Dois textos que se complementam, o
segundo, de VPV,
exemplificando algumas das tiradas retóricas arrasadoras do “cá dentro” do 1º texto – de AG – além de outras perturbações políticas
fora do âmbito nacional que o seu saber de historiador objectiva, num
conta-gotas clarificador. Um encanto de leituras, o primeiro texto provocando os
habituais enxovalhos dos que se sentem atingidos, pelo rigor aprimorado das
verdades ditas, hélas!.
I - CRÓNICA: I love Portugal /premium
ALBERTO
GONÇALVES OBSERVADOR,10/8/2019
Os portugueses lúcidos, coitados, padecem
da esperança de que os portugueses restantes acordem para as delícias da
liberdade. Sucede que para os simplórios a liberdade não é deliciosa: é uma
ameaça.
E
há o Estado a realizar
sondagens eleitorais a funcionários públicos com dinheiro e logística
igualmente públicos, na presunção, provavelmente justificada, de que tudo o que
nos confiscam pertence aos gangues que se apoderaram disto. E há o governo, um governo habituadíssimo a silenciar
dissidências, a ameaçar com a tropa qualquer esboço de insubordinação que não
seja organizado por estalinistas. E há
os estalinistas, os leninistas, os carteiristas e os fascistas afins a
calarem os resmungos hipócritas a troco de poder, e da licença para que
estendam o seu manto escuro sobre nós. E
há a vasta e densa rede de corrupção que os socialistas instalaram por
aí, plena de devoção aos valores da família, da amizade e do descaramento em
geral. E há as vítimas do sagrado
serviço nacional de saúde, que felizmente morrem em recato. E há os milhões que não se gastam
a combater doenças gastos em negociatas, compadrios, golas de poliéster e
“impulsos” para a “concretização” da “igualdade de género”. E há os incêndios, cuja dimensão e recorrência deveriam
denunciar as inúmeras fraudes subjacentes, e que, em vez disso, concedem uma
oportunidade para culpar as “alterações climáticas”, os eucaliptos e a
“direita”. E há as televisões repletas de propaganda, agora tão
escancarada que já permite um programa chamado, sem ponta de ironia ou
amargura, “I Love Portugal”. E há “a
geração mais informada de sempre”, que do alto de uma admirável
ignorância simpatiza com o PAN ou com o BE como noutros tempos menos
informativos alinharia na juventude fardada que estivesse à mão. E há uma economia alicerçada no saque
rápido e na irresponsabilidade lenta, que cumpre, um por um, os
requisitos essenciais à nova bancarrota que se aproxima. E há benefícios fiscais, e uns trocos para a camioneta, aos
emigrantes que abandonem as Alemanhas e as Inglaterras e regressem a esta
maravilhosa experiência venezuelana. E
há o belo sorriso do dr. Costa, representativo de milhares de sorrisos
assim, próprios de quem manda e, melhor, de quem sabe que manda sob completa
impunidade. E há uma oposição que
abdicou de desempenhar o papel por sonhar em mandar também, um bocadinho
pequenininho que seja. E há, nos
“media” e nos gabinetes, resmas de serviçais de segunda e terceira linhas amestrados
para a exaltação dos chefes. E há um
ex-animador televisivo, hoje rebaixado a presidente, que confessa
experimentar “gozo espiritual” por o país ser “um sucesso”, e já não “uma
incógnita e uma dúvida”.
Se
cada um vai buscar o gozo onde calha,
a verdade é que o país nunca constituiu uma incógnita ou suscitou dúvidas: o
país é isto. E isto não caiu do céu, nem sequer subiu dos infernos. Isto é o que temos e somos, é a nossa natureza e, para
usar uma palavra horrível, a nossa “identidade”. Portugal, meus
caros concidadãos, não dá para mais. Dá para bola. Subsídios. Enchidos. Bola.
Wi-Fi. Ecopontos. Bola. Via Verde. Netbanco. Bola. Grândolas. Parlapatice.
Bola. Fundos europeus. Fundilhos paroquiais. Bola. Festivais. Chefs. Bola.
Praia. Proactividade. Bola. Romarias. Sol (que é tão bonito). Bola. Rendimentos
mínimos. Rendimentos máximos. Bola. Cabeçudos. Barrigudos. Bola. Rotundas.
Penduricalhos. Bola. Comes. Bebes. Bola. Activistas. Ambientalistas. Bola.
Irreverência. Reverência. Bola. Certames. Multiusos. Bola. E indiferença, até
gozo, espiritual ou não, em ser enxovalhado pelos laparotos que se apoderaram
deste curioso cantinho porque quiseram, e sobretudo porque puderam.
