sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Olha a mala



O ministro da melena loira expôs à rainha a sua vontade de encerrar o Parlamento, provavelmente no nobre intuito de dar descanso de férias ao pessoal, e a rainha confirmou, agarrada à eterna malinha que a ajuda a sustentar a pose e o poder. Enquanto a malinha da rainha permanecer, no rigor do seu simbolismo, que, impassível, atravessou épocas em evoluções sucessivas que foram dando que falar, com mais ou menos adoração, com mais ou menos acinte, mas sempre com a educação necessária que a sua realeza recuada impõe, vamos tendo fé nessa aparência de rigor e de snobismo característica recuada, já conhecida dos tempos do Rei Artur e da sua “Távola Redonda”, de traições e devoções, mais ou menos escandalosas, mas sempre muito empenhadas. A malinha da Rainha será o talismã para a continuidade da travessia.
1 - EDITORIAL:  Boris pôs a rainha a vandalizar a democracia
O Reino Unido está em guerra civil. Churchill, aquele que Johnson (um tanto pateticamente) quis emular, uniu o país no momento mais difícil da sua história recente. Boris, que vive agora perto dos “War Rooms” a partir de onde Churchill dirigiu o país em guerra, empenha-se em estilhaçar o Reino.
ANA SÁ LOPES
PÚBLICO, 28 de Agosto de 2019
A decisão do novo primeiro-ministro britânico de suspender o Parlamento até à véspera do Brexit – para impedir a democracia parlamentar de funcionar - é um ultraje inominável para um país que se orgulhava justamente das suas instituições democráticas. O que Boris Johnson fez ao suspender a democracia põe também em causa outra instituição que até agora tem funcionado como factor de coesão daquelas várias nações em risco de se desintegrarem por estes dias: a rainha de InglaterraNo ocaso do seu reinado, Isabel II é envolvida numa golpada institucional sem moral nem ética – mas é assim que Boris é, é assim que Boris funciona. Isabel II não teria forma de dizer que não ao chefe do “Governo de Sua Majestade”, já que os seus poderes são meramente simbólicos, os de “rainha de Inglaterra”. Para todos os efeitos, a partir de uma decisão tomada nas suas férias no Castelo de Balmoral, na Escócia que agora já vê a independência inevitável, a rainha envolve-se num dos maiores escândalos institucionais de que há memória no Reino Unido. É duvidoso que aceite a enorme quantidade de pedidos de audiência que lhe foram dirigidos depois do anúncio da decisão do primeiro-ministro. Mas as multidões que saíram à noite um pouco por todo o Reino Unido a protestar contra a decisão de Boris, dirigem-se também ao carimbo da Rainha.
É verdade que a Europa foi dura com o Reino Unido da mesma forma que agiu de forma grostescamente malévola com a Grécia depois do referendo. Domina nas instituições europeias um “efeito castigador”, vinda de cabeças educadas em escolas primárias de meados do século XX, segundo o qual a punição grosseira é a única via para tratar um país “rebelde”, mesmo que esse país esteja apenas a respeitar o voto legítimo do seu povo. A Europa já está a pagar por este género de políticas e pagará ainda mais no futuro.
Não foi a Europa que nomeou Boris primeiro-ministro – como fez em Itália, ao “substituir” Berlusconni por Mario Monti em plena crise financeira – mas ajudou à criação de um sentimento que facilitou o sucesso do discurso básico e populista. Mas Boris já era um vândalo, antes de ter chegado a primeiro-ministro (Os comentários que ontem muitos deputados do parlamento britânico dirigiram ao seu primeiro-ministro tornam esta expressão “vândalo” não tão violenta assim).
O Reino Unido está em guerra civil. Churchill, aquele que Johnson (um tanto pateticamente) quis emular, uniu o país no momento mais difícil da sua história recente. Boris, que vive agora perto dos “War Rooms” de Churchill, empenha-se em estilhaçar o Reino.
COMENTÁRIOS
JDF, 29.08.2019 17:00: Faço uma adenda, talvez um pouco desviada do assunto do artigo, mas aqui vai: tem um bom exemplo de porque é que as direitas (mais ou menos de extrema, mas a fugir ao centro) ganham. No grosso são aproximado a mais do mesmo, mas quando são para dizer eu faço isto ou aquilo, principalmente se for impopular ou megalómano (ninguém se acredita que será mesmo realizado). Boris com o brexit, trump com o muro, bolsonaro com armas. Certo que ninguém quer ditaduras, mas para fazer alguma coisa tem de se levantar a democracia? Dá que pensar se a máquina funciona ou não quando é preciso. Não esquecer que foi o povo britânico que votou em referendo (mal ou bem) para sair. No meio disto, andamos a discutir a pouca vergonha que é o que boris faz, enquanto a UE se comporta como uns nbonhas! Querem ir? Já!
P Galvao. 29.08.2019: Tanto Boris, e tão pouco Corbyn. Os britânicos votaram num referendo (que se não fosse pela incompetência e inabilidade de Cameron, nunca teria existido), e o Parlamento nunca se entendeu relativamente ao trabalho levado a cabo por Theresa May. O pior foi mesmo o Labour, e o seu líder, que disse tudo e o seu contrário. Theresa May prometeu cumprir com a vontade expressa democraticamente pelos eleitores, mas não conseguiu ultrapassar as barreiras levantadas pelo Parlamento; Boris vai cumprir, com uma suspensão da democracia (como Manuela F Leite já havia sugerido aqui para Portugal). Não se percebe a indignação da colunista: é Política. Já as consequências deste acto tresloucado, é outra história, para a qual os eleitores não foram perdidos nem achados.
José Cruz Magalhaes, 29.08.2019: O segundo acto da peça que está em cena, na velha Albion, desde o referendo de 2016,encontrou um novo protagonista. Boris tomou conta do palco e iniciou o seu monólogo e, nesse exacto momento, transformou uma comédia brexitiniana, em curso, numa farsa, sem epílogo, nem fim à vista. Shakespeare não recusaria este argumento, nem a época, recheada de burlões, pantomineiros, magarefes e actores de segunda, uniformemente distribuídos, como Salvini, Le Pen, os jovens austríacos, entre outros, pelo lado de uma Europa à procura de uma identidade que lhe permita sobreviver, num mundo canibalizado por superpotências predadoras, e os profetas do Reino do apocalipse como Steve Bannon e outros teóricos do mal. É imprevisível o tempo de duração em cartaz; uns referem 31 De Outubro outros ,arriscam o prolongamento das exibições, mas o desfecho deverá ultrapassar todo o drama das grandes tragédias do genial dramaturgo.
JDF, 29.08.2019: Agora sim (não só mas também), dá para escrever: jornalismo de treta. Assim posto, parece que a rainha não sabe pensar pela própria cabeça, ou pela dos acessores, e foi tomada refém pelo boris...a sério?! Sobre-simplificando, boris fez o que é raro os políticos fazerem: cumprirem o prometido e arranjarem condições para o fazer. Afinal é para fazer o brexit, ou foi para arranjar tema de conversa e pertinência, para existência a politicas? depois, a nomeação de boris como substituto para primeiro ministro, não eleito, já a tivemos, santana lopes, e a geringonça: já não era de termos maturidade politica para aceitar que isto faz parte das regras? Jornalismo do velho do restelo...

2 - OPINIÃO:    O “Brexit” e a crise existencial britânica
O “Brexit” mostra como pulsões populistas e nacionalistas podem colocar em crise o funcionamento regular da arquitectura institucional de uma democracia pluralista, com larga tradição, como a britânica.
JOÃO PEDRO CASTRO MENDES
PÚBLICO, 29 de Agosto de 2019
O Parlamento é o cerne da democracia britânica, que assenta na soberania parlamentar. Afrontar o Parlamento já levou a uma guerra civil e custou a vida ao rei Carlos I, no séc. XVII. E é o Parlamento que tem estado na linha da frente a defender que o Reino Unido não pode sair da União Europeia sem acordo. O Parlamento britânico, um ex libris da democracia parlamentar.
Foi este mesmo Parlamento britânico que acabou de ser encerrado, a pedido do primeiro-ministro e brexiteer Boris Johnson. Se o Parlamento se coloca à frente dos desígnios de Boris Johnson e dos brexiteers, então o Parlamento tem de ser afastado. Não para sempre. Durante cinco semanas. Mas afastado tempo suficiente para dificultar a vida aos parlamentares que queiram impedir a saída sem acordo por via legislativa. Ainda assim, fala-se entre deputados da oposição e deputados conservadores não-alinhados sobre apresentação de uma moção para fazer cair o Governo. Pode bem haver novas eleições. Eleições em que o tema poderá ser o povo contra o Parlamento, num exercício de ataque à própria noção de democracia parlamentar.
Depois de um referendo, em 2016, em que ninguém prometeu sair da União Europeia sem um acordo, em que Brexiteers de diversas estirpes se dedicaram a anunciar que seria tudo muito fácil e simples, estamos, em 2019, perante a possibilidade de uma saída sem acordo no dia 31 de Outubro. E os mesmos que diziam que iria ser tudo fácil, que não se iria sair sem acordo, agora vêm dizer que a saída sem acordo é a forma de respeitar o resultado do referendo. Depois de um referendo em que se prometeu que o objectivo era “take back control”, para defender as instituições britânicas, são os próprios Brexiteers a colocar em causa o Parlamento (o cerne da democracia britânica, assente na soberania parlamentar) e os tribunais (que chegaram a ser apelidados de “inimigos do povo”). Foi também reportado que Boris Johnson pondera propor a ascensão à Câmara dos Lordes (não eleita) um conjunto de aliados políticos que empurrem essa Câmara para o lado brexiteer, ao mesmo tempo que reclama da falta de eleições para cargos europeus.
