O ministro da melena loira expôs à
rainha a sua vontade de encerrar o Parlamento, provavelmente no nobre intuito
de dar descanso de férias ao pessoal, e a rainha confirmou, agarrada à eterna malinha
que a ajuda a sustentar a pose e o poder. Enquanto a malinha da rainha
permanecer, no rigor do seu simbolismo, que, impassível, atravessou épocas em evoluções
sucessivas que foram dando que falar, com mais ou menos adoração, com mais ou
menos acinte, mas sempre com a educação necessária que a sua realeza recuada
impõe, vamos tendo fé nessa aparência de rigor e de snobismo característica
recuada, já conhecida dos tempos do Rei Artur e da sua “Távola Redonda”, de
traições e devoções, mais ou menos escandalosas, mas sempre muito empenhadas. A
malinha da Rainha será o talismã para a continuidade da travessia.
1 - EDITORIAL: Boris pôs a rainha a vandalizar a democracia
O Reino Unido está em guerra civil.
Churchill, aquele que Johnson (um tanto pateticamente) quis emular, uniu o país
no momento mais difícil da sua história recente. Boris, que vive agora perto
dos “War Rooms” a partir de onde Churchill dirigiu o país em guerra, empenha-se
em estilhaçar o Reino.
ANA SÁ LOPES
PÚBLICO, 28 de Agosto de 2019
A decisão do
novo primeiro-ministro britânico de suspender o Parlamento até à véspera do
Brexit – para impedir a democracia parlamentar de funcionar - é
um ultraje inominável para um país que se orgulhava justamente das suas
instituições democráticas. O que Boris Johnson fez ao suspender a
democracia põe também em causa outra instituição que até agora tem
funcionado como factor de coesão daquelas várias nações em risco de se
desintegrarem por estes dias: a rainha de Inglaterra. No ocaso do
seu reinado, Isabel II é envolvida numa golpada institucional sem moral nem
ética – mas é assim que Boris é, é assim que Boris funciona. Isabel
II não teria forma de dizer que não ao chefe do “Governo de Sua Majestade”, já
que os seus poderes são meramente simbólicos, os de “rainha de Inglaterra”.
Para todos os efeitos, a partir de uma decisão tomada nas suas férias no
Castelo de Balmoral, na Escócia
que agora já vê a independência inevitável, a rainha envolve-se num
dos maiores escândalos institucionais de que há memória no Reino Unido. É
duvidoso que aceite a enorme quantidade de pedidos de audiência que lhe foram
dirigidos depois do anúncio da decisão do primeiro-ministro. Mas as
multidões que saíram à noite um pouco por todo o Reino Unido a protestar contra
a decisão de Boris, dirigem-se também ao carimbo da Rainha.
É verdade que a Europa foi dura com o
Reino Unido da mesma forma que agiu de forma grostescamente malévola com a
Grécia depois do referendo. Domina nas instituições europeias um “efeito
castigador”, vinda de cabeças educadas em escolas primárias de meados do século
XX, segundo o qual a punição grosseira é a única via para tratar um país
“rebelde”, mesmo que esse país esteja apenas a respeitar o voto legítimo do seu
povo. A Europa já está a pagar por este género de políticas e pagará ainda mais
no futuro.
Não
foi a Europa que nomeou Boris primeiro-ministro – como fez em Itália, ao
“substituir” Berlusconni por Mario Monti em plena crise financeira – mas ajudou
à criação de um sentimento que facilitou o sucesso do discurso básico e
populista. Mas Boris já era um vândalo, antes de ter chegado a
primeiro-ministro (Os comentários que ontem muitos deputados do parlamento
britânico dirigiram ao seu primeiro-ministro tornam esta expressão “vândalo”
não tão violenta assim).
O Reino Unido está em guerra civil. Churchill, aquele que Johnson (um tanto pateticamente)
quis emular, uniu o país no momento mais difícil da sua história recente.
