O texto de António Barreto, a respeito das quotas de acesso ao
ensino universitário é de tal modo pertinente, que qualquer comentário, dos
colocados, esclarece sobre a injustiça fraudulenta e boçalmente bajuladora que
elas pressupõem, culminando na referência à proposta de humildade e rebaixamento abjectos do
CDS, da justa indignação de A.B. Ao que se
chegou em termos de mediocridade, na competição pela virtude, em defesa dos menos
afortunados! Lembro uma “Irmã Maria”, num Patronato onde me acolitei para
estudos universitários, que nunca tomara banho na vida, (adulta, creio), porque
era pecado contemplar o corpo. Tudo menos contemplar as questões do saber, no
apoio "fraterno" aos menos contemplados nas questões da fortuna…
OPINIÃO
As quotas
A correcção da injustiça não se faz com a criação de uma nova
injustiça, nem com a destruição de um valor, o da ciência e da cultura.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 4 de Agosto de 2019
Em
1960, as mulheres eram 29% do total de estudantes no Ensino Superior. Agora são
54%.
Em
1960, as mulheres eram 24% do total de licenciaturas obtidas nas universidades
portuguesas. Em 2018, as mulheres representaram cerca de 59% dos diplomados do
ensino superior.
Em
1970, os doutoramentos defendidos por mulheres representaram cerca de 7% do
total. São hoje mais de 55%.
Actualmente,
as mulheres obtêm os seus diplomas de ensino superior em menos tempo do que os
homens.
Tudo
isto se obteve sem quotas nem qualquer outra forma de discriminação positiva.
Uns
dirão que foi o capitalismo, a fim de melhor explorar os trabalhadores. Há quem
garanta que o patronato foi obrigado a recorrer às mulheres, por causa da falta
de homens. Outros dizem que foram os homens que, assim, exploram as mulheres
duas vezes, em casa e no trabalho. Não falta quem diga que tudo isto se
ficou a dever aos homens e à democracia, unidos na promoção das mulheres. E
podemos ainda contar com os defensores das políticas educativas que conduziram
a esta situação. Também há quem assegure que tudo se deve aos movimentos
feministas. São todas excelentes explicações. Certo e seguro é que aqueles
resultados se devem, não a quotas, mas simplesmente ao trabalho das mulheres.
Quotas, preferências e regimes ou
concursos especiais para chegar ao ensino superior já existem abundantemente.
Residentes nos Açores e na Madeira, emigrantes portugueses no estrangeiro,
contratados e permanentes das Forças Armadas, diplomatas no estrangeiro,
bolseiros e funcionários a servir no estrangeiro, cidadãos dos países africanos
no quadro de acordos de cooperação, bolseiros dos PALOP, funcionários
estrangeiros de missões diplomáticas em Portugal, atletas de alta competição,
deficientes e naturais ou filhos de naturais de Timor-Leste beneficiam de
estatutos que lhes conferem facilidades, dispensa de notas mínimas ou isenção
de provas para ingressar nas Universidades. No total, cerca de 30% dos
candidatos são assim admitidos.
Discute-se
agora mais uma hipótese: a de criar quotas para as minorias africana e cigana.
O debate corre os seus trâmites, tendo já dado origem a polémica acesa no espaço
público. É uma infeliz via esta, a de aumentar o número de quotas e
de regimes especiais, de favor e de privilégio. Obrigar à admissão de minorias
étnicas ou de grupos raciais é uma das más invenções das fragmentadas
sociedades contemporâneas. Os avanços da cidadania democrática
e da igualdade estão constantemente a ser combatidos pelas tendências
corporativas e cartelizadas dos grupos políticos e de interesses que não
hesitam em recorrer às vias do despotismo legal para impor novas formas
de apartheid multicultural. Verdade é que a fragmentação racial sob
qualquer forma é racista.
O
caso da “minoria africana” é particularmente sensível. Sobretudo porque dá
origem aos maiores mal-entendidos. Árabe, beduíno, berbere, mouro, bóer, branco
e indiano de vários países de África são africanos ou quê? E por que razão se
deveria criar quotas para africanos, de uma só ou de várias cores, e não para
os chineses, brasileiros, nepaleses, paquistaneses, ucranianos e outras
minorias presentes em Portugal?
É
verdade que há numerosos grupos de pessoas, com ou sem estigma racial, com
desfavor familiar ou social, sem meios económicos ou culturais, com muitas
outras insuficiências ou deficiências e que têm dificuldades em aceder aos bens
imateriais, à cultura, à educação, à formação profissional e a outras formas de
promoção pessoal. Conceder-lhes sistemas de favor, consagrados pela lei e
traduzidos em quotas de privilégio, é sempre um gesto de paternalismo indigno
que desnatura o essencial das instituições de ensino e formação. É enorme
a injustiça que reside na eliminação de umas centenas ou milhares de candidatos
que reuniriam as condições de admissão à universidade mas que são eliminados
para poderem entrar os dos regimes de favor em nome da bondade. Eliminar
candidatos médios a benefício de maus candidatos favorecidos pela etnia, pela
profissão dos pais ou pela região de origem é profundamente injusto, despótico,
corporativo e oportunista. Os fanáticos da engenharia social e política não se
dão conta de quanto são racistas.
Os
grupos desfavorecidos podem e devem ser apoiados por todos os meios existentes
que não ferem princípios fundamentais de justiça, de igualdade e de mérito.
Mais úteis do que as famigeradas quotas e do que a traiçoeira discriminação
positiva são os apoios, bolsas de estudo, incentivos, explicações, ajudas para
alimentação e alojamento oferecidos por fundações, misericórdias, cultos,
associações, autarquias e empresas. Assim se podem concretizar todos os apoios
justos e devidos a indivíduos e a comunidades regionais, religiosas, étnicas ou
nacionais!
A universidade não é um direito de todos, é um mérito alcançado com
trabalho e esforço. É algo
que se obtém com merecimento. É um bem raro e caro que deve ser valorizado por
quem o merece, por quem dele faz um instrumento de desenvolvimento pessoal, da
arte e do saber. A correcção das injustiças sociais que resultam da
desigualdade económica não deve ser feita através da destruição do que mais
importa numa instituição de ensino superior: o mérito que resulta do esforço. A correcção da injustiça faz-se através do fornecimento
de meios aos que querem esforçar-se e lutar pelo saber e pela formação. A
correcção da injustiça não se faz com a criação de uma nova injustiça, nem com
a destruição de um valor, o da ciência e da cultura.
O debate sobre as quotas no acesso ao ensino superior foi
recentemente enriquecido por uma proposta do CDS: os candidatos que, por falta
de mérito e de nota, fossem eliminados, poderiam
comprar o seu lugar. Isto é, seriam equiparados a estrangeiros que pagam
elevadas propinas. O absurdo desta proposta é tal que quase impede que seja
discutida serenamente. Como é possível imaginar que seja permitido comprar um
lugar na universidade? É tão ou mais chocante do que as políticas racistas que
promovem ou dificultam o acesso de grupos étnicos. Portugal necessita de
políticas que promovam os melhores e os mais capazes de todas as classes e de
todas as etnias, não as que tentam criar e preservar privilégios. Brancos ou
negros. Ou assim-assim.
Sociólogo
COMENTÁRIOS
Nortuguês, AlémCREL: Muito bem!
Cláudia Mealha, Lisboa 04.08.2019: Excelente texto! Concordo em absoluto!
manuel.m2, 04.08.2019: A correcção de uma injustiça, a humildade do nascimento
ou sexo, diz o autor, não se corrige com nova injustiça que seria beliscar os
privilégios de se ter nascido homem e numa família culta com bom nível de vida.
No país onde vivo rebentou recentemente um escândalo, a propósito da
discriminação salarial praticada pela BBC entre homens e mulheres desempenhando
iguais funções. No Partido onde milito, e numa reunião com grande participação,
foi eleito candidato para as próximas eleições Ali Milani, Paquistanês e
Muçulmano, que irá tentar derrotar nas urnas o infelizmente actual Primeiro
Ministro Boris Johnson. Na lista para o Comité Nacional Executivo existe uma
quota a ser preenchida por pertencentes ao BAME, (Black, Asian, Ethnic
Minorities). Mas estas são, é claro, posições de Esquerda.
José Cruz Magalhaes, Lisboa 04.08.2019: "A universidade não é um direito de todos, é um
mérito alcançado com trabalho e esforço. É algo que se obtém com merecimento. É
um bem raro e caro que deve ser valorizado por quem o merece, por quem dele faz
um instrumento de desenvolvimento pessoal, da arte e do saber. "Este
parágrafo, concentra, tudo, quanto deveríamos ter presente quanto, lemos, ouvimos
ou comentamos, acerca da matéria que o artigo aborda.
Carlos Soares Paris 04.08.2019 Muito, mas muito, bem António Barreto!
agany, Setúbal 04.08.2019: Por este andar, qualquer dia, precisamos de aumentar
as quotas para os homens...
FPS,
Vale de Santarém 04.08.2019: Completamente de acordo com António Barreto,
cuja visão se pauta pelo desenvolvimento, pela justiça e liberdade. Sejamos
optimistas, que foi assim que as mulheres chegaram aos 55% em doutoramentos
(imagine-se o que para aí se gritaria, fossem impostas quotas para compensar os
homens desta "injustiça"...).
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva
Beira Alta04.08.2019: Excelente, é
isto mesmo!
Nenhum comentário:
Postar um comentário