O “Brexit” colocou em cima da mesa, novamente, a independência da Escócia. Os nacionalistas escoceses aproveitaram a ocasião para relançar a questão, depois do referendo de 2014 ter sido perdido pelos nacionalistas. O objectivo seria acabar com o Reino Unido e pedir a admissão da Escócia (que votou maioritariamente pela permanência) na União Europeia. Curiosamente (ou talvez não), os argumentos que já vi Brexiteers usarem para a permanência da Escócia no Reino Unido são muito parecidos com os argumentos utilizados pelos Remainers para a permanência do Reino Unido na União Europeia. Mas outros Brexiteers (ingleses) há, que estariam dispostos a assistir ao colapso do Reino Unido só para saírem da União Europeia. Ao menos, são consistentes. Estas divergências mostram bem, também, os conflitos identitários grupais subjacentes ao “Brexit”, e a forma como o povo, na verdade, não é um ente amorfo e homogéneo. A gestão pacífica destes potenciais conflitos (e, numa perspectiva liberal, a protecção do indivíduo) são a razão de ser para as instituições políticas. Conflitos institucionais como os que estão a ocorrer no Reino Unido testam a resistência das próprias instituições, colocando em causa a arquitectura constitucional e institucional vigente.
Na Irlanda do Norte, o “Brexit” veio levantar o espectro da guerra civil, do regresso da violência sectária, e do terrorismo e dos grupos paramilitares. A Irish backstop, que tanto irrita os brexiteers, foi um compromisso para tentar salvaguardar o acordo de paz na Irlanda do Norte, colocado em crise pelo “Brexit” e pela possibilidade de existir novamente uma fronteira “dura” entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda. De notar que em resposta a estes problemas, os Brexiteers, em alternativa à backstop, não propõem nada de concreto. De notar ainda que, desde 2017, a assembleia regional (que funciona numa lógica de partilha de poder entre nacionalistas e unionistas) se encontra dissolvida, após um escândalo de corrupção, e quem “governa” é a função pública. Pode haver a tentação de ser novamente imposto governo directo a partir de Londres, e isso também serve para inflamar tensões. Tudo em nome do “Brexit”.
O Reino Unido vive hoje uma crise existencial. O processo do “Brexit” colocou o sistema político britânico a ferro e fogo. Em causa estão confrontos entre democracia directa (o referendo) e democracia parlamentar (o Parlamento e a maioria parlamentar), entre o Parlamento e o Governo e entre Westminster e as assembleias e os governos regionais. Os tribunais vêm sendo chamados a decidir questões de natureza constitucional que há uns anos ninguém pensaria que se sequer fossem colocadas, quanto mais discutidas em tribunal. Os vários partidos estão divididos, com potencial para existir um realinhamento partidário de cariz estrutural. Esta divisão reflecte tensões dentro da própria população britânica que, aconteça o que acontecer, não desaparecerão tão cedo.
O “Brexit” mostra como pulsões populistas e nacionalistas podem (pelo menos ajudar a) colocar em crise o funcionamento regular da arquitectura institucional de uma democracia pluralista, com larga tradição, como a britânica. Mostra bem como não devemos tomar por garantidas as instituições que protegem a nossa liberdade individual e colectiva, e que para o bom funcionamento das instituições não basta tradição. É preciso, a cada momento, que haja alguém disposto a lutar por essas instituições, a preservar o seu bom funcionamento, a respeitar normas éticas, e que essas instituições sejam consideradas, efectivamente, um mínimo denominador comum para a convivência em comunidade. O Reino Unido pode bem continuar a existir depois desta crise. Pode até nem se desagregar. Mas suspeito que as feridas criadas pelo “Brexit” tardarão a sarar. E não será o mesmo Reino Unido.
Vogal do Conselho Consultivo do IPCG (Instituto Português de Corporate Governance); associado do Institute of Public Policy.
COMENTÁRIOS:
paula.o.rego.442120: A prerrogativa da suspensão do parlamento é da rainha, que por convenção segue sempre o conselho do PM. Simplificando e deixando - nos das hipocrisias de forma que são tão caras ao british people, que se diga preto no branco: a suspensão do parlamento é quando e como o PM queira. E pronto, sem papas na língua está tudo dito sobre a permissividade anti- democrática do sistema inglês, à conta dessa figurinha inútil e anacrónica que é a rainha, que desde que este escândalo rebentou, não li nos media crítica alguma à sua " prerrogativa de convenção". O problema está no perverso das convenções que nos condicionam o cérebro, e nos põem a todos a falar como carneiros. Que os defensores da monarquia estejam calados, percebo, mas os outros porque se calam? Boris Johnson, o PM que não foi eleito, que mentiu com quantos dentes tem aquando do referendo condicionando o seu resultado, que é consensualmente reconhecido como um mentiroso sem escrúpulos e político de apetências anti- democráticas, é um crápula que lançou o RU ( UE ?) numa crise existencial . E a rainha, que tendo a prerrogativa de se opôr não o fez, não é ela cúmplice deste incrível atentado à democracia, nem que não seja por negligência?
Leitor Registado, 29.08.2019 : é o Parlamento que tem estado na linha da frente a defender que o Reino Unido não pode sair da União Europeia sem acordo....mas infelizmente nunca afirmou que iria cumprir a vontade expressa do povo inglês o que lhe retira credibilidade e legitimidade!


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