segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Uma baralhação



As crónicas de António Barreto, impecáveis que são, na bondade da doutrina e na mestria do discurso, deixam, todavia, um ressaibo de incompreensão, que alguns comentadores apontam, na indefinição do sentido crítico. Ontem, ao ouvir Paulo Portas na TVI, percebi finalmente a questão da greve, a que não prestara grande atenção, por demasiado tomadora de tempo noticiarístico, e compreendi o papel do governo que evitou uma catástrofe em termos económicos e sociais. Parece que AB condena a intervenção do governo, com as suas elegantes palavras de apoio à liberdade. Parece-me hipocrisia pura, tanta lindeza. Paulo Portas foi mais sensato e explícito.
OPINIÃO Ameaças
O PS está a perder gradualmente a sua tradição liberal, a sua veia tolerante e a sua marca democrática que parecia inamovível.
ANTÓNIO BARRETO  PÚBLICO, 18 de Agosto de 2019
Desde 1975 que não se assistia a ameaças tão contundentes à liberdade de expressão, aos direitos de informação, associação e à greve.
Ter uma opinião sobre os imigrantes, as minorias, a integração racial, o multiculturalismo, o racismo e temas afins é hoje uma actividade perigosa! Se as opiniões não forem o que está consagrado pela aliança do Governo, podem ser motivo de processo-crime, hipótese que se traduz em verdadeira intimidação. Anuncia-se já uma revisão das leis que regulam “os discursos de ódio”, designação perigosíssima, próxima de outras utilizadas pelos regimes fascistas, nazis e comunistas!
Reunir em Portugal movimentos e partidos políticos de direita ou de extrema-direita, provavelmente de conotação fascista, eventualmente de crenças racistas, pode ser actividade de risco e incorrer em intimidação, agressão pura e proibição legal.
Exprimir opiniões contrárias a certas instituições sagradas, como sejam os clubes de futebol, é uma actividade perigosa, propícia a acabar nos tribunais. Também aqui, não se sabe ainda o que estes decidirão, mas a carga de intimidação está preparada.
Desenvolver actividades sindicais que não sejam do agrado do Governo e da sua aliança, pode levar a situações muito delicadas, como tem acontecido com as greves dos camionistas não conformados com os estabelecidos.
Uma greve conduziu, com rapidez inédita, a uma requisição civil atrevida, acompanhada da mobilização imediata das polícias e das Forças Armadas, em gesto muito ameaçador. O Governo pôs-se a jeito para aproveitar o vento e virar a seu favor os receios de uma perturbação gigantesca da vida quotidiana. Mas a verdade é que o desvario de um sindicato não justifica nem desculpa os desmandos do Governo.
O PS está a mudar. Perigosamente. Está a ceder às esquerdas radicais, antidemocráticas ou totalitárias. As mais profundas convicções democráticas e liberais que marcaram o carácter do PS estão a sofrer uma erosão manifesta, causada pelo apetite de poder e pela influência ideológica do Bloco.
A democracia é o regime de todos, incluindo dos antidemocratas. A democracia defende-se com o bom Governo, o reconhecimento dos cidadãos, a identificação com os valores do regime e a atenção prestada pelos dirigentes às necessidades do seu povo! A democracia não se defende com propaganda, muito menos com proibições de pensamento e de opiniões. A Justiça e a democracia castigam acções, não intenções. São punidos os gestos e as obras, não as opiniões. Os crimes são actos, não discursos.
A democracia é o regime de toda a gente, incluindo racistas e xenófobos. Todas as idades, raças, géneros, opções e condições cabem dentro da democracia, nenhuma pode ser expulsa. Ninguém é criminoso ou pode ser proibido pela sua opinião. Mesmo os insultos são permitidos. Se forem calúnias, deverão ser tratados como actos, não como opiniões.
A democracia admite a diversidade e a diferença. O conflito e a polémica. A democracia não permite que se castigue quem é diferente. Mas não admite que as diferenças cheguem à violência, à eliminação dos outros, à tortura, à mutilação, à segregação violenta e a todas as formas que implicam infracção à lei, comportamentos ilícitos e violação de direitos dos outros. A democracia admite o preconceito, a estupidez e a presunção racial, desde que sejam opiniões. Traduzidos em actos, a violência sobre minorias, a segregação, a tortura sob qualquer forma, a expulsão de local público, a mutilação e o mercado de seres humanos são merecedoras de punição. A democracia admite todas as formas de ambição e de utopia, sejam a revolução social, a restauração nacionalista, o apostolado cristão, o proselitismo muçulmano e a pregação de qualquer outra forma de convencimento, desde que não se traduzam em actos violentos e atentatórios dos direitos de outros.
A democracia é um corpo simples de princípios e de convenções que pode coexistir com várias ideologias e filosofias políticas. A democracia não proíbe opiniões. Nem religiões ou crenças. Nem credos nacionais. Nem aspiração revolucionária. Mesmo sabendo que o nacionalismo pode violentar, que a revolução mata, que a religião pode torturar e que as utopias podem coagir: enquanto forem opiniões, a democracia não pode proibir.
A liberdade de expressão parece ser actualmente o valor mais ameaçado. Estranhamente, há em Portugal quem se queira notabilizar nesse esforço de condicionamento. Os socialistas, as esquerdas e certas minorias étnicas ou religiosas revelam reflexos perigosos de intolerância, como se a intolerância dos outros e a do passado justificassem a deles. E rapidamente recorrem à tentativa de condicionar a liberdade de expressão.
Convencido de que o seu ADN é um salvo-conduto para a democracia, o PS português está a perder qualidades. Dá sinais de aceitar que existem limites severos à liberdade de expressão, de que as Forças Armadas podem intervir em conflitos laborais e de que os tribunais são bons substitutos para a arbitragem e a negociação. Em questões como a segregação racial, o racismo, a desigualdade étnica e social, o assédio sexual e a violência doméstica, os socialistas estão a considerar crime o que muitas vezes é mera afirmação ou opinião.
Por sua própria iniciativa, porque julgam que a autoridade dá frutos eleitorais, porque cedem às influências do PCP e do Bloco, os socialistas estão a mudar de pele. Estão a deixar de entender que a democracia é de todos, mesmo dos antidemocratas. Que a tolerância é de todos, mesmo dos que o são pouco. Estão a torcer o direito à greve e a comprimir a liberdade de expressão. Estão a chamar as Forças Armadas para se envolverem em lutas sociais.
Estamos a viver tempos difíceis para a democracia e para as liberdades, designadamente a liberdade de expressão. O PS está a perder gradualmente a sua tradição liberal, a sua veia tolerante e a sua marca democrática que parecia inamovível. O PS está a deixar que as suas pulsões escondidas, jacobinas, de intervenção estatal, de condicionamento da livre expressão e de intolerância apareçam à superfície e se transformem em método de acção. A liberdade, em Portugal, não depende só dos socialistas, mas está por eles muito marcada. Se faltar o seu contributo republicano, democrático e liberal, poderemos ter de viver tempos cinzentos que julgávamos ultrapassados por muitos anos. Num país, como o nosso, em que a direita liberal é tão escassa e volúvel, a esquerda democrática é essencial. Mas, se é a primeira a não respeitar as suas boas tradições, então temos um problema!
Sociólogo
COMENTÁRIOS
trosario51: O insuspeito Paulo Portas, hoje resumiu a actuação do Governo nesta greve, Costa ganhou porque lidou com mestria, o sindicato foi amador na sua acção, cometendo erros uns atrás dos outros. Criticaram o Governo por andar mal em Abril, o Governo aprendeu, correu tudo bem. Já com o caso dos professores, o mesmo Paulo Portas avisou que Costa não é um amador e, não brinca em serviço. Eu percebo a frustração dos Passistas/Direita radical/ populistas, a azia que ainda não passou, depois do falhanço dos Coletes Amarelos, as greves selvagens, contra a humanidade dos enfermeiros, a esperança residia no Pardal, tudo tem falhado. Responder
FzD, 18.08.2019: Em nenhum regime de extrema esquerda ou de extrema direita existe liberdade de opinião. Se lermos com atenção os discursos de liberais, de direita ou de esquerda, veremos que nenhum propõe o banimento, ou mesmo a eliminação, dos seus opositores, ao contrário dos discursos extremistas.
A. Martins, 18.08.2019: Tem razão, os actuais tiques de bolchevismo do PS devem-se muito provavelmente a influência das más companhias, da sua extrema esquerda, o BE e o PCP. Não acredito que o grande Mário Soares, alguma vez mandasse a GNR deter grevistas para os identificar.
Fowler Fowler, 18.08.2019: Vejamos, então, como o defensor do Estado mínimo fez da cobardia força: Em 1977, ministro da Agricultura, ultrapassando / traindo Mário Soares, e em conluio com o presidente Eanes, mandou as FA para o Alentejo com o objectivo de impor a ordem e aplicar a lei; Em 1979, com os Reformadores na AD, não teve coragem de sentar o rabo em S. Bento e fazer oposição ao PS. Um traidor com escrúpulos?! Em 2013, apesar de promotor do governo de Passos, apelida de “cobarde” esse governo pelo facto deste não aprofundar e assumir as medidas de austeridade como suas. Dizia também por essa altura que as propostas do FMI eram “pobrezinhas”.
FzD, 18.08.2019: Um tipo de comentário que permite avaliar a índole ética e moral de quem o faz, além, claro está, do seu posicionamento político intolerante para quem pensa de maneira diferente...
AndradeQB, 18.08.2019: O disparate é livre, mas é dispensável. Não é normal alguém começar a acusar de todo o tipo de intenções alguém sem antes se preocupar em saber o mínimo sobre quem se dispõe tão alegremente a tentar insultar. Para quem não sabe quem é António Barreto e não gosta do que ele escreveu, que contradiga e diga tudo que sobre tal lhe apetecer. Já fazer juízos de intenção, sem qualquer suporte para tal, não é de facto proibido, mas é muito feio.
FzD, 18.08.2019: Uma prova, embora de somenos, de que António Barreto tem toda a razão, tem sido o comportamento de pessoas que se afirmam "de esquerda", nestes mesmos espaços de comentários, na tentativa de impedirem opiniões diferentes das suas, mesmo quando inócuas. Como diz o povo, se queres conhecer o vilão, põe-lhe o pau na mão...
Fowler Fowler, 18.08.2019:  Como era de se esperar, embora tarde, o sr. Barreto vem defender a liberdade de expressão da sua biógrafa e amiga Bonifácio, enviando recados. Bonito! Ambas as personagens vieram da extrema-esquerda e transformaram-se em neoliberais, os cristãos- novos do liberalismo. Este texto dramático vem no seguimento de muitos outros nos quais o sr. Barreto tem feito uma defesa intransigente das liberdades como se estas estivessem sempre à beira do abismo. Uma obsessão e excesso de zelo característicos dos convertidos. De igual modo a performance de Pacheco Pereira.
FzD, 18.08.2019: Só há liberdade porque a a extrema esquerda ainda ainda não conseguiu tomar o poder (e esperemos que nunca tome). Caso contrário teríamos a "liberdade" que existe hoje em Cuba, na Coreia do Norte, na China... ou a que havia na desaparecida URSS (apesar de haver por aqui muitos saudosos desse regime).
A. Martins, 18.08.2019: No jornal de hoje, que li em papel, António Barreto tem a lucidez de apontar os tiques de autoritarismo e de censura de opinião à laia das ditaduras, que ultimamente nos têm inquietado. Já em Maio o insuspeito Pacheco Pereira também chamou à atenção para o crescente e preocupante perigo da censura. Recordo apenas alguns exemplos recentes: As ameaças de processos em tribunal à Historiadora Fátima Bonifácio; as perseguições à ordem dos Enfermeiros e aos enfermeiros em greve; a queixa do governo PS à PGR por declarações do representante do sindicato do motoristas; as detenções para identificação de grevistas pelas autoridades policiais, coisa só vista no tempo do Salazar; etc.. Abrevio senão era preciso o dobro dos caracteres. O PS está a enveredar por maus caminhos, anti-constituição.
trosario51: Tudo dentro da Constituição. O problema é que o Governo lidou com mestria com esta greve, hoje sublinhado pelo insuspeito Paulo Portas, que é um politico inteligente, que dizia esta coisa simples o governo aprendeu com o que correu mal em Abril, nessa altura disseram que o governo tinha falhado ,desta vez não falhou.
António GS, 18.08.2019: Homem, as FA apenas carregaram gasolina e gasóleo, não carregaram sobre ninguém! Eis como um sujeito sério descamba às vezes para a irracionalidade. Faz-me lembrar daquele seu prefácio, segundo o qual Adão e Eva saíram de África e povoaram o resto do mundo. Na altura deu-me vontade de lhe perguntar de quem descendem então os africanos? Homem, modere-se um pouco, este seu artigo não saiu bem.
danielcouto1100, 18.08.2019: Resumindo, AB nas entrelinhas e com muita reflexão e sapiência à mistura, não foge à linha traçada pelo Público de condenar a actuação do Governo perante uma greve anunciada para paralisar o País. Só falta erigir o Pardal como herói da liberdade. Entretanto, não me sai da cabeça a actuação do ministro do PS com a aplicação da Lei Barreto no Alentejo.
AndradeQB, 18.08.2019: caro danielcouto, há já alguns anos que só esporadicamente atravesso o Alentejo, mas houve um período da minha vida que por lá trabalhei e, na minha opinião, o Alentejo melhorou muito para quem lá trabalha e muito se deve à lei que tanto critica. Isso não prejudica, no entanto, que haja quem preferisse a miséria colectivista. Cada um prefere o que quer, mas dados são dados e o nível de conforto, independência e liberdade aumentou no Alentejo.
Manuel Araujo, 18.08.2019: De António Barreto pode dizer-se que é um homem extraordinário. O país (e o PS que foi o partido da liberdade de Mário Soares) precisa da afirmação pública de mais dez personalidades com a dimensão humana e intelectual de António Barreto. Nada substitui a liberdade! Se não pudermos dizer o que pensamos, transformamo-nos em súbditos do Estado de hoje (que, note-se, não é uma entidade neutra, mas sim das pessoas que controlam o poder e se servem dele).
Jonas Almeida, 18.08.2019: Denoto aqui comentários que ignoram completamente o percurso político, profissional, pessoal e académico de António Barreto. Um saltinho à Wikipédia poupava algumas figuras tristes. Entre outras descobriam (recordavam?) a actividade partidária e governativa de António Barreto no ... exacto PS que aqui critica. Fê-lo sem sectarismo, tendo tb colaborado de muito perto com Sá Carneiro. Até recentemente dirigia a Fundação Francisco Manuel dos Santos e por associação o PorData e em 2017 foi premiado por Marcelo com a ordem da Liberdade. Finalmente como sociólogo, que praticou em agências internacionais, conhece de perto a natureza dos desvios totalitários. Um artigo importantíssimo, por um autor indispensável. Um aviso que espero que não se perca no deserto. Público, pff torne este artigo público
Jonas Almeida, 18.08.2019: Num certo verão da minha juventude trabalhei num cooperativa da reforma agrária. Acho que sei ao que se refere, caro Júlio. Lembro-me do desespero e incompreensão dos alentejanos com as iniquidade antigas a serem impostas de volta. Quantos não emigraram por isso e, lemos aqui ao lado, foram substituídos por nepalezes na sua própria terra. Não tenho nenhuma simpatia por AB, mas tenho respeito pela ponderação que põe naquilo que diz e faz. Os artigos dele aqui têm reforçado essa atenção.
TM, 18.08.2019:  Desde 1974 que já houve mais de 30 requisições civis, esta talvez a mais justificada tendo em conta a dependência da sociedade dos combustíveis. Cavaco e Mário Soares foram os campeões das requisições. 30 anos passaram e não houve qualquer degradação da Democracia e da liberdade em Portugal!

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