Boris, que vive agora perto dos “War Rooms” de Churchill, empenha-se em
estilhaçar o Reino.
COMENTÁRIOS
JDF, 29.08.2019 17:00: Faço uma adenda, talvez um pouco desviada do assunto
do artigo, mas aqui vai: tem um bom exemplo de porque é que as direitas (mais
ou menos de extrema, mas a fugir ao centro) ganham. No grosso são aproximado a
mais do mesmo, mas quando são para dizer eu faço isto ou aquilo, principalmente
se for impopular ou megalómano (ninguém se acredita que será mesmo realizado).
Boris com o brexit, trump com o muro, bolsonaro com armas. Certo que ninguém
quer ditaduras, mas para fazer alguma coisa tem de se levantar a democracia? Dá
que pensar se a máquina funciona ou não quando é preciso. Não esquecer que foi
o povo britânico que votou em referendo (mal ou bem) para sair. No meio disto,
andamos a discutir a pouca vergonha que é o que boris faz, enquanto a UE se
comporta como uns nbonhas! Querem ir? Já!
P Galvao. 29.08.2019: Tanto Boris, e tão pouco Corbyn. Os britânicos votaram
num referendo (que se não fosse pela incompetência e inabilidade de Cameron,
nunca teria existido), e o Parlamento nunca se entendeu relativamente ao
trabalho levado a cabo por Theresa May. O pior foi mesmo o Labour, e o seu
líder, que disse tudo e o seu contrário. Theresa May prometeu cumprir com a
vontade expressa democraticamente pelos eleitores, mas não conseguiu
ultrapassar as barreiras levantadas pelo Parlamento; Boris vai cumprir, com uma
suspensão da democracia (como Manuela F Leite já havia sugerido aqui para
Portugal). Não se percebe a indignação da colunista: é Política. Já as
consequências deste acto tresloucado, é outra história, para a qual os
eleitores não foram perdidos nem achados.
José Cruz Magalhaes, 29.08.2019: O segundo acto da peça que está em cena, na velha
Albion, desde o referendo de 2016,encontrou um novo protagonista. Boris tomou
conta do palco e iniciou o seu monólogo e, nesse exacto momento, transformou
uma comédia brexitiniana, em curso, numa farsa, sem epílogo, nem fim à vista. Shakespeare
não recusaria este argumento, nem a época, recheada de burlões, pantomineiros, magarefes
e actores de segunda, uniformemente distribuídos, como Salvini, Le Pen, os
jovens austríacos, entre outros, pelo lado de uma Europa à procura de uma
identidade que lhe permita sobreviver, num mundo canibalizado por
superpotências predadoras, e os profetas do Reino do apocalipse como Steve
Bannon e outros teóricos do mal. É imprevisível o tempo de duração em cartaz; uns
referem 31 De Outubro outros ,arriscam o prolongamento das exibições, mas o
desfecho deverá ultrapassar todo o drama das grandes tragédias do genial
dramaturgo.
JDF, 29.08.2019: Agora sim (não só mas também), dá para escrever:
jornalismo de treta. Assim posto, parece que a rainha não sabe pensar pela própria
cabeça, ou pela dos acessores, e foi tomada refém pelo boris...a sério?!
Sobre-simplificando, boris fez o que é raro os políticos fazerem: cumprirem o
prometido e arranjarem condições para o fazer. Afinal é para fazer o brexit, ou
foi para arranjar tema de conversa e pertinência, para existência a politicas?
depois, a nomeação de boris como substituto para primeiro ministro, não eleito,
já a tivemos, santana lopes, e a geringonça: já não era de termos maturidade
politica para aceitar que isto faz parte das regras? Jornalismo do velho do
restelo...
2 - OPINIÃO: O “Brexit” e a crise existencial britânica
O “Brexit” mostra como pulsões
populistas e nacionalistas podem colocar em crise o funcionamento regular da
arquitectura institucional de uma democracia pluralista, com larga tradição,
como a britânica.
JOÃO PEDRO CASTRO MENDES
PÚBLICO, 29 de Agosto de 2019
O Parlamento é o cerne da democracia
britânica, que assenta na soberania parlamentar. Afrontar o Parlamento já levou
a uma guerra civil e custou a vida ao rei Carlos I, no séc. XVII. E é o
Parlamento que tem estado na linha da frente a defender que o Reino Unido não
pode sair da União Europeia sem acordo. O Parlamento britânico, um ex libris da
democracia parlamentar.
Foi
este mesmo Parlamento britânico que acabou de ser encerrado, a pedido do
primeiro-ministro e brexiteer Boris Johnson. Se o Parlamento se
coloca à frente dos desígnios de Boris Johnson e dos brexiteers, então o Parlamento
tem de ser afastado. Não para sempre. Durante cinco semanas. Mas afastado
tempo suficiente para dificultar a vida aos parlamentares que queiram impedir a
saída sem acordo por via legislativa. Ainda assim, fala-se entre
deputados da oposição e deputados conservadores não-alinhados sobre
apresentação de uma moção para fazer cair o Governo. Pode bem haver novas
eleições. Eleições em que o tema poderá ser o povo contra o Parlamento, num
exercício de ataque à própria noção de democracia parlamentar.
Depois
de um referendo, em 2016, em que ninguém prometeu sair da União Europeia sem um
acordo, em que Brexiteers de diversas estirpes se dedicaram a anunciar que
seria tudo muito fácil e simples, estamos, em 2019, perante a possibilidade de
uma saída sem acordo
no dia 31 de Outubro. E os
mesmos que diziam que iria ser tudo fácil, que não se iria sair sem acordo,
agora vêm dizer que a saída sem acordo é a forma de respeitar o resultado do
referendo. Depois de um referendo em que se prometeu que o objectivo era “take
back control”, para defender as instituições britânicas, são os próprios
Brexiteers a colocar em causa o Parlamento (o cerne da democracia britânica,
assente na soberania parlamentar) e os tribunais (que chegaram a ser apelidados
de “inimigos do povo”). Foi também
reportado que Boris Johnson pondera propor a ascensão à Câmara dos Lordes
(não eleita) um conjunto de aliados políticos que empurrem essa Câmara para o
lado brexiteer, ao mesmo tempo que reclama da falta de eleições para cargos
europeus.
O
“Brexit” colocou em cima da mesa, novamente, a independência da Escócia. Os
nacionalistas escoceses aproveitaram a ocasião para relançar a questão, depois
do referendo de 2014 ter sido perdido pelos nacionalistas. O objectivo
seria acabar com o Reino Unido e pedir a admissão da Escócia (que votou
maioritariamente pela permanência) na União Europeia. Curiosamente (ou talvez
não), os argumentos que já vi Brexiteers usarem para a permanência da Escócia
no Reino Unido são muito parecidos com os argumentos utilizados pelos Remainers
para a permanência do Reino Unido na União Europeia. Mas outros Brexiteers (ingleses)
há, que estariam dispostos a assistir ao colapso do Reino Unido só para
saírem da União Europeia. Ao menos, são consistentes. Estas divergências
mostram bem, também, os conflitos identitários grupais subjacentes ao “Brexit”,
e a forma como o povo, na verdade, não é um ente amorfo e homogéneo. A
gestão pacífica destes potenciais conflitos (e, numa perspectiva liberal, a
protecção do indivíduo) são a razão de ser para as instituições políticas.
Conflitos institucionais como os que estão a ocorrer no Reino Unido testam a
resistência das próprias instituições, colocando em causa a arquitectura
constitucional e institucional vigente.
Na
Irlanda do Norte, o “Brexit” veio levantar o espectro da guerra civil, do
regresso da violência sectária, e do terrorismo e dos grupos paramilitares. A Irish backstop, que tanto irrita os brexiteers, foi
um compromisso para tentar salvaguardar o acordo de paz na Irlanda do Norte,
colocado em crise pelo “Brexit” e pela possibilidade de existir novamente uma
fronteira “dura” entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda. De notar
que em resposta a estes problemas, os Brexiteers, em alternativa à backstop,
não propõem nada de concreto. De notar ainda que, desde 2017, a assembleia
regional (que funciona numa lógica de partilha de poder entre nacionalistas e unionistas)
se encontra dissolvida, após um escândalo de corrupção, e quem “governa” é a
função pública. Pode haver a tentação de ser novamente imposto governo directo
a partir de Londres, e isso também serve para inflamar tensões. Tudo em nome do
“Brexit”.
O Reino Unido vive hoje uma crise
existencial. O
processo do “Brexit” colocou o sistema político britânico a ferro e fogo. Em causa estão confrontos entre democracia directa (o
referendo) e democracia parlamentar (o Parlamento e a maioria parlamentar), entre
o Parlamento e o Governo e entre Westminster e as assembleias e os governos
regionais. Os tribunais vêm sendo chamados a decidir questões de natureza
constitucional que há uns anos ninguém pensaria que se sequer fossem colocadas,
quanto mais discutidas em tribunal. Os vários partidos estão divididos, com
potencial para existir um realinhamento partidário de cariz estrutural. Esta
divisão reflecte tensões dentro da própria população britânica que, aconteça o
que acontecer, não desaparecerão tão cedo.
O “Brexit” mostra como pulsões
populistas e nacionalistas podem (pelo menos ajudar a) colocar em crise o
funcionamento regular da arquitectura institucional de uma democracia
pluralista, com larga tradição, como a britânica. Mostra bem como não devemos tomar por garantidas as
instituições que protegem a nossa liberdade individual e colectiva, e que
para o bom funcionamento das instituições não basta tradição. É preciso, a
cada momento, que haja alguém disposto a lutar por essas instituições, a
preservar o seu bom funcionamento, a respeitar normas éticas, e que essas
instituições sejam consideradas, efectivamente, um mínimo denominador comum
para a convivência em comunidade. O Reino Unido pode bem continuar a
existir depois desta crise. Pode até nem se desagregar. Mas suspeito que as
feridas criadas pelo “Brexit” tardarão a sarar. E não será o mesmo Reino Unido.
Vogal do Conselho Consultivo do IPCG (Instituto Português de Corporate
Governance); associado do Institute of Public Policy.
COMENTÁRIOS:
paula.o.rego.442120: A prerrogativa da suspensão do parlamento é da rainha,
que por convenção segue sempre o conselho do PM. Simplificando e deixando - nos
das hipocrisias de forma que são tão caras ao british people, que se diga preto
no branco: a suspensão do parlamento é quando e como o PM queira. E
pronto, sem papas na língua está tudo dito sobre a permissividade anti-
democrática do sistema inglês, à conta dessa figurinha inútil e anacrónica que
é a rainha, que desde que este escândalo rebentou, não li nos media crítica
alguma à sua " prerrogativa de convenção". O problema está no
perverso das convenções que nos condicionam o cérebro, e nos põem a todos a
falar como carneiros. Que os defensores da monarquia estejam calados, percebo,
mas os outros porque se calam? Boris Johnson, o PM que não foi eleito, que
mentiu com quantos dentes tem aquando do referendo condicionando o seu
resultado, que é consensualmente reconhecido como um mentiroso sem escrúpulos e
político de apetências anti- democráticas, é um crápula que lançou o RU ( UE ?)
numa crise existencial . E a rainha, que tendo a prerrogativa de se opôr não o
fez, não é ela cúmplice deste incrível atentado à democracia, nem que não seja
por negligência?
Leitor Registado, 29.08.2019 : é o Parlamento que tem estado na linha da frente a
defender que o Reino Unido não pode sair da União Europeia sem acordo....mas
infelizmente nunca afirmou que iria cumprir a vontade expressa do povo inglês o
que lhe retira credibilidade e legitimidade!
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