Mais esta crónica de Maria
João Avillez,
a pôr o dedo na ferida. Mas não basta. Gostamos, mas continuamos, impávidos e
serenos, apreciando os bons escritos, adeptos do “sonho da ventura” de Antero, de
arrebatamento e desilusão, com o desfecho do silêncio e escuridão, apenas, adeptos, para todo o sempre, de “fado”,
de “futebol” e de “Fátima”, os três fff,
bem distantes do “sangue”, do “suor” e das “lágrimas” do apelo energético de
quem sabia o que queria. E com quem falava.
Crónica: Que
fica do que passa? Nada? (E duas notas) /Premium
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR, 19/6/2019
Que foi preciso ir acontecendo de tão
sulfúrico no país para ocorrer uma demissão da inteligência, da sensibilidade,
da cidadania, da responsabilidade, desta envergadura?
1. Há
poucas semanas a atenção global estacionou por uma tarde nas chamas de Notre Dame,
em Paris. Um coro de pena e lamentos embora hoje, seja já com um desinteresse
distraído que vagamente se ouve dizer que “houve uma missa” ou que alguém
sugeriu “colocar uma piscina” no ex-tecto da Catedral, quando se iniciar a
reconstrução.
E
há dias, a atenção do país – instituições, escritores, políticos, literatos,
amigos próximos, longínquos, povo, mirones, media — fixou-se na despedida de
Agustina Bessa Luís. Brevemente: quando no dia seguinte, por sugestão desinteressada
mas inteligente de alguém, propus a um meio de comunicação social a publicação
de um quase desconhecido texto da escritora, a resposta foi “ah mas agora já
não vai ‘dar’, estamos com os 30 anos de Tienamen”, e era verdade: estavam
todos na China.
2. Se
apenas há força convocatória no célere momento conhecido por actualidade — mas
logo enxotado para fora do écran e da vida, porque essa é a regra — a quem
interessa o que conta? A quem interessará de facto esta incerta paisagem nossa,
humana, política, económica, social, fora do reduto dos “paisagistas” dela
encarregues ? Que fica deste borbulhante entra-e-sai, como no carrossel das
feiras para além de mentes desapossadas? Nada?
Que
se guarda dos que morrem, sempre heróis com glória e sem mácula — nenhuma
mácula — no dia em que partem, embora nos dias seguintes, tempos depois, anos
depois, ninguém lhes evoque nem nome, nem legado? E que se retém do que seria
obrigatório reter e as coisas da vida servirem de facto para alguma coisa em
ver de se dissolverem pelos ares e pelos ventos?
3.
Como quase toda a gente pelei-me pela vitória de Portugal na Taça das
Nações-excelente jogo, óptimo ritmo, o nosso onze muito concertado. Mas como em
um daqueles não anunciados furacões, fiquei aturdida com o “depois”: recitações
gloriosas, incessantes evocações patrióticas, louvores, bandeiras, hinos e o
nome de Portugal declinado em todos os tons, por entre o elogio ditirâmbico e a
lágrima — lágrimas verdadeiras. Não é novo nem de hoje, dirão, mas nessa noite,
depois de felicitar Fernando Santos, deu-me para prestar boa atenção ao que vi
e ouvi aos portugueses. E foi mau e foi pena. Caramba: que foi preciso
acontecer – ir acontecendo — de tão sulfúrico no país para ocorrer uma demissão
da inteligência, da sensibilidade, da cidadania, da responsablidade, desta
envergadura?
Que soma de erros, faltas e omissões se
conjugou entre dirigentes, educadores, pensadores, governantes, para obter tão
devastadoras consequências? Para só trinta por cento dos portugueses ter achado
a “Europa” merecedora de uma deslocação às urnas, mas mais do dobro ter
confundido a pátria com um golo e um voto com uma chatice? Onde se vê em
Portugal – e aplicado a quê? — este mesmo ímpeto, fornecimento de energia,
disponibilidade grátis, rendição voluntária e orgulho sem dique a controlá-lo,
que observei a saída do estádio naquela noite?
Quantos
daqueles espectadores — prontos para tudo em nome de golos, livres e cantos —
eram capazes de um esforço pela sua comunidade, um voluntariado que integrasse
ou acolhesse, colaborações em zonas, bairros, escolas, museus? De uma
intervenção cívica séria em nome desse país que tanto os embriaga e solicita
nos relvados, mas parece que apenas só nos relvados? Haveria certamente muito
pasmo ao simples enunciado de algumas destas digamos, solicitações, e temo que
a poucos ocorra pôr a render energias e disponibilidades para além de “servir
“o futebol com a mesmíssima energia e a mesmíssima disponibilidade.
4. Deu
enfim que pensar aquele espectáculo ao vivo e em directo de pura apologia da
menorização. Sim, mesmo se o país assiste (consolado) àquilo todos os dias,
espanta-me que poucos se desconsolem com os consolados. Apetece perguntar sem
ofender: aquela (tanta) gente, para além “daquilo”, é capaz de quê? E que
fica do que se passa: alguma reflexão, algum alerta, alguma ideia?
5. Nota um: ainda João
Miguel Tavares? Ainda: muito mais do que o que ele disse – muitas vezes tão
capturado por uma aguda fulanização… — interpelou-me a absoluta novidade de ter
sido alguém como ele a dizê-lo. Alguém de fora dos autorizados oficiais. Outra
geração, outro tom, outros interesses, outros objectivos. Outro “ver”. E depois
que se discuta. E uma liberdade já não condicionada por várias “obrigações”
(escolho uma: dizer e ensinar que se deve ter vergonha de oito séculos de caminho
até Abril de 1974 e ensinar e dizer que a seguir, todos os amanhãs cantaram. E
cantam).
6. Nota dois: e agora o
resto, que é muito: não se pode ter a ingenuidade de ignorar, disfarçar ou
fazer de conta que João Miguel Tavares não fez um arranjão a Marcelo. Fez:
disse em voz alta e com audiência nacional o que ele, Marcelo, não quer, não
pode ou não ousa dizer (mas obviamente pensa e quer que se diga). E não por
acaso, quis “isto” em ano de eleições e a três meses da sua realização. Com a
direita moribunda mas um Presidente tão metediço noutros (alheios) poderes, um
dia a esquerda acordará com mau sabor na boca.
COMENTÁRIOS:
kringa gomes, 21/06/2019: Belíssimo artigo!
Subscrevo cada comentário nele contido. Os portugueses só chegarão, talvez, a
saber o país em que vivem quando restar apenas o que é relatado no artigo:
futebol, falsas emoções, nada que mereça crédito, total instabilidade, medo e a
covardia e servilismo que vai caracterizando a sociedade que alastra entre nós.
Lá para o Natal é bem provável que tudo esteja clarificado. Até o tempo.
Maria José Melo, 20/06/2019: ‘... não se pode ter a ingenuidade de ignorar, disfarçar ou fazer de conta que
João Miguel Tavares não fez um arranjão a Marcelo. Fez: disse em voz alta e com
audiência nacional o que ele, Marcelo, não quer, não pode ou não ousa dizer
(mas obviamente pensa e quer que se diga). E não por acaso, quis “isto” em ano
de eleições e a três meses da sua realização. ‘: Ora aí está! Houve um propósito na escolha de JMT.
francisco oliveira, 20/06/2019: Há 40 anos vivíamos numa ditadura do PCP, hoje numa ditadura "democrática". O chamado povo continua amorfo, apático, ignorante. A juventude ignora a politica e os chamados políticos. A UE controlada por mãos invisíveis arrastam-nos para futuro incerto
desprezando a Historia, culturas, querer apagar a raiz religiosa
judaico-cristã. A mediocridade e o polvo
estimulam-se mutuamente. Os milhões da Bruxelas, mal
geridos servem para alimentar as Offshore e anestesiar o povo. Pelo andar da carruagem, o futuro prevê-se ainda mais brilhante. O forró continua e o povo vai aplaudindo!
Tiago Manso, 19/06/2019: Obrigado pelo texto. Brilhante a nota 2.
Pérolas a porcos, 19/06/2019": Que foi preciso ir acontecendo de tão sulfúrico no país para ocorrer uma
demissão da inteligência, da sensibilidade, da cidadania, da responsabilidade,
desta envergadura?" O PREC, que continua...!
Madalena Magalhães Colaço: 19/06/2019 Nos seus escritos sobre o Salon em Paris Emile Zola dava
nota que todos, desde a duquesa ao homem do talho faziam fila para visitar as
obras expostas. Esse hábito ficou de tal maneira enraizado que não é só a dita
"elite" que frequenta galerias e museus, mas todos se interessam. Há
uns meses no museu judaico em Paris a exposição de Freud era acompanhada
por várias conferências, que eram à noite durante a semana, e mesmo assim dias
antes já era impossível a inscrição, não consegui assistir "A influência
do judaísmo na psicanálise", com grande pena. Da biblioteca de França
(BnF), a tantos outros museus menos conhecidos, a programação e exposições são
estimulantes e o público adere em massa. Na televisão os economistas estão
longe de dominar o debate, e convidam-se historiadores, filósofos, geógrafos
... Em Portugal, programas como a de Ana Sousa Dias, na RTP, que entrevistava
todos que para ela tinham algum interesse cultural desapareceram por
completo. Só futebol e política que na
semana seguinte esquecemos.
Paulo António, 19/06/2019: Portugal está a tornar-se um país onde tudo pode
acontecer e....os cidadãos não são chamados a nada, nem a esclarecimentos, nem
a tomada de decisões. Estão a tornar-nos em
"ratinhos da India" como apelidou o governo belga:
maria perry, 19/06/2019: À medida que um país empobrece, a sua população vai ficando cada vez mais
atrasada, em todos os aspetos, cultural, poder de compra, valores éticos.
Enquanto os outros países crescem e saem do marasmo, Portugal é ao contrário,
está a definhar. Não se justifica isto hoje em dia, numa economia global
dinâmica, em que os povos vão convergindo para um bem estar melhor, graças também
à rejeição das políticas de esquerda. Em Portugal, o PM é uma mente fraca,
inebriada pelo poder, dá tudo aos funcionários públicos para que votem nele e
não se interessa que o país afunde. O importante é tentar continuar no poder o
mais tempo possível.
Pedro Ferreira: 19/06/2019: Excelente texto, mas o saber dá muito trabalho e não se adquire no
ecran dos computadores ou dos telemóveis. Os 75% de analfabetismo da pré-
república permanecem nos tempos de hoje, com outro nome: iliteracia. A
massificação do ensino na escola pública originou esta situação, mas para
quem tem os filhos na escola privada tudo vai óptimo. Lembram-se que
diziam de Salazar(injustamente) que gostava de um povo inculto, pois o regime
democrático alfabetiza para criar imbecis. Como se explica que o povo, em
urnas, escolha para líderes cadastrados e vendedores de banha da cobra? Maria
João, não digo que seja o caso aqui no "Observador", mas a
generalidade das pessoas não consegue entender o seu texto e antes de chegar ao
fim já lhes dói a cabeça. Frequento diversos espaços públicos e constato que
nem os jornais gratuitos das mesas as pessoas se dão ao trabalho de ler, um
povo que não lê e se limita a ver os bonecos e a ouvir os gritos de uma
qualquer apresentadora de TV está condenado a ficar estupidificado. O tempo
passou, mas o século XIX que o Eça referia, está cá e em força e por sinal os
países mais atrasado da Europa continuam a ser (grosso modo) a Grécia e
Portugal.
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