segunda-feira, 5 de agosto de 2019

A megalomania afectiva na base da trafulhice intelectual



O texto de António Barreto, a respeito das quotas de acesso ao ensino universitário é de tal modo pertinente, que qualquer comentário, dos colocados, esclarece sobre a injustiça fraudulenta e boçalmente bajuladora que elas pressupõem, culminando na referência à proposta de humildade e rebaixamento abjectos do CDS, da justa indignação de A.B. Ao que se chegou em termos de mediocridade, na competição pela virtude, em defesa dos menos afortunados! Lembro uma “Irmã Maria”, num Patronato onde me acolitei para estudos universitários, que nunca tomara banho na vida, (adulta, creio), porque era pecado contemplar o corpo. Tudo menos contemplar as questões do saber, no apoio "fraterno" aos menos contemplados nas questões da fortuna…
OPINIÃO
As quotas
A correcção da injustiça não se faz com a criação de uma nova injustiça, nem com a destruição de um valor, o da ciência e da cultura.
ANTÓNIO BARRETO
PÚBLICO, 4 de Agosto de 2019
Em 1960, as mulheres eram 29% do total de estudantes no Ensino Superior. Agora são 54%.
Em 1960, as mulheres eram 24% do total de licenciaturas obtidas nas universidades portuguesas. Em 2018, as mulheres representaram cerca de 59% dos diplomados do ensino superior.
Em 1970, os doutoramentos defendidos por mulheres representaram cerca de 7% do total. São hoje mais de 55%.
Actualmente, as mulheres obtêm os seus diplomas de ensino superior em menos tempo do que os homens.
Tudo isto se obteve sem quotas nem qualquer outra forma de discriminação positiva.
Uns dirão que foi o capitalismo, a fim de melhor explorar os trabalhadores. Há quem garanta que o patronato foi obrigado a recorrer às mulheres, por causa da falta de homens. Outros dizem que foram os homens que, assim, exploram as mulheres duas vezes, em casa e no trabalho. Não falta quem diga que tudo isto se ficou a dever aos homens e à democracia, unidos na promoção das mulheres. E podemos ainda contar com os defensores das políticas educativas que conduziram a esta situação. Também há quem assegure que tudo se deve aos movimentos feministas. São todas excelentes explicações. Certo e seguro é que aqueles resultados se devem, não a quotas, mas simplesmente ao trabalho das mulheres.
Quotas, preferências e regimes ou concursos especiais para chegar ao ensino superior já existem abundantemente. Residentes nos Açores e na Madeira, emigrantes portugueses no estrangeiro, contratados e permanentes das Forças Armadas, diplomatas no estrangeiro, bolseiros e funcionários a servir no estrangeiro, cidadãos dos países africanos no quadro de acordos de cooperação, bolseiros dos PALOP, funcionários estrangeiros de missões diplomáticas em Portugal, atletas de alta competição, deficientes e naturais ou filhos de naturais de Timor-Leste beneficiam de estatutos que lhes conferem facilidades, dispensa de notas mínimas ou isenção de provas para ingressar nas Universidades. No total, cerca de 30% dos candidatos são assim admitidos.
Discute-se agora mais uma hipótese: a de criar quotas para as minorias africana e cigana. O debate corre os seus trâmites, tendo já dado origem a polémica acesa no espaço público. É uma infeliz via esta, a de aumentar o número de quotas e de regimes especiais, de favor e de privilégio. Obrigar à admissão de minorias étnicas ou de grupos raciais é uma das más invenções das fragmentadas sociedades contemporâneas. Os avanços da cidadania democrática e da igualdade estão constantemente a ser combatidos pelas tendências corporativas e cartelizadas dos grupos políticos e de interesses que não hesitam em recorrer às vias do despotismo legal para impor novas formas de apartheid multicultural. Verdade é que a fragmentação racial sob qualquer forma é racista.
O caso da “minoria africana” é particularmente sensível. Sobretudo porque dá origem aos maiores mal-entendidos. Árabe, beduíno, berbere, mouro, bóer, branco e indiano de vários países de África são africanos ou quê? E por que razão se deveria criar quotas para africanos, de uma só ou de várias cores, e não para os chineses, brasileiros, nepaleses, paquistaneses, ucranianos e outras minorias presentes em Portugal?
