domingo, 4 de agosto de 2019

“The Importance of Being Earnest“




É uma comédia de Óscar Wilde bem snobe, nos diálogos espirituosos sobre os costumes requintadamente convencionais das nobres classes vitorianas, farsa hilariante, que põe em cena, entre outras figuras de igual relevo espirituosamente malandro, como Algernoon (representado no filme de Oliver Park, de 2002, pelo actor Colin Firth, que eu fixara da série “Orgulho e Preconceito” e posteriormente de outros filmes), o protagonista John, afinal o verdadeiro Earnest, sem que o soubesse. Lembrei-me da peça, pelo significado de “Earnest” – nome de trocadilho, imposto às duas personagens masculinas pelas pretensões à seriedade que ele traduz, na opinião das respectivas enamoradas de fresca data. Lembrei-me de o aplicar a Salles da Fonseca, por esse mesmo motivo de “seriedade” e “sinceridade” que o nome traduz, sem deixar de ser por vezes espirituoso, na coragem das suas observações, quer sobre o racismo quer sobre as políticas de Salazar e mais tarde de Marcelo Caetano, opiniões que os seus amigos igualmente apoiam. Quanto à crítica de Adriano Lima sobre o artigo polémico de Fátima Bonifácio sobre o racismo, eu achei esse artigo essencialmente honesto e sincero, como já o afirmei no blog, e julgo que é a opinião da maioria, mesmo da que se finge contrária - não é, obviamente, o caso de Adriano Lima, que muito justamente, fala em atracção ou rejeição epidérmica, a respeito de racismo, além das outras primorosas explicações.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA            A BEM, DA NAÇÃO, 03.08.19
No Serviço a que Samora Machel pertencia no Hospital Universitário, houve um concurso para duas vagas de Auxiliar de 2ª classe de Analista de Laboratório de Anatomia Patológica. Concorreram três candidatos sendo um preto e dois brancos. A classificação foi a de um branco em 1º lugar, o preto em 2º e o outro branco em 3º. As vagas foram preenchidas pelos dois brancos. (Esta informação foi-me dada pelo Professor Fernando Torres que, entretanto, era o Catedrático de Anatomia Patológica da Universidade de Lourenço Marques). O reaparecimento de Samora como Presidente da Frelimo causou péssimo mal-estar no Regime do Estado Novo e logo o Governo de Moçambique (não sei se por iniciativa própria ou se a mando de Lisboa) se apressou a decretar que doravante as repartições públicas tivessem obrigatoriamente uma quota mínima de 50% de funcionários não brancos. Os indianos agradeceram. Não sei bem como classificar o caso precedente mas, à distância de mais de 50 anos, a adjectivação que mais me ocorre tem a ver com estupidez. E será que a promoção de Samora a Auxiliar de 2ª mudaria substancialmente o curso da História? Duvido mas não hesito em afirmar que os não racistas em Moçambique (brancos, porque os outros são todos muito racistas) ficaram escandalizados quando souberam desse concurso. Mas esse escândalo só fez com que se tornasse ainda mais urgente acelerar o crescimento para que este, por si só, fosse capaz de corrigir tanta injustiça que os ultra-conservadores praticavam. Quando por meados de 1973 cheguei à Secretaria Provincial[i] dos Transportes e Comunicações na condição de Adjunto do Secretário Provincial, logo fui integrado na corrida do desenvolvimento e foram-me confiados quatro dossiers que me cumpria coordenar e empurrar para a frente, informando o Secretário Provincial do que fosse relevante e pedindo as orientações convenientes. Foram eles o da TVM-Televisão de Moçambique, o dos grandes estaleiros navais de Lourenço Marques, o dos Estaleiros Navais da Beira e o do relançamento do Porto de Quelimane. Como se compreende, não fui atacado pelo tédio.
