Mais um livro de empréstimo, que ando há semanas a
ler, - “Espaços em branco” pertencente
à Trilogia "O Princípio da Incerteza" – – de Agustina Bessa Luís, que me
deixa cada vez mais convicta da sua “monstruosidade” como forjadora de personagens
femininas de um modelo há muito vivenciado, representativas do universo próprio
da autora – um ser extremamente perspicaz, na avaliação do mundo, e no
julgamento de si próprio e dos outros, em riso constante, afinal, de escárnio
ou saber altaneiro, nos seus descritivos rotativos ou ziguezagueantes que
exploram todas as camadas sociais, o génio e a loucura de mãos dadas no seu
divagar flutuante, sem grandes preocupações de lógica temporal ou enquadramento
de tantas figuras sem continuidade, que vai enfiando no seu enredo composto por
pedaços de vidas em torno de uma protagonista, ela, sim, figura capital.
Uma longa tirada, a deste parágrafo, a
corresponder ao “enfim!” de uma tal leitura, em circunvoluções e ziguezagues, obrigando,
pelo menos no meu caso, a um retrocesso constante que reponha os dados e
decifre os nomes e os feitos, para entender melhor, por vezes, o evoluir de um
enredo em torno de uma heroína, que, para além de um percurso estapafúrdio numa
vida de desequilíbrio social e espacial, se aproveita das várias experiências
vividas para traduzir, com eficiência admirável de um exibicionismo poderoso de
conceito, como de domínio linguístico e referentes literários a propósito, uma
sagaz percepção do mundo e de si própria.
Talvez por isso a heroína se enfia em várias
personagens que a fazem fugir de casa, abandonando o palácio da sua condição
primeira - aliás, segunda - com um segundo marido e filhos pequenos, criados
com meiguice e bem-estar de mulher rica, de doçura e beleza inspiradores de
devoções várias, mas afinal, mulher estranha que chafurdará em várias condições
sociais, trocando o palácio pelo casebre, na companhia primeira com o criado
Neves, de uma diligência em torno dela feita de veneração – o qual acabará
preso e se enforcará com os atilhos das botas, sempre evocado por Camila com
ternura e com cuja referência será concluída a narrativa que repõe, uma vez
mais, a figura de Camila, no seu papel de centralidade e relevo, com a frase,
seguida de dois pontos, “Camila disse:”
acrescida da localização da escrita: Porto
– Gólgota, 28 de Março de 2003” que remete para a identificação de Camila com Agustina, e assim estabelece, subtilmente, talvez maliciosamente, a
equiparação com a sua própria personalidade individualista, de mistério e
misticismo, e sem preconceito, que, sorridentemente, põe em causa.
Com efeito, nas suas fugas de casa,
assume papéis vários, por vezes marginais – a fuga com Neves para casa da
família deste, numa relação de puro afecto, mas que fez correr boatos de uma
falsa mancebia - a sua vida posterior de empregada doméstica em Paris, contudo
leitora de livros da biblioteca da casa, o que provoca desconfianças de não
pertencer a esse meio de labor, e novas fugas e trabalhos, o seu trabalho de
costureira, ou de ajudante de uma enfermeira de casa rica, no tratamento de uma
mulher rica, ligada aos apetrechos finais do seu sono da morte… De repente,
somos informados de que Camila estará sempre em contacto com o advogado Flores (que
também a ama), através do Banco onde aquele depositará o bem-estar a que aquela
tem direito, como mulher de bens, e a que os ganhos nas rudes profissões em que
se aplica jamais lhe dariam acesso – como uma história de fadas da mirífica
realidade infantil.
Acabará como escritora, a emendar
escritas de um amigo que, ao publicá-los, vai enriquecendo e com ela repartindo
o êxito das suas publicações.
Um vendaval de ansiedade e loucura, este
mundo de Camila, de “espaços em branco”,
sem lógica, para os parâmetros sociais de convencionalidade e ordem, a sua
figura bela e fugidia que perversamente a todos escapa - no cansaço de um viver
mais fútil ou talvez na ânsia de uma vivência de experiências enriquecedoras –
uma técnica narrativa circular, um “tempo de memória” baralhando as pistas, e
por vezes a própria narradora intervindo, na referência a acontecimentos reais
que situam a acção nos seus finais – o caso da destruição das “torres nova iorquinas
– e dão relevo à própria autora, na sua identificação com Camila.
Mais um livro que não escapa aos moldes
do primeiro, - A Sibila – com, todavia,
ainda maior relevo cultural, que a cada passo se destaca, quer na referência a
obras literárias ou artísticas de todos os tempos, quer no conhecimento social
e psicológico com que aprimora os dados da sua narrativa ziguezagueante, que
não deixa de ser também crónica de costumes. Um livro esquivo, rebuscado,
excêntrico, rico de conceito que apraz ler e meditar, mas constantemente a
escapar ao controlo de racionalidade, na indiferença pelo nexo temporal e figurativo,
que não deixa de fatigar, contudo, na ferocidade de um exibicionismo pessoal
que tudo cilindra.
Como aqueles espadas que se vêem nos
filmes ou na vida, guiados por jovem protagonista esplendorosa que não deixa
atrás de si senão a fumaça da sua irrequietude, ou a perturbação de uma
vivência inquieta, conquanto extraordinariamente luzidia - lúcida, no caso de
Camila.
Eis um passo demonstrador da argúcia de
conceito que tanto nos prende:
«…
Tinha (Martinho, o filho mais velho) só onze anos e era rebelde e mal-educado: Raul (o pai) optou por não lhe dar pretexto para mais
conversa e sentou-se na sala diante da televisão que estava a transmitir
programas populares muito enfadonhos mas que, mesmo assim, ofereciam euforia de
contradição. O país tinha-se tornado eufórico na crítica e no dizer mal: isto
permitia salvar o amor-próprio das pessoas. A tutela pachorrenta dos pais dera
lugar à produção de filhos como investimento, e isso deixava de lado a
sensibilidade de família e as suas pequenas querelas de amor e ódio. Era-se
vulnerável pelo excesso de informação e talvez a generosidade sofresse com
isso. Perdoava-se menos, o que dava ocasião ao desprendimento que se confundia
com a liberdade. O casal era contratual e não sacramental, o que não excluía os
grandes casamentos convencionais, com vestido de noiva e uma festa com qualquer
coisa de ingénuo em que o pai se sentia apagado na esfera dos acontecimentos.
Camila
estava a aguentar mal a grande vaga de riqueza que os envolvia. Não sabia donde
vinha o dinheiro mas ele entrava pela porta dentro e cada vez era preciso mais
mostrar o seu efeito. Viver numa casa modesta e ir às compras ao supermercado
já não era para eles. Camila já só comprava roupas caras e tornara-se nessa
cliente à qual se vai abrir a porta quando ela sai e se dizem coisas em tom
meio religioso. Ela detestava isso mas pensava se não detestaria mais ser
recebida com indiferença. A vaidade começa por dentro e destrói o coração sem
que o saibamos.»
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