É verdade que há numerosos grupos de pessoas, com ou sem estigma racial, com desfavor familiar ou social, sem meios económicos ou culturais, com muitas outras insuficiências ou deficiências e que têm dificuldades em aceder aos bens imateriais, à cultura, à educação, à formação profissional e a outras formas de promoção pessoal. Conceder-lhes sistemas de favor, consagrados pela lei e traduzidos em quotas de privilégio, é sempre um gesto de paternalismo indigno que desnatura o essencial das instituições de ensino e formação. É enorme a injustiça que reside na eliminação de umas centenas ou milhares de candidatos que reuniriam as condições de admissão à universidade mas que são eliminados para poderem entrar os dos regimes de favor em nome da bondade. Eliminar candidatos médios a benefício de maus candidatos favorecidos pela etnia, pela profissão dos pais ou pela região de origem é profundamente injusto, despótico, corporativo e oportunista. Os fanáticos da engenharia social e política não se dão conta de quanto são racistas.
Os grupos desfavorecidos podem e devem ser apoiados por todos os meios existentes que não ferem princípios fundamentais de justiça, de igualdade e de mérito. Mais úteis do que as famigeradas quotas e do que a traiçoeira discriminação positiva são os apoios, bolsas de estudo, incentivos, explicações, ajudas para alimentação e alojamento oferecidos por fundações, misericórdias, cultos, associações, autarquias e empresas. Assim se podem concretizar todos os apoios justos e devidos a indivíduos e a comunidades regionais, religiosas, étnicas ou nacionais!
A universidade não é um direito de todos, é um mérito alcançado com trabalho e esforço. É algo que se obtém com merecimento. É um bem raro e caro que deve ser valorizado por quem o merece, por quem dele faz um instrumento de desenvolvimento pessoal, da arte e do saber. A correcção das injustiças sociais que resultam da desigualdade económica não deve ser feita através da destruição do que mais importa numa instituição de ensino superior: o mérito que resulta do esforço. A correcção da injustiça faz-se através do fornecimento de meios aos que querem esforçar-se e lutar pelo saber e pela formação. A correcção da injustiça não se faz com a criação de uma nova injustiça, nem com a destruição de um valor, o da ciência e da cultura.
O debate sobre as quotas no acesso ao ensino superior foi recentemente enriquecido por uma proposta do CDS: os candidatos que, por falta de mérito e de nota, fossem eliminados, poderiam comprar o seu lugar. Isto é, seriam equiparados a estrangeiros que pagam elevadas propinas. O absurdo desta proposta é tal que quase impede que seja discutida serenamente. Como é possível imaginar que seja permitido comprar um lugar na universidade? É tão ou mais chocante do que as políticas racistas que promovem ou dificultam o acesso de grupos étnicos. Portugal necessita de políticas que promovam os melhores e os mais capazes de todas as classes e de todas as etnias, não as que tentam criar e preservar privilégios. Brancos ou negros. Ou assim-assim.
Sociólogo
COMENTÁRIOS
Nortuguês, AlémCREL: Muito bem!
Cláudia Mealha, Lisboa 04.08.2019: Excelente texto! Concordo em absoluto!
manuel.m2, 04.08.2019: A correcção de uma injustiça, a humildade do nascimento ou sexo, diz o autor, não se corrige com nova injustiça que seria beliscar os privilégios de se ter nascido homem e numa família culta com bom nível de vida. No país onde vivo rebentou recentemente um escândalo, a propósito da discriminação salarial praticada pela BBC entre homens e mulheres desempenhando iguais funções. No Partido onde milito, e numa reunião com grande participação, foi eleito candidato para as próximas eleições Ali Milani, Paquistanês e Muçulmano, que irá tentar derrotar nas urnas o infelizmente actual Primeiro Ministro Boris Johnson. Na lista para o Comité Nacional Executivo existe uma quota a ser preenchida por pertencentes ao BAME, (Black, Asian, Ethnic Minorities). Mas estas são, é claro, posições de Esquerda.
José Cruz Magalhaes, Lisboa 04.08.2019: "A universidade não é um direito de todos, é um mérito alcançado com trabalho e esforço. É algo que se obtém com merecimento. É um bem raro e caro que deve ser valorizado por quem o merece, por quem dele faz um instrumento de desenvolvimento pessoal, da arte e do saber. "Este parágrafo, concentra, tudo, quanto deveríamos ter presente quanto, lemos, ouvimos ou comentamos, acerca da matéria que o artigo aborda.
Carlos Soares Paris 04.08.2019 Muito, mas muito, bem António Barreto!
agany, Setúbal 04.08.2019: Por este andar, qualquer dia, precisamos de aumentar as quotas para os homens...
FPS, Vale de Santarém 04.08.2019: Completamente de acordo com António Barreto, cuja visão se pauta pelo desenvolvimento, pela justiça e liberdade. Sejamos optimistas, que foi assim que as mulheres chegaram aos 55% em doutoramentos (imagine-se o que para aí se gritaria, fossem impostas quotas para compensar os homens desta "injustiça"...).
Jonas Almeida, Stony Brook NY, Marialva Beira Alta04.08.2019: Excelente, é isto mesmo!

Nenhum comentário: