros (parece que o Corão proíbe a cobrança de juros num versículo que não localizei) o capital inicial para que os seus fiéis se estabeleçam economicamente mas os beneficiados ficam a pagar uma amortização anual vitalícia.
A comunidade ismaelita dispõe em Lourenço Marques/Maputo de um centro cívico, religioso e administrativo de grande relevo equivalente ao que, entretanto, foi erigido em Lisboa. Comunidade laboriosa e empreendedora, nunca se ouviu dizer que os seus membros se envolvessem nas quezílias típicas de outras facções muçulmanas.   * * *
A título de curiosidade, o Príncipe Aga Khan decidiu instalar em Lisboa a sua sede mundial pelo que nós, os lisboetas, nos orgulhamos de termos connosco o «Vaticano do Aga Khan».   * * *
Voltando a Moçambique, poderia ainda falar dos chineses se deles houvesse alguma coisa de especial a dizer. Que eu saiba, não há. Primavam pela discrição e quase me apetece especular hoje sobre se esses relativamente poucos que por lá havia não seriam a «guarda avançada» para a invasão futura, quando fosse o tempo de cobrar a factura pela ajuda dada aos movimentos de guerrilha contra os portugueses. Mas isso é só especulação minha. O esbulho actual das riquezas moçambicanas por empresas chinesas é uma mera coincidência.
Feito um périplo muito genérica pela antropologia moçambicana naqueles finais da época colonial, voltamos a Lourenço Marques já na próxima edição. Até logo!
COMENTÁRIOS
Henrique Salles da Fonseca, 31.07.2019: E assim me vou instruindo Helena Salazar Antunes Morais
Anónimo, 31.07.2019: Apenas para ilustrares o que escreves nesta tua crónica, cito o Prakaschi Ratial, já referido num comentário meu a uma das tuas crónicas, que foi Governador do Banco de Moçambique, e que era meu colega do Banco de Fomento, bem como o Abdool Karim Vakil, de que me orgulho de ser amigo desde 1961 (fazem 58 anos!...), cuja Família era dona da Casa de Coimbra, em Lourenço Marques, a fazer lembrar, à escala reduzida, os Armazéns Chiado ou Grandela, e que tem sido um influente líder da comunidade islâmica em Portugal. Um abraço, Henrique. Carlos Traguelho
Adriano Lima, 31.07.2019: Este texto é ilustrativo e instrutivo sobre a composição do mosaico social de Moçambique. Pelo que conheci de Moçambique, concordo com o que é dito. "Os indianos residentes em Moçambique foram metidos em campos de concentração para daí serem expulsos, perdendo todas as suas propriedades em território português… a menos que renunciassem à nacionalidade indiana". Decisão execrável e incompreensível, mas compaginável com a política salazarista.
Anónimo, 31.07.2019: Com a eventual autorização do autor deste Blogue, gostaria de fazer um ligeiro comentário aos adjectivos "execrável" e "incompreensível" utilizados pelo leitor Senhor Adriano Lima, com os quais classifica a decisão salazarista. Não questionando minimamente o sentimento expresso, quero apenas recordar o contexto e a conjuntura em que aquela decisão foi tomada. Portugal considerou a invasão do chamado Estado da Índia como um acto de guerra e daí aquela atitude. Sei que quando o Governo Português de Afonso Costa teve autorização inglesa para declarar guerra à Alemanha, na 1ª Guerra Mundial, apresámos, em acto contínuo, navios alemães que estavam em nossos portos. Infelizmente, desconheço (ou já soube e não retive) o que fizemos em relação a alemães que viviam, então, em Portugal. Mas não estranharia que tivessem sido expulsos com perda de bens a favor do País. Possivelmente, tudo isso teria respaldo no Direito Internacional, em caso de beligerância, a título de compensação de prejuízos decorrentes da guerra. Já agora acrescento algo, para vosso conhecimento. Aquando da invasão em 1961, o Gerente da Sucursal do Banco Nacional Ultramarino naquele Estado enviou para Portugal todas as reservas monetárias do Banco bem como o conteúdo dos cofres particulares. Só muito tempo depois, algures entre 1990 e 1992, era embaixador extraordinário (não de carreira) de Portugal na União Indiana o ex-jornalista Guerra (não me recordo do outro nome), era Primeiro Ministro o Prof. Cavaco Silva e era Presidente da República o Dr. Mário Soares, procedeu-se à devolução do conteúdo dos cofres particulares a quem demonstrasse que seria legítimo proprietário. Foi o último escolho para se normalizarem as relações entre os dois países. Afastou-se o "irritante", como hoje se diria. Estava eu na altura na Administração do BNU. E para cúmulo da ironia, a pessoa do Banco que foi encarregada de coordenar o processo de devolução foi um Assessor do Conselho de Administração, que não era mais nem menos do que o ex-gerente que, em 1961, havia enviado os bens (essencialmente jóias) para a Sede do Banco. Carlos Traguelho
 Francisco G. de Amorim  31.07.2019: Ainda por lá andei um pouco mais: Abril 71 a Novembro 74. E lembro tanta história... !

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