Não posso deixar de referir que os
textos “ultramarinos” de Salles da Fonseca provocaram entre nós, amigas
ultramarinas, de reuniões bi-semanais de café agora, gratas referências a
tempos vividos nessa África do “surge et
ambula” do soneto de Rui de Noronha,
de cuja filha fui colega na Escola Comercial, anterior liceu Salazar, onde
estudei. A nossa amiga trouxe mesmo fotografias comprovativas desses tempos de
Quelimane, onde ela e a minha irmã conviveram como colegas do acaso das
colocações, ambas idas de Lourenço Marques para Quelimane. Mas a nossa amiga,
que lá ficou mais tempo, nos laços familiares que ali formou, estava
verdadeiramente entusiasmada, sugerindo mesmo que talvez se tivessem cruzado
nesses espaços que Salles da Fonseca percorreu com os seus amigos no seu Fiat
dedicado e glorioso.
Quanto à referência à sua “impertinência”
junto à Autoridade aduaneira, claro que Salles da Fonseca se pôde valer da sua própria autoridade, não só de
ex-militar de alta patente, como, provavelmente, possuidor, na altura, de outro
cargo também de alta patente, para enfrentar os poderes que vigoravam então no
território português “uno e indivisível,
do Minho a Timor”, entregando o Expresso,
(fundado na altura por Pinto Balsemão,
e que começara a impor-se, pela sua qualidade informativa e de oposição ao
regime), a uma autoridade do antigo regime, na altura ainda na plena posse do
seu poder e agindo de acordo. Mas o próprio Exército ajudava a manter esse
poder, cúmplice de um poder que a mais simples beliscadura nos seus brios,
fazia explodir.
Lembro-me de um texto que, com a
assinatura do meu pseudónimo de Regina de
Sousa, foi publicado na Página da
Mulher do Jornal Notícias de Lourenço
Marques, (prova de que, apesar dos rigores ditatoriais, em Moçambique se vivia
numa certa mobilidade assertiva, que o Notícias facilmente aceitava, pelo menos
tive a prova disso em mais do que um texto meu, que nele foi publicado). A
propósito desse artigo, lembro a conversa que tive com a Directora da Página da Mulher,
Irene Gil, que me informou de que,
dos comandos do Exército, tinha chegado à Redacção do Jornal, uma qualquer advertência
de ameaça, condenando o atrevimento do tal artigo, que transcrevo no final
desta página, para lembrar que a autoridade, qualquer que ela seja, tem sempre
a razão forte do seu lado, caso do Exército português, de facto sacrificado, na
luta contra o terrorismo, mas ele próprio ocupando o primado das suas
imposições de chefia, dentro do mesmo espírito de poder da própria ditadura,
que, de resto, ele ajudava convenientemente a impor, como era natural, tendo a
faca, ou seja, as armas, e o queijo na mão:
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 16.08.19
Chegando
a Lourenço Marques numa radiosa manhã domingueira de Março de 1974 no
voo que saíra de Lisboa no final de Sábado, levava eu o Expresso já lido e
relido debaixo do braço. Dirigi-me para a recolha das bagagens e, daí, para a
Alfândega. E eis que sou mandado parar. Parei de imediato e perfilei-me perante
o agente daquela Autoridade. O jornal Expresso estava apreendido. Logo informei
que não era necessário apreendê-lo e perder tempo com a elaboração do auto de
apreensão. Eu oferecia-o ao Chefe da Delegação Aduaneira do aeroporto para que
o lesse tranquilamente. Aceite a oferta, fui-me ao meu destino levando comigo a
derrogação do princípio sacrossanto de "Portugal uno e indivisível do
Minho a Timor".
Tenhamos
fé em que o passado nos ensine a fazer um futuro risonho e não risível.
Henrique Salles da Fonseca
COMENTÁRIOS
Tenhamos fé! - Helena
Salazar Antunes Morais
Anónimo 17.08.2019: Logo
a princípio, sem reparar bem na data (anterior à independência), pensei: o
facto de o chefe da delegação aduaneira ter aceitado o jornal para o ler depois
foi um sinal positivo, promissor de que não estava irremediavelmente rasgado o
pano de uma identidade cultural comum em alguns, se não muitos, aspectos. Mas
não, verifiquei que eram autoridades da administração ainda portuguesa. Assim,
um único comentário: BIZARRO!
O
corpo do delito: Uma crónica atrevida (Do livro “Pedras de Sal”
(1974), em segunda edição em “Cravos Roxos” (1981):
«A
nossa praia geral da Polana está subdividida em várias particulares, como a da
Ponta do Mar, a do Bosque, a dos Militares, muito ciosos, estes, das suas
prerrogativas marítimas, alcançadas, certamente, por meio do brilho das suas
espadas fulgentes e garbosas.
Há dias, a Joaninha foi à tal
praia dos militares ciosos e ficou muito impressionada com uns letreiros
discriminatórios das barracas para os oficiais, os sargentos e os praças, novas
subdivisões ainda de uma subdivisão maior.
Como é muito observadora, pôs-se
logo a destrinçar sobre a qualidade dos panos das barracas em cada sector e
também sobre o tamanho da sombra que cada uma projectava, e a espessura e o
marulho das ondas para cada subdivisória. Aparentemente não notou
discrepâncias, as sombras e os panos das barracas eram idênticos, e idêntica a
sujidade nas areias lodosas da maré-baixa.
Como além de observadora é muito
recalcitrante, resolveu ir com a irmã para uma barraca do “côté” dos praças,
mas muito correctamente foi convidada a retirar-se para o “côté” competente e
superior. Tentou explicar as suas preferências pelos praças por causa do azul
mais doce do mar grandioso e inocente das grandezas humanas, mas acabou por
educadamente se retirar para uma banda não militar, uma colónia balnear, onde
não havia ainda dessas discriminações por as crianças estarem aí mais ou menos
niveladas quanto à sua posição social.
Não sei se a Joaninha tem razão
nos seus protestos generosos. A verdade é que a compartimentação dos produtos
foi sempre necessária e até na cozinha e na despensa usamos o processo, para
não confundirmos, numa pressa, os feijões com as salsichas, nem os filetes de
pescada com os fósforos “Pala-Pala”, se bem que inofensivos estes últimos.
Se as jovens que vão à praia
militar não encontrassem as tabuletas indicativas, arriscar-se-iam a deixar-se
deslumbrar apressadamente e erradamente, contrariando as inclinações das
famílias, o que sempre provocou graves crises domésticas, de que o Romeu e a
Julieta constituem o exemplo mais do conhecimento geral, logo seguido do Simão
Botelho e a diáfana Teresa, no seu melancólico “Amor de Perdição”.
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