Aos
poucos, convenço-me de que não se trata de acaso. Existe nos portugueses uma
genuína propensão para chafurdar na fancaria, apreciar a fancaria, fazer da
fancaria um roteiro e uma “agenda”. Claro que o lixo abunda em toda a parte. Em quase toda a parte, porém, não faltam
alternativas ao lixo, enclaves de civilização ou vigor ou graça que resistem ao
obscurantismo e à boçalidade. Aqui, porém, o lixo parece avançar sem
obstáculos. Parece o verdadeiro desígnio colectivo. Parecemos estúpidos.
Seremos? Embora não seja adepto de teorias da conspiração, que são a História
contada por pantomineiros, acontece questionar-me se, há largos séculos, os
illuminati da época não conspiraram para reunir tontinhos, masoquistas e
desequilibrados em geral num território a que chamaram Portugal. A ideia era
estudar-nos, mas ainda não conseguiram parar de rir.
É evidente que muitos portugueses não
são idiotas. O problema é que mesmo a maioria dos portugueses lúcidos acredita,
não imagino porquê, que a desgraça actual é provisória, e que tivemos um
passado luminoso e teremos um futuro redentor. Os portugueses lúcidos,
coitados, padecem de saudade e, pior, de esperança, a esperança de que os
portugueses restantes, com o pescoço na trela e o olhar no chão, acordem para
as delícias da liberdade, essencial à vida adulta. Sucede que para os
simplórios a liberdade não é deliciosa: é uma ameaça ou, no mínimo, um risco
escusado. Enquanto brincam no recreio,
os simplórios gostam que alguém tome conta deles. Com sorte, e uns arremedos de
manha, um dia eles tomarão conta de nós. É preciso dar exemplos?
II- OPINIÃO: Diário
“Admirem-se, depois, se António Costa
chegar à maioria absoluta. Já era o homem das ‘boas contas’ e agora é também o
homem da ‘ordem’”, escreve Vasco Pulido Valente
VASCO PULIDO VALENTE
PÚBLICO, 10 de Agosto de 2019
Em
Agosto há sempre uma erupção de cantores, de bandas e de festivais que me deixa
estupefacto. E com inveja. No meu tempo só existiam as “festas” – vigiadas –
nas garagens dos vizinhos de praia; e os acampamentos da Mocidade Portuguesa.
4 de Agosto: Deus me
perdoe, mas
sinceramente a matança de El Paso e a de Dayton estão a ser pretexto
para um repugnante espectáculo de sentimentalismo. Toda a gente me diz que é o
ar do tempo. Mau tempo. De qualquer maneira, nunca vi uma caça às bruxas tão
exemplar como a da CNN a Trump. Não digo que Trump não se tenha posto a jeito,
só que a manifesta desonestidade do jornalismo da elite cosmopolita,
supostamente equânime e moral, foi desde o princípio uma vituperação sem nome.
5 de Agosto: Vários comentadores dos massacres de El Paso e
Daytona acabaram por reconhecer contrariadamente que a atmosfera política da
América é uma atmosfera de “guerra civil”. Mas não explicaram de que “guerra
civil” se trata. Ora ela está à vista: é entre a América branca,
anglo-saxónica e protestante e a América castanha, espanhola e católica.
Não vale a pena banir o “discurso de ódio” se o ódio continuar vivo. A derrota
de Trump em 2020 pode ser um princípio, mas não é com certeza um fim.
6 de Agosto: Não sei se o oleoso e bem-falante advogado dos
motoristas de Matérias Perigosas, Pedro Pardal Henriques, tem alguma experiência
política. Se tem, devia perceber uma evidência: nenhum
governo pode permitir que ele e o seu sindicato façam chantagem com o país.
António
Costa já mostrou, na questão dos professores, que não iria por esse caminho.
E Marcelo acabou de lhe dar um apoio público.
Ainda
me lembro da guerra do partido Conservador e do partido Trabalhista contra a
TUC. Quem acabou por resolver o problema foi a sra.
Thatcher, obrigando os mineiros a renderem-se. Espero não tornar a assistir
a esse fim desconsolador.
7 de Agosto: O
governo estabeleceu os serviços mínimos dos motoristas de Matérias Perigosas; e
decretou o estado de “emergência energética”. O dr. Pardal Henriques
declarou que tinha vergonha de ser português; que estávamos a viver em
ditadura; e que o governo não passava de um serventuário das transportadoras e
das petrolíferas. Os serviços mínimos, disse ele, eram um “atentado” e uma
“barbaridade”. O homem está fora de pé. Antigamente havia muitos como ele:
advogados dos camponeses que infestaram o parlamento desde 1820.
8 de Agosto: Parece que o dr. Pardal Henriques vai ser
candidato a deputado pelo partido de Marinho e Pinto. Estão bons um para o
outro.
O
CDS resolveu aproveitar a oportunidade para pedir a revisão da lei da greve:
uma tristíssima figura. Admirem-se,
depois, se António Costa chegar à maioria absoluta. Já era o homem das “boas
contas” e agora é também o homem da “ordem”.
Colunista
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