segunda-feira, 26 de agosto de 2019

“Quem é que ousou entrar”



“Disse o Mostrengo e rodou três vezes…” O certo é que esta peça de António Barreto me parece impecável de beleza arquitectónica, de um rigor sem parelha, uma ironia sabiamente percuciente… PS, o guardador dos rebanhos, qual Mostrengo impeditivo mas zelador, humanamente apaixonado, é certo, por uma Tétis brincalhona, que lhe arruína a pose. Esperemos pela Tétis… Ou deixemo-nos embalar, nas suas ondas também, em boa camaradagem com o Adamastor zelador…
OPINIÃO: O Partido Socialista e o Estado
Depois de devaneios com o espírito liberal, a sociedade civil, o mercado e a social-democracia, o PS dá sinais de regresso a uma das suas origens, a mais estatizante e jacobina.
ANTÓNIO BARRETO      PÚBLICO, 25 de Agosto de 2019
Por mérito próprio e demérito dos seus adversários, é provável que o Partido Socialista ganhe as próximas eleições. Faltam poucas semanas e não se vêem sinais vencedores de outros partidos. Também é possível, mas não provável, que ganhe as eleições com maioria absoluta. Haverá, talvez, nova solução de Governo, não necessariamente a mesma que temos hoje.
O exame dos programas eleitorais já foi exercício interessante. Eram programas para serem lidos. Raras vezes para serem tomados a sério, mas eram peças de doutrina que significavam alguma coisa. Hoje, a sua leitura é cada vez mais uma perda de tempo. São enormes, mal escritos, têm de cobrir todas as áreas, prioridades, eleitores, tribos e interesses. É, aliás, provável que sejam elaborados para não serem lidos. Têm só de ser feitos. Mas, com mais de uma ou duas centenas de páginas, não se destinam evidentemente a ser lidos. Nem por profissionais.
Vale a pena olhar para o programa do PS, com 140 pesadas páginas. É o provável vencedor e a maior parte dos outros ainda não está disponível. O programa é interessante porque traduz o seu actual carácter. Não é programa de Governo, esse virá depois das eleições. Muitos capítulos deverão ser ponderados, mas, globalmente, há algo a salientar. O PS está a viver o seu momento mais estatal, dirigista e centralizador de sempre. A sua viragem à esquerda, a fim de impedir o progresso do Bloco e do PCP, fica aqui consagrada. O reforço do Estado está bem visível neste programa.
O PS não se propõe “libertar” energias, cidadãos, empresas, autarquias ou iniciativas. O PS propõe-se enquadrar, comandar, dirigir, orientar e, numa palavra, fazer. O PS não quer deixar fazer, não deseja que outros façam, quer fazer. E o que ele não fizer, proíbe ou dificulta.
O programa erige o Estado em salvador da sociedade. O Grande Leviatã está de regresso. Depois de devaneios com o espírito liberal, a sociedade civil, o mercado e a social-democracia, o PS dá sinais de regresso a uma das suas origens, a mais estatizante e jacobina. Este programa confirma, acima de tudo, o papel do Estado, o enquadramento pelo Estado, a iniciativa do Estado e a intromissão do Estado na vida dos cidadãos.
Não, não vale a pena recear o comunismo do PS, que não está no programa. Aliás, basta o Estado português e os “fundos” da UE para substituírem, com vantagem, o comunismo clássico. Já não são de recear os efeitos do actual Governo, isto é, o PC não conseguiu converter o PS. Pelo seu lado, o Bloco comoveu os socialistas, deu-lhes inspirações para a superstrutura, os comportamentos, as virtudes, a ética, o sectarismo cultural e a correcção política, mas não parece ter convencido nas áreas mais importantes do sistema político, da democracia representativa e da economia de mercado. Pode, todavia, recear-se a deriva autoritária do PS no que toca às regras de vida colectiva, a sociedade dirigida pela virtude e o endeusamento do Estado.
Fazer, ordenar, proibir, organizar, comandar: essas são as palavras do PS, esses são os temas! Aqui, não se pensa em libertar, demolir muros, remover obstáculos, permitir… Só se pensa em fazer, mobilizar, planificar… Deixar fazer é impensável. Permitir é sinal de fraqueza.
Antigamente, governava-se por campanhas. As de África ficaram na história. Na República e no Estado Novo, prosseguiu-se e desenvolveu-se a tradição com as Campanhas de Alfabetização e de Educação de Adultos, com a Campanha do Trigo ou da Vacinação contra a Tuberculose. No início da democracia, a famigerada Campanha de Dinamização Cultural foi a mais interessante de todas: a pretexto de sensibilização democrática, lançou-se um dos empreendimentos mais totalitários da história política portuguesa.
Com o fim das campanhas, apareceram os planos. Mais intelectuais e aparentemente mais sérios. Surgiram assim os Planos de Fomento. Logo a seguir à Revolução de 1974, passou-se a um Plano de Desenvolvimento Económico e Social, seguido das veleidades constitucionais das Grandes Opções do Plano e do Plano a longo prazo. Agora, entrámos na fase das plataformas, dos programas e dos planos nacionais, às dezenas. Planos para tudo e para todos. Para as artes, o regadio, a literacia, a energia e os transportes.
