domingo, 18 de agosto de 2019

Quem pode, pode



Não posso deixar de referir que os textos “ultramarinos” de Salles da Fonseca provocaram entre nós, amigas ultramarinas, de reuniões bi-semanais de café agora, gratas referências a tempos vividos nessa África do “surge et ambula” do soneto de Rui de Noronha, de cuja filha fui colega na Escola Comercial, anterior liceu Salazar, onde estudei. A nossa amiga trouxe mesmo fotografias comprovativas desses tempos de Quelimane, onde ela e a minha irmã conviveram como colegas do acaso das colocações, ambas idas de Lourenço Marques para Quelimane. Mas a nossa amiga, que lá ficou mais tempo, nos laços familiares que ali formou, estava verdadeiramente entusiasmada, sugerindo mesmo que talvez se tivessem cruzado nesses espaços que Salles da Fonseca percorreu com os seus amigos no seu Fiat dedicado e glorioso.
Quanto à referência à sua “impertinência” junto à Autoridade aduaneira, claro que Salles da Fonseca se pôde valer da sua própria autoridade, não só de ex-militar de alta patente, como, provavelmente, possuidor, na altura, de outro cargo também de alta patente, para enfrentar os poderes que vigoravam então no território português “uno e indivisível, do Minho a Timor”, entregando o Expresso, (fundado na altura por Pinto Balsemão, e que começara a impor-se, pela sua qualidade informativa e de oposição ao regime), a uma autoridade do antigo regime, na altura ainda na plena posse do seu poder e agindo de acordo. Mas o próprio Exército ajudava a manter esse poder, cúmplice de um poder que a mais simples beliscadura nos seus brios, fazia explodir.
Lembro-me de um texto que, com a assinatura do meu pseudónimo de Regina de Sousa, foi publicado na Página da Mulher do Jornal Notícias de Lourenço Marques, (prova de que, apesar dos rigores ditatoriais, em Moçambique se vivia numa certa mobilidade assertiva, que o Notícias facilmente aceitava, pelo menos tive a prova disso em mais do que um texto meu, que nele foi publicado). A propósito desse artigo, lembro a conversa que tive com a Directora da Página da Mulher, Irene Gil, que me informou de que, dos comandos do Exército, tinha chegado à Redacção do Jornal, uma qualquer advertência de ameaça, condenando o atrevimento do tal artigo, que transcrevo no final desta página, para lembrar que a autoridade, qualquer que ela seja, tem sempre a razão forte do seu lado, caso do Exército português, de facto sacrificado, na luta contra o terrorismo, mas ele próprio ocupando o primado das suas imposições de chefia, dentro do mesmo espírito de poder da própria ditadura, que, de resto, ele ajudava convenientemente a impor, como era natural, tendo a faca, ou seja, as armas, e o queijo na mão:

HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 16.08.19
Chegando a Lourenço Marques numa radiosa manhã domingueira de Março de 1974 no voo que saíra de Lisboa no final de Sábado, levava eu o Expresso já lido e relido debaixo do braço. Dirigi-me para a recolha das bagagens e, daí, para a Alfândega. E eis que sou mandado parar. Parei de imediato e perfilei-me perante o agente daquela Autoridade. O jornal Expresso estava apreendido. Logo informei que não era necessário apreendê-lo e perder tempo com a elaboração do auto de apreensão. Eu oferecia-o ao Chefe da Delegação Aduaneira do aeroporto para que o lesse tranquilamente. Aceite a oferta, fui-me ao meu destino levando comigo a derrogação do princípio sacrossanto de "Portugal uno e indivisível do Minho a Timor".
Tenhamos fé em que o passado nos ensine a fazer um futuro risonho e não risível.
Henrique Salles da Fonseca

COMENTÁRIOS
Tenhamos fé! - Helena Salazar Antunes Morais
Francisco G. de Amorim 17.08.2019: Boa. Também fiz algumas dessas. Uma delícia!
Anónimo 17.08.2019: Logo a princípio, sem reparar bem na data (anterior à independência), pensei: o facto de o chefe da delegação aduaneira ter aceitado o jornal para o ler depois foi um sinal positivo, promissor de que não estava irremediavelmente rasgado o pano de uma identidade cultural comum em alguns, se não muitos, aspectos. Mas não, verifiquei que eram autoridades da administração ainda portuguesa. Assim, um único comentário: BIZARRO!

O corpo do delito: Uma crónica atrevida (Do livro “Pedras de Sal” (1974), em segunda edição em “Cravos Roxos” (1981):
«A nossa praia geral da Polana está subdividida em várias particulares, como a da Ponta do Mar, a do Bosque, a dos Militares, muito ciosos, estes, das suas prerrogativas marítimas, alcançadas, certamente, por meio do brilho das suas espadas fulgentes e garbosas.
Há dias, a Joaninha foi à tal praia dos militares ciosos e ficou muito impressionada com uns letreiros discriminatórios das barracas para os oficiais, os sargentos e os praças, novas subdivisões ainda de uma subdivisão maior.
Como é muito observadora, pôs-se logo a destrinçar sobre a qualidade dos panos das barracas em cada sector e também sobre o tamanho da sombra que cada uma projectava, e a espessura e o marulho das ondas para cada subdivisória. Aparentemente não notou discrepâncias, as sombras e os panos das barracas eram idênticos, e idêntica a sujidade nas areias lodosas da maré-baixa.
Como além de observadora é muito recalcitrante, resolveu ir com a irmã para uma barraca do “côté” dos praças, mas muito correctamente foi convidada a retirar-se para o “côté” competente e superior. Tentou explicar as suas preferências pelos praças por causa do azul mais doce do mar grandioso e inocente das grandezas humanas, mas acabou por educadamente se retirar para uma banda não militar, uma colónia balnear, onde não havia ainda dessas discriminações por as crianças estarem aí mais ou menos niveladas quanto à sua posição social.
Não sei se a Joaninha tem razão nos seus protestos generosos. A verdade é que a compartimentação dos produtos foi sempre necessária e até na cozinha e na despensa usamos o processo, para não confundirmos, numa pressa, os feijões com as salsichas, nem os filetes de pescada com os fósforos “Pala-Pala”, se bem que inofensivos estes últimos.
Se as jovens que vão à praia militar não encontrassem as tabuletas indicativas, arriscar-se-iam a deixar-se deslumbrar apressadamente e erradamente, contrariando as inclinações das famílias, o que sempre provocou graves crises domésticas, de que o Romeu e a Julieta constituem o exemplo mais do conhecimento geral, logo seguido do Simão Botelho e a diáfana Teresa, no seu melancólico “Amor de Perdição”.

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