sábado, 3 de agosto de 2019

Hoje o ruído é outro



É Álvaro de Campos que na sua ODE TRIUNFAL, canta as delícias da civilização industrial, com todos os ruídos e violências embrutecedores que transportam o homem – o Poeta – para os extremos de uma felicidade poderosa e totalmente alienante, com que destrói o conceito clássico do Belo e da Harmonia - no conceito como na sintaxe poética - e se torna a quintessência do Primeiro Modernismo. Os tempos que vivemos hoje são outros, de muito ruído também, escutado constantemente nos discursos políticos ou de lazer, que afinal são todos eles: já ninguém emprega o “vai haver” mas o “vão haver” de boca cheia, dos erros, sim, mas também dos euros de um empréstimo que não encaramos a sério mas “à séria”, na nossa penúria de escrúpulos e abundância de ruído e diversão.
E nele, nesse “à séria” desapiedado, que talvez o Acordo contemple - nem vale a pena averiguar - se integra este tal AO90, considerado por ANTÓNIO JACINTO PASCOAL, como “uma grande burla”, que o Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Augusto Santos Silva, ratifica sem justificar. Ponto assente, de um governo assente, segundo o lema do quem pode, pode.
Tal como outrora Álvaro de Campos, poderíamos retomar, pois, não triunfalmente mas raivosamente, nós, os desconcertados, os versos iniciais da sua ODE TRIUNFAL: "À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica, Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes..." 
Mas não somos ninguém, para que valesse a pena.
OPINIÃO: Acordo Ortográfico: não há como uma grande burla!
Ainda faz sentido corrigir ortograficamente os textos dos alunos? Ou, de forma mais simples: o que fez com que se aceitasse tão pacificamente esta aberração nas escolas?
ANTÓNIO JACINTO PASCOAL        PÚBLICO, 3 de Agosto de 2019, 15:30
É, com alguma probabilidade, o episódio mais recente sobre o assunto: o jornalista Nuno Pacheco do jornal Público (e autor do também recentíssimo Acordo Ortográfico – Um Beco Com Saída, da Gradiva) editou um artigo intitulado “O Acordo Ortográfico ainda é uma caixinha de surpresas, pelo qual denuncia o modo enviesado e trapaceiro como se pretende, pelas palavras do Ministro das Relações Exteriores do Brasil, calar as vozes dissonantes brasileiras em relação ao Acordo Ortográfico (AO90), e se aponta ao Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Augusto Santos Silva, uma tentativa de obstrução à informação relativa ao AO90, decorrente do silêncio face ao requerimento do coordenador e relator do Grupo de Trabalho para a Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo (recordemos que o requerimento da cópia integral dos instrumentos de ratificação do AO90 deu entrada no MNE no dia 14 de Junho de 2019, a pedido do deputado José Carlos Barros). Ora, Santos Silva reservou-se o direito de resposta, publicado no dia 28 de Julho, no jornal Público, começando por referir que «em nenhum momento, o Senhor Deputado se identificou como “coordenador e relator do Grupo de Trabalho para a Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico de 1990”».
Tratando-se de um esclarecimento público e munido o ministro da informação para tratar o assunto como ele merece, afigura-se no mínimo de mau gosto que o MNE assim se refira a um deputado da AR, insinuando não ter o dever de obrigação de responder a figura não identificável. Mas, pior do que isso é o teor dessa resposta, no seu enunciado: “A resposta ao Requerimento foi enviada no dia 18 de julho de 2019. Nesta resposta, o MNE esclarece a razão por que aquelas cópias não poderiam ser facultadas”. E a partir daqui, vêm as razões, entre as quais a de tratar-se de matéria não pertencente ao Estado Português (ainda que seja estranho não ser possível aceder a matéria documental que, pertença de outros Estados, diga respeito ao Estado Português e ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa) e a de os documentos deterem “natureza de documento diplomático”. Ou seja, aquilo que é de natureza nacional e identitária (a língua com que comunicamos) subordina-se à natureza diplomática.
Em suma, o MNE esclareceu que não pode esclarecer. Está, portanto, tudo dito: o AO90 continuará a ser, para além de uma intrujice mal engendrada, um segredo bem escondido. Tão bem escondido que ainda hoje se discute se está verdadeiramente circunscrito à letra da Lei ou se, emergindo de uma Resolução de Ministros, é para se ir “aplicando” conforme calha. Na realidade, a questão foi de tal maneira politizada (e destituída da sua natureza científica) que, como se sabe, foi necessário o Segundo Protocolo Modificativo que desbloqueasse a implementação do Acordo Ortográfico com a ratificação de 3 países (Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008), uma vez que, inicialmente, se impunha que a sua entrada em vigor pressupusesse a ratificação por parte dos 7 países (o caso de Timor surgiu a posteriori).
Quanto àquilo que se passa por cá, mediante este enquadramento legal, é de concluir que não há ortografia em Portugal. Senão vejamos: em alturas de festivais de artes e de música, dei-me ao trabalho de apreciar três programas informativos. O primeiro, respeitante ao 6º Festival Internacional de Música de Marvão, que optou pelo Acordo Ortográfico de 1945, está impecavelmente vigiado por algum revisor atento, que apenas concedeu o direito de uso do AO90 à Presidente de Câmara de Portalegre (sobrevindo a excepção da Ministra da Cultura, Graça Fonseca, que, optando também pelo Acordo Ortográfico de 1945, cai no lapso do vocábulo respetiva – isto, se é que o seu texto não foi adulterado); o segundo, referente ao Festival dos Canais, de Aveiro, resulta numa algaraviada sem regra (nas pp. 19 e 20, a título exemplar, convivem termos como objetos, colectivo, actuação, exato); finalmente, o terceiro, a dizer respeito ao 11º Festival das Artes, Luz e Sombra, de Coimbra, começa por um intróito de Miguel Júdice, que escreve segundo o novo acordo mas se assina Director, e depois tudo se conjuga na mesmíssima miscelânea, que causaria dor de cabeça a qualquer professor de Português (na página 7, por exemplo, surge o gracioso par direção musical/direcção musical).
Para terminar, e porque tenho estranhado o silêncio de muitos professores e em especial o dos professores de Português (apesar de conhecer vários como enormes opositores ao AO90), questiono-me: ainda faz sentido corrigir ortograficamente os textos dos alunos? Ou, de forma mais simples: o que fez com que se aceitasse tão pacificamente esta aberração nas escolas? Bastaria ler as Bases do Acordo para descortinar as suas fragilidades:força da etimologia” (que é invocada em certas situações, quando o AO90 faz tábua rasa dela), oscilação entre prolação e emudecimento a justificar facultatividades, excepções “consagradas pelo uso”, incongruência acentuada nas palavras cognatas, duplas grafias em multiplicação imparável, carácter facultativo do acento agudo, etc. e tal. Não imagino o que possa acontecer no dia 13 de Agosto, no Brasil, mas seria de uma ironia saborosa sermos salvos por um pequeno milagre vindo do outro lado do mar, já que aqui, agora por mão de um Governo socialista (não esqueçamos que a bancada socialista foi também a única a abster-se em relação ao projecto de resolução do PCP, a recomendar ao Governo a classificação da obra de José Afonso de interesse nacional), nos arriscamos a roçar o absurdo da língua.
Professor e escritor
Pequeno passo de apoio:
ODE TRINFAL – Álvaro de Campos
… Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos, Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!   /   Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!    / Eia! sou o calor mecânico e a electricidade! …

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