Hoje, verdadeiramente sofisticada é a noção de estratégia. Estratégia nacional para isto ou para aquilo. Acompanhada de um ou vários observatórios. Estratégia implica inteligência. Sugere esforço organizado. Exige mobilização e sensibilização. Motivação e recursos. Neste programa, entre as já existentes e as novas, agora propostas, há dezenas de estratégias nacionais, como, por exemplo: de Mobilidade Activa, para a Igualdade e a Não-Discriminação, para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, de Combate à Pobreza, para a Integração dos Sem-Abrigo, da Indústria 2030, para a Bioeconomia Sustentável 2030, para o Mar 20/30, para a Reutilização de Águas Residuais, de Educação Ambiental, para uma Protecção Civil Preventiva, de Desenvolvimento Integrado das Regiões de Fronteira, de Empreendedorismo e de Turismo 2030.
Sem esquecer, evidentemente, os planos nacionais. São dezenas deles: Ferrovia 2020, de Literacia Democrática, de Leitura, das Artes, Sectorial da Defesa Nacional para a Igualdade, de Gestão Integrada de Fogos Rurais, de Segurança Rodoviária 2021/2030, Energia e Clima 2030, de Promoção de Biorrefinarias 2030, de Gestão das Regiões Hidrográficas, de Gestão de Riscos de Seca, de Gestão de Riscos de Inundação, de Ordenamento das Albufeiras de Águas Públicas, Poupança Floresta, de Acção para a Economia Circular, de Acção Litoral XXI, de Situação do Ordenamento do Espaço Marinho Nacional, de Aquacultura em Águas de Transição e não ficamos por aqui. Ainda faltam os programas nacionais, os fundos, as bolsas e as plataformas.
Para tudo isto, é necessário ter instituições, leis orgânicas, funcionários, subcontratações, ajustes directos, impostos e confiança política. Pode não ser totalitário, mas este Estado é partidário, ineficiente, burocrático e autoritário. Não desenvolve nem deixa desenvolver. Não cria riqueza nem deixa criar.
O Estado pode ser uma das grandes criações da Humanidade. Mas também é capaz de ser, tal como o fizeram os comunistas, os fascistas, os nazis, os corporativistas, os revolucionários do Terror e outros, um dos maiores horrores da espécie humana. No outro extremo, a ausência e a fraqueza de Estado, tal como querem os neoliberais e os anarquistas, podem ser a raiz de outras formas de totalitarismo e de selvajaria. Entre os dois modelos, o PS oscila.
Sociólogo
COMENTÁRIOS:
Jonas Almeida: Estas vozes vêm bem de dentro da nossa memória política. Devíamos dar-lhes a atenção máxima enquanto podemos. Da mesma forma que Pacheco Pereira vem das fundações do PSD, António Barreto vem dos alicerces do PS. Ambos com as ferramentas que só uma formação aturada fornece (Historiador e Sociólogo, respectivamente). Quando vemos assim António Barreto repetir o argumento de Pacheco Pereira, aqui na forma de "basta o Estado português e os “fundos” da UE para substituírem, com vantagem, o comunismo clássico". Conclui também AB, o totalitarismo de mais um "Grande Leviatã está de regresso". Desde ministras da defesa Alemã no comando do Novo Eixo, ao corporativismo clientelista nas instituições políticas entre nós, não é preciso ser sociólogo nem historiador para saber o que vem a seguir.
Jonas Almeida, 25.08.2019: O eixo discutido neste artigo de António Barreto não é entre direita e esquerda, é entre totalitarismo corporativista e pluralismo democrático. Pacheco Pereira, que vem do PSD, faz o mesmíssimo aviso sobre o regresso de mais um Leviatã Hobbsiano.
Fernando Costa, 25.08.2019  Um oásis de bom senso. É triste verificar que os poucos grandes políticos que ainda por aí andam, são os que já não são politicos.
Jonas Almeida, 25.08.2019: subscrevo, e agradeço ao Público não ter (ainda) cedido às muitas pressões para que os censure.
danielcouto1100, 25.08.2019: AB tem razão no facto de a iniciativa no País estar sempre dependurada no Estado e por esta via este estar cada vez mais centralizado nas decisões. Diz Miguel Real que desde o sec. XVI a burguesia, o clero e nobreza de então, só dependem do Estado. Esta dependência continua hoje com pobreza da iniciativa privada e das instituições civis, terminando na sofisticada captura do Estado pelas elites, afamadas sociedades de advogados e escandalosamente pelos banqueiros, com a insolvência dos bancos privados. Por tudo isto Portugal (ainda) precisa de uma Administração Pública forte. O PS está a ser realista e a defender o Estado para conseguir a maior equidade entre os Portugueses e evitar os populismos despesistas.
Aguia, 25.08.2019: Muito bem. Efectivamente as classes sociais "esclarecidas" em Portugal nunca fizeram jus às suas missões históricas, mais marcadas nos outros países europeus. Infelizmente, a noção que se tem é que o Estado em Portugal serve antes de muleta para a "iniciativa privada" dele se servir, quando as coisas correm mal. Este é o desígnio da propalada desestatização à portuguesa, tão avessa à planificação. Assim não vamos lá. E não penso que a culpa do nosso atraso seja do Estado - se este não existisse, já estaríamos a falar castelhano como língua oficial.
J I T, 25.08.2019:  Magnífico texto, tal como o anterior, com grande lucidez e sentido crítico!

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