O processo da televisão já estava relativamente adiantado quando me chegou às mãos pois até já se sabia qual o equipamento conveniente à ligação por satélite às redes europeias e sequente transmissão de sinal à África do Sul quando a televisão fosse lançada nesse país. Faltava lançar os concursos internacionais para os fornecimentos desses equipamentos. Colocada a questão a Lisboa, foi tudo chumbado porque a RTP tinha equipamentos de que se queria livrar (obsoletos, claro) e, portanto, nós que nos contentássemos com eles. Perante o que ficámos numa de que nem queríamos acreditar no que nos estava a ser dito. Engolimos em seco e dedicámo-nos a outros assuntos. Aquele ficaria em «banho Maria», até que Lisboa repensasse o assunto. Não sei se Lisboa pensou em repensar algum pensamento porque, entretanto, foi ela própria que foi repensada pelo 25 de Abril de 1974. No início de Março de 1974 vim a Lisboa em representação do Governo de Moçambique negociar com a Lisnave a construção de uns grandes estaleiros navais em Lourenço Marques que pudessem dar apoio aos superpetroleiros que então usavam a rota do Cabo pois o Canal de Suez continuava inoperacional. No regresso a Lourenço Marques, ao fazermos escala em Luanda, o então Comandante Chefe das Forças Armadas em Angola, General Luz Cunha, estava na base das escadas do avião para informar os ilustres a chegar (Cardeal D. Alexandre do Nascimento) ou em trânsito (um membro do Governo de Moçambique cuja identificação já não consigo fazer a esta distância no tempo) que tinha havido uma tentativa de golpe de Estado em Portugal. Referia-se ao 16 de Março, o golpe das Caldas. A Lisnave já não teve tempo para nos responder às questões que tinham ficado pendentes.
A transformação em empresa dos Serviços do Porto da Beira que eram (e são) os Estaleiros Navais da Beira ficou com o projecto de Estatutos aprovado pela minha hierarquia mas, entretanto, foi esta que mudou e eu já não estava em Moçambique quando os novos hierarcas tomaram conhecimento do assunto. Se é que tomaram.
O relançamento do Porto de Quelimane (início de dragagens mais importantes do que as rotineiras, se a memória não me falha) estava previsto para o segundo semestre de 1974.
Ora, se eu, simples membro de um gabinete «ministerial» tinha assuntos desta importância entre mãos, imagine-se o volume de projectos que todos os membros de todos os gabinetes teriam.
E o mais curioso é que a corrida do desenvolvimento não provocava cansaço. Pelo contrário, era entusiasmante. Pena foi termos sido traídos pelas costas. Agosto de 2019.  Henrique Salles da Fonseca

COMENTÁRIOS
Francisco G. de Amorim  03.08.2019 : Quem viveu África - não exactamente EM África - dedicava-se com alma e coração ao seu desenvolvimento. Infelizmente a madrasta Metrópole sempre negava, jogando baldes de água gelada nas nossas intenções. Já contei, em livro e no meu blog algumas das TRAIÇÕES que fizeram.
Henrique Salles da Fonseca  03.08.2019: M/ Caro Dr. Salles da Fonseca, Afastemos para o lado as cortinas do romantismo, da luta de libertação e da guerra colonial. O que vemos?
Vemos um território riquíssimo (Angola), com água em abundância (e como ela falta no cone sul de África), crude, minerais de toda a espécie e uma influência decisiva a sul da linha formada pelos rios Congo e Zambeze. Obviamente, toda essa riqueza não passava despercebida a ninguém por esse mundo fora. E em ambiente de Guerra Fria ambos os lados a disputavam, como seria de esperar.
Infelizmente, os nossos "cavaleiros de indústria", por cá, olhavam para Angola (sobretudo, esta) e para Moçambique como para o seu quintal: ali mais ninguém poderia pôr o pé. As empresas de projecção mundial bem tentaram parcerias várias. Nada, só negas. A conclusão foi óbvia: se não podemos ir convosco, afastem-se porque vamos sozinhos. E foram. Poderia ter sido diferente? Poderia. Poderia ter tido resultados diferentes (as guerras civis em Angola, Moçambique e Guiné)? Talvez. O erro das elites portuguesas no Consulado de Marcelo Caetano tem sido repetido, ponto por ponto, pelas elites dos novos países: aquilo é só para os "da casa". Aos poucos, vai-lhes acontecendo o mesmo que aconteceu aos seus antecessores, com a ironia de estes alinham agora com aqueles que querem empurrar borda fora. Abraço António Palhinha Machado
Adriano Lima, 03.08.2019: Eu sou contra essas cotas, a favor de quem quer que seja, porque em si mesmo o processo demonstra a evidência de uma discriminação natural, incrustada no tecido social. Impor as cotas, a favor das mulheres ou de quaisquer minorias, evita ou retarda que se resolva na sua origem o problema das diferenças sociais. Aliás, este é o único ponto em que não discordei do recente artigo polémico da Fátima Bonifácio. Em tudo o resto foi abominável o que ela escreveu.
