É Álvaro de Campos que na sua ODE TRIUNFAL, canta as
delícias da civilização industrial, com todos os ruídos e violências embrutecedores
que transportam o homem – o Poeta – para os
extremos de uma felicidade poderosa e totalmente alienante, com que destrói o
conceito clássico do Belo e da Harmonia - no conceito como na sintaxe
poética - e se torna a quintessência do Primeiro
Modernismo. Os tempos que vivemos hoje são outros, de muito ruído também,
escutado constantemente nos discursos políticos ou de lazer, que afinal são
todos eles: já ninguém emprega o “vai haver”
mas o “vão haver” de boca cheia, dos
erros, sim, mas também dos euros de um empréstimo que não encaramos a sério mas “à séria”, na nossa penúria de escrúpulos e abundância de ruído e
diversão.
E nele, nesse “à séria” desapiedado, que talvez o Acordo contemple - nem vale a pena averiguar -
se integra este tal AO90, considerado
por ANTÓNIO JACINTO PASCOAL, como “uma
grande burla”, que o Senhor Ministro
dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Augusto Santos Silva, ratifica
sem justificar. Ponto assente, de um governo assente, segundo o lema do quem
pode, pode.
Tal como outrora Álvaro de Campos, poderíamos retomar, pois, não
triunfalmente mas raivosamente, nós, os desconcertados, os versos iniciais da sua
ODE TRIUNFAL: "À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica, Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes..."
Mas não somos ninguém, para que valesse a pena.
Mas não somos ninguém, para que valesse a pena.
OPINIÃO: Acordo Ortográfico: não há como
uma grande burla!
Ainda faz sentido corrigir
ortograficamente os textos dos alunos? Ou, de forma mais simples: o que fez com
que se aceitasse tão pacificamente esta aberração nas escolas?
ANTÓNIO JACINTO PASCOAL PÚBLICO, 3
de Agosto de 2019, 15:30
É,
com alguma probabilidade, o episódio mais recente sobre o assunto: o
jornalista Nuno Pacheco do jornal Público (e autor do também
recentíssimo Acordo
Ortográfico – Um Beco Com Saída,
da Gradiva) editou um artigo intitulado “O
Acordo Ortográfico ainda é uma caixinha de surpresas”,
pelo qual denuncia o modo enviesado e trapaceiro como se pretende, pelas
palavras do Ministro das Relações Exteriores do Brasil, calar as vozes
dissonantes brasileiras em relação ao Acordo Ortográfico (AO90), e se aponta ao
Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Augusto Santos Silva, uma
tentativa de obstrução à informação relativa ao AO90, decorrente do silêncio
face ao requerimento do coordenador e relator do Grupo de Trabalho para a
Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo (recordemos
que o requerimento da cópia integral dos instrumentos de ratificação do AO90
deu entrada no MNE no dia 14 de Junho de 2019, a pedido do deputado José Carlos
Barros). Ora, Santos
Silva reservou-se o direito de resposta, publicado
no dia 28 de Julho, no jornal Público, começando por referir
que «em nenhum momento, o Senhor Deputado se identificou como “coordenador e
relator do Grupo de Trabalho para a Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo
Ortográfico de 1990”».
Tratando-se de um esclarecimento público e munido o
ministro da informação para tratar o assunto como ele merece, afigura-se
no mínimo de mau gosto que o MNE assim se refira a um deputado da AR,
insinuando não ter o dever de obrigação de responder a figura não
identificável. Mas, pior do que isso é o
teor dessa resposta, no seu enunciado: “A resposta ao
Requerimento foi enviada no dia 18 de julho de 2019. Nesta resposta, o MNE
esclarece a razão por que aquelas cópias não poderiam ser facultadas”. E a partir daqui, vêm as razões, entre as
quais a de tratar-se de matéria não pertencente ao Estado Português (ainda
que seja estranho não ser possível aceder a matéria documental que, pertença de
outros Estados, diga respeito ao Estado Português e ao Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa) e a de os documentos deterem “natureza de documento
diplomático”. Ou seja, aquilo que é de natureza nacional e identitária (a
língua com que comunicamos) subordina-se à natureza diplomática.
Em suma, o MNE esclareceu que não pode esclarecer. Está, portanto, tudo
dito: o AO90 continuará a ser, para além de uma intrujice mal engendrada, um
segredo bem escondido. Tão bem escondido que ainda hoje se discute se está
verdadeiramente circunscrito à letra da Lei ou se, emergindo de uma Resolução
de Ministros, é para se ir “aplicando” conforme calha. Na realidade, a questão
foi de tal maneira politizada (e destituída da sua natureza científica) que,
como se sabe, foi necessário o Segundo Protocolo Modificativo que desbloqueasse
a implementação do Acordo Ortográfico com a ratificação de 3 países (Resolução
da Assembleia da República n.º 35/2008), uma vez que, inicialmente, se impunha
que a sua entrada em vigor pressupusesse a ratificação por parte dos 7 países
(o caso de Timor surgiu a posteriori).
Quanto àquilo que se passa por cá, mediante este
enquadramento legal, é de concluir que não há ortografia em Portugal. Senão vejamos: em alturas de
festivais de artes e de música, dei-me ao trabalho de apreciar três programas
informativos. O primeiro, respeitante ao 6º Festival Internacional de Música de Marvão, que optou pelo
Acordo Ortográfico de 1945, está impecavelmente vigiado por algum revisor
atento, que apenas concedeu o direito de uso do AO90 à Presidente de Câmara de
Portalegre (sobrevindo a excepção da Ministra da Cultura, Graça Fonseca,
que, optando também pelo Acordo Ortográfico de 1945, cai no lapso do vocábulo respetiva – isto, se é que o
seu texto não foi adulterado); o segundo, referente ao Festival dos Canais, de Aveiro, resulta numa algaraviada sem
regra (nas pp. 19 e 20, a título exemplar, convivem termos como objetos, colectivo, actuação,
exato); finalmente, o
terceiro, a dizer respeito ao 11º
Festival das Artes, Luz e Sombra, de Coimbra, começa por um intróito de Miguel
Júdice, que escreve segundo o novo acordo mas se assina Director, e
depois tudo se conjuga na mesmíssima miscelânea, que causaria dor de cabeça a
qualquer professor de Português (na página 7, por exemplo, surge o gracioso
par direção musical/direcção musical).
Para terminar, e porque tenho estranhado o silêncio de
muitos professores e em especial o dos professores de Português (apesar de
conhecer vários como enormes opositores ao AO90), questiono-me: ainda faz sentido corrigir ortograficamente os textos
dos alunos? Ou, de forma mais simples: o que fez com que se aceitasse tão
pacificamente esta aberração nas escolas? Bastaria ler as Bases do Acordo
para descortinar as suas fragilidades: “força da etimologia” (que é invocada em certas
situações, quando o AO90 faz tábua rasa dela), oscilação entre prolação e
emudecimento a justificar facultatividades,
excepções “consagradas pelo uso”, incongruência acentuada nas palavras
cognatas, duplas grafias em multiplicação imparável, carácter facultativo do
acento agudo, etc. e tal. Não imagino o que possa acontecer no dia 13 de
Agosto, no Brasil, mas seria de uma ironia saborosa sermos salvos por um
pequeno milagre vindo do outro lado do mar, já que aqui, agora por mão de um
Governo socialista (não esqueçamos que a bancada
socialista foi também a única a abster-se em relação ao projecto de resolução
do PCP, a recomendar ao Governo a classificação da obra de José Afonso de
interesse nacional), nos arriscamos a roçar o absurdo da língua.
Professor e escritor
Pequeno passo de apoio:
ODE
TRINFAL – Álvaro de Campos
… Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao
fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao
ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo
isso apaga tudo, salvo o Momento,
O
Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O
Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O
Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do
ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos,
mínimos, Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
/ Eia electricidade, nervos
doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do
Inconsciente!
Eia
túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia
todo o passado dentro do presente!
Eia
todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia!
eia! eia!
Frutos
de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia!
eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem
sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me
em todos os comboios.
Içam-me
em todos os cais.
Giro
dentro das hélices de todos os navios.
Eia!
eia-hô! eia! / Eia! sou o calor
mecânico e a electricidade! …
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