Permita-me o Dr. Salles que não alinhe consigo nesta sua afirmação: “Duvido mas não hesito em afirmar que os não racistas em Moçambique (brancos, porque os outros são todos muito racistas) ficaram escandalizados quando souberam desse concurso”. Discordo quando diz que “os outros são todos muito racistas”. A questão tem de ser colocada na sua perspectiva sociológica e antropológica correcta. O eventual racismo das minorias étnicas, nomeadamente dos negros, contra os brancos, é um racismo reactivo, não podendo, neste caso, ser catalogado como o mesmo fenómeno de racismo genérico.
Não houvesse discriminação racial branca, provavelmente não haveria o alegado racismo das minorias étnicas. Depois, tem de se distinguir entre racismo de natureza biológica e racismo de natureza sociológica ou civilizacional. Ninguém pode censurar um branco por não acasalar com uma negra, porque desde logo se coloca o problema da atracção ou rejeição física, que é epidérmica e se prende com questões de beleza estética. No entanto, em Moçambique, como em muitos lados, tal aconteceu de forma natural. Em Moçambique, num dos aldeamentos em autodefesa sob o meu controlo, um branco português vivia com uma preta e tinham 3 filhos mulatos. A sua relação era natural, sem constrangimentos e sem complexos. Que lhes aconteceu depois da independência? Continuando, penso que não se pode dizer que existe racismo entre Macondes e Landins ou Macuas, no sentido genérico que lhe atribuímos. O que pode existir entre esses povos e outros é uma questão de rivalidade e disputa de território ou interesses, ou então diferenças de comportamento cultural, não propriamente uma segregação física entre uns e outros por ligeiras diferenças étnicas.
Adriano Lima 03.08.2019: O Dr. Salles, diz: “Pena foi termos sido traídos pelas costas”. A afirmação contém subentendidos mas estou convencido de que irá explicitar no próximo post quem foram os traidores. Desde já, rejeito que se considere traidor quem entendeu devia lutar de armas na mão pela independência dos territórios da sua naturalidade, mesmo que marionete de interesses estrangeiros que se escandalizavam pelo facto de um país pequeno como o nosso persistir na não descolonização. É claro que às potências que apoiaram e alimentaram as lutas de libertação não se lhes pode pespegar o rótulo de traidores, pois que se limitaram a fazer pela vida semeando lanças em África na esperança de colherem dividendos. Assim sendo, para mim traidores são os tais “ultra-conservadores” que, paradoxalmente, inquinaram o ideário de um Portugal uno e indivisível. Os ultra-conservadores tinham como único móbil a manutenção intransigente dos seus interesses e privilégios históricos, contra os quais os verdadeiros crentes no sonho de um Portugal uno e indivisível pouco ou nada podiam. O poder económico manda e pode, passe o pleonasmo, ontem como hoje. Os monopólios eram um travão à descentralização dos poderes de decisão política conducentes a um desenvolvimento mais acelerado e mais progressivo dos territórios. Diz-se que Marcelo Caetano não foi homem de uma liderança capaz de rasgar o tecido de certas conveniências e fugiu-lhe a rédea dos acontecimentos. Por exemplo, um chefe de governo de pulso e visão jamais teria consentido o que foi resolvido sobre os equipamentos para a televisão de Moçambique. Mas este é um simples caso, porque outros mais houve que em Moçambique e Angola impediram que os territórios se libertassem no sentido em que poderia gizar-se o tal Portugal alargado e uno. Mas isso só seria concebível como projecto humano de alcance histórico se as populações africanas pudessem dispor de “elevadores” sociais condignos que os tornassem partes rigorosamente iguais nas sociedades a que pertenciam. Se assim tivesse acontecido, muito provavelmente teriam dispensado mentores ideológicos de fora para os “libertar”. Salazar foi homem à altura do projecto que ele apregoava? Penso que de modo algum. Para já, faltava-lhe a necessária e inerente condição humana, pois que era homem com peias mentais e em certa medida tacanhas. Não sei se ele era visceralmente racista, mas um dos seus colaboradores no governo, não sei se Adriano Moreira ou outro, afirmou que ele se referia de forma pejorativa às populações africanas: Bem, vamos arranjar uns ‘dinheiritos’ para os ‘pretitos’”. A pessoa que citou esta afirmação esclareceu que ele usava frequentemente diminutivos. Isto para não falar nas razões concretas que levaram Adriano Moreira a empreender algumas reformas que desagradaram aos “ultra-conservadores” e foram causa do seu pedido de demissão. Sabe-se que Salazar defendia que a instrução das populações africanas devia ser restringida ao mínimo para que as mentes não se lhes iluminassem em sentido inconveniente. Ora, semelhante projecto para Portugal só seria possível com homens de rasgada visão de futuro e Salazar não o era. Estava demasiadamente circunscrito à sua esfera mental, só assim se compreendendo que nunca tenha visitado uma única parcela do Império. Bem, talvez a utopia excedesse a capacidade de homens comuns, e daí ser utopia. Mas ainda assim algo de valioso sobreviveu. Eduardo Lourenço disse há tempos numa entrevista que se emociona quando nas gares dos aeroportos ouve africanos a falar a língua portuguesa. E a cooperação entre as antigas colónias e Portugal tem um condimento especial que nenhuma outra potência estrangeira lhe empresta. É como se ainda haja espaço para alimentar um sonho comum. Quem sabe?
Anónimo  04.08.2019: Li e reli os dois comentários datados de 3 do corrente feitos pelo Senhor Adriano Lima, A seriedade e a profundidade dos mesmos sobre temas tão delicados - racismo e modelo de colonização - merecem reflexão, particularmente quando eles são suscitados em blog. Após algum tempo de maturação, atrevo-me a afirmar que, em linhas gerais, estou de acordo com o que escreveu, embora, mais uma vez, as circunstâncias, nem sempre totalmente conhecidas, podem justificar alguns desvios de comportamento dos protagonistas. Ao longo de meia dúzia de comentários que fiz às brilhantes crónicas do meu Amigo Henrique Salles da Fonseca, deixei claro que não vi, antes pelo contrário, atitudes de racismo branco-negro no meu tempo de tropa.Todavia, admito (e sei) que, pelo menos antes do início da Guerra, houve afloramentos racistas por parte de alguns colonos brancos, particularmente os menos instruídos ou/e os mais idosos. Mas isso não deve fazer cair o anátema de racismo sobre a colonização portuguesa. Quanto à falta de clarividência da classe política portuguesa para fazer a Gestão dos Territórios Ultramarinos (ou coloniais, como quiserem) ela é tão evidente, que nem merece que se dedique muito tempo ao tema. Mas dou o benefício da dúvida a alguns desses políticos. Talvez, mais uma vez, as circunstâncias tenham tido o seu papel condicionador das vontades dos homens. O Henrique deve ter sido (não sei ao certo) um bom observador dos avanços e recuos, bem como das limitações, da implementação do ensino universitário em Moçambique. Com razão ou sem ela, era sentimento corrente na altura sobre a razão das limitações da instrução das populações ultramarinas a que é apontada pelo Senhor Adriano Lima no seu segundo texto. Entre parêntesis recordo o papel que a Casa do Império, em Lisboa, teve na formação dos lideres dos movimentos de emancipação. Não sei se o Prof. Veiga Simão terá deixado testemunho a propósito do ensino universitário em Moçambique. Se deixou, seria interessante a sua leitura. Carlos